• Nenhum resultado encontrado

2. A FORMAÇÃO DO IMPÉRIO DO BRASIL NA PROVÍNCIA DO CEARÁ

2.1 A PARTE E O TODO: DIFERENTES PROPOSTAS

Em quase todas as províncias do império do Brasil, principalmente nas que ficam ao norte existem partidos: a força dos cruéis inimigos da nossa santa causa, e que se acham estre nós, é considerável [...]; temos a combater o partido dos republicanos, que sustentam e apregoam a separação de todas as províncias em republicas independentes, mas confederadas entre si, á imitação dos Estados Unidos da América; temos a combater o partido dos admiradores da constituição de Portugal, e que a desejam adoptar, ficando porém em estados separados, e só ligados a Portugal por laços federativos; temos a combater o partido de diversas seitas de carbonários, de jardineiros, e de outras que infelizmente existem no Brasil; temos finalmente a combater o partido dos anarquistas...

[...] a notícia da nomeação de um delegado do imperador [...], porá em susto, e cruel agitação todos os partidos, á reserva demente dos que seguem a nossa santa causa. [...]. Fechemos por um momento a nossa atenção no desgraçado caso de ser repelido o chefe da província, que fosse nomeado pelo nosso imperador em consequência da decisão desta assembleia. Que faríamos? Que faria o imperador?64

O trecho acima foi pronunciado pelo então deputado Manuel Jacinto Nogueira da Gama, na Assembleia Constituinte de 182365. Gama chamava ali a

atenção de seus pares para o que ele considerava ser um perigo ao projeto de unidade nacional: a nomeação de um “delegado” do Imperador para as províncias, em especial, as do então norte do Brasil. Segundo o parlamentar, tal intervenção poderia afrontar os interesses dos diferentes “partidos” em suas propostas políticas em âmbito local. Temia-se que a decretação do fim das juntas administrativas, desencadeassem reações das várias forças políticas em cena, fortificando as simpatias locais ao federalismo, que já contava com forte presença nas províncias do Norte66. Naquele

momento, segundo Gama, era mais seguro deixar as províncias com seus governos locais e, só posteriormente, avançar com o projeto centralizador.

Além de um sentimento de incerteza, o processo de Independência inaugurou também uma nova característica política na América Portuguesa: a formação de um campo político67 brasileiro. Segundo Denis Bernardes, desde a

convocação das Cortes Extraordinárias da Nação Portuguesa em janeiro de 1821,

64 Manuel Jacinto Nogueira da Gama. Sessão de 26 de maio de 1823. In: BRASIL. Annaes do

parlamento brasileiro (Assemblea Constituinte. Tomo primeiro (1823). Rio de Janeiro: Typographia Parlamentar, 1823. p. 122.

65 Na ocasião Gama estava analisando o projeto de seu colega paulista Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, sobre o fim das juntas administrativas e a nomeação de presidentes de província pelo Imperador Antônio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva. Idem. P. 85

66 Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. 2ª ed., São Paulo: 34, 2014.

67Ver o conceito de “Campo político” em BORDIEU, Pierre. A Representação política: elementos para uma teoria do campo político. In: O poder simbólico. 14ª ed., Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010, p. 163-207.

instalou-se uma situação em que trouxe “a política para as ruas e praças, retirando-a do restrito ambiente das cortes”, sobretudo, ao instalar medidas como a liberdade de imprensa, direito a propriedade e ao deslocar a noção de soberania do rei para a nação68. No dizer de Marco Morel, aquele momento representou “um processo

mediante o qual se desenrolou uma consciência política no seio da esfera pública”69.

Ou seja, aquele contexto de mudanças implantou na América portuguesa conceitos centrais, que estavam já presentes em manifestações liberais em diversas partes do mundo ocidental, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 178970,

ao reordenar a noção de poder e ao inserir a ideia de representatividade política e soberania popular.

De qualquer forma, quando o deputado Nogueira da Gama fez o citado discurso na Constituinte de 1823, o Estado do Brasil que ali se institucionalizava simbolicamente no rito de composição de um legislativo brasileiro, vinha de uma sequência de mudanças e transformações que já iniciaram com a chegada da Família Real Portuguesa, a elevação do Rio de Janeiro à sede do Império português71,

seguida da Abertura dos Portos às nações amigas e a elevação do Brasil a condição de reino. Somando-se a isto, em 1821, o Constitucionalismo luso chegou à América72

trazendo consigo a política para as ruas. Neste contexto, as províncias experimentaram uma breve e, na visão daqueles legisladores, perigosa autonomia com a criação das juntas administrativas eletivas e com a destituição do Rio de Janeiro como sede administrativa do Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves. Na verdade, como consequência da Revolução Liberal portuguesa, em especial com o retorno de

68 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador. In: DANTAS, Mônica Duarte (org.). Revoltas, Motins, Revoluções: homens livres pobres e

libertos no Brasil do século XIX. São Pulo: Alameda, 2011, p. 134-137.

69 MOREL, Marco. La génesis de la opinion pública moderna y processo de independencia (Rio de Janeiro, 1820-1840). In: XAVIER-GUERRA, François (org.). Los espacios públicos en Iberoamérica: ambiguidade y problemas. Siglos XVIII-XIX. Cidade do México: Centro de estúdios mexicanos y centroamericanos, 2013, p. 301.

70 Lembramos que aqui esta ideia de política adotada, é no sentido de formação de um espaço ou esfera de discussão sobre a natureza do governo geral, posto que as discussões sobre os governos locais (a política local) já era corriqueira, pelo menos entre as elites das vilas, desde suas fundações no século XVIII, no caso das vilas do Ceará. François Xavier Guerra destaca em seu texto este sentido de política no sentido local, que, a grosso modo significava um governo do lugar (governo da república). XAVIER-GUERRA, François. De la política antigua a la política moderna. La revolución de la Soberanía. In: Los espacios públicos en Iberoamérica: ambiguidade y problemas. Siglos XVIII-XIX. Cit. p. 109-139.

71 Sobre as mudanças promovidas com a vinda da família real e a transferência da Corte para o Rio de

Janeiro ver cf. SCHIAVINATTO, Lara Lis. Entre história e historiografia: algumas tramas do governo joanino. GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil Imperial. V. 1, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. Pp. In. 55-93 e cf. ARMITAGE, João. História do Brasil (1835). Brasília: Senado Federal, 2011.

72 A descrição destes acontecimentos em sequência, não significa dizer que os entendemos como um mesmo fenômeno político, mas antes como uma sequência de transformações pela qual a América portuguesa passava e que repercute no processo de Independência e a formação do Estado Brasileiro.

D João para Portugal, cada província passava a se reportar diretamente a Lisboa, deixando temporariamente de existir um reino do Brasil entre o fim de 1821 e meados de 182273. Frente ao citado quadro político, Nogueira da Gama propunha a concessão

de autonomia administrativa para as províncias, como forma de atender aos diferentes interesses locais e, assim, evitar rebeliões ou movimentos separatistas contra o modelo de monarquia constitucional.

No entanto, não foi esta a única resposta para o medo de esfacelamento do embrionário “Império”. O padre Francisco Ferreira Barreto, que até a década de 1830 era um dedicado defensor do centralismo político e muito influente entre os corcundas das províncias do Norte,74 via uma “ameaça” ao novo Estado, justamente

pelo avesso do que apontou Nogueira da Gama. Olhando a partir de Pernambuco, logo após os conflitos de 1824, o citado padre entendeu aqueles anos iniciais como um tempo em que “nada” era “duradouro, nem estável” e cobrava justamente uma maior centralidade administrativa, como a única garantia de se preservar a unidade. Vejamos um trecho do discurso do reverendo pernambucano:

As províncias vivem umas receosas das outras, todas receosas da Corte, a Corte receosa do ministério, e o ministério receoso da Corte e das províncias. A intriga tem formado entre nós um desses labirintos tão vastos e tão tortuosos, d’onde não se pode sair, ainda tendo nas mãos o sonhado fio de Ariadne. O homem, que se julgava benemérito, passa de repente de aplauso

a censura, e às vezes da censura ao desterro. Entre nós o sinal mais certo de cair dos empregos é ter subido a eles [...]. As autoridades públicas parecem semelhante às nuvens, que se ajuntam, que se espalham, que se dissipam mesmo, segundo a força e a direção dos ventos. Não há nada duradouro, nem estável [...]. A opinião pública tornou-se em opinião dos

partidos, e as vezes é somente a opinião do dia. O vocábulo – Tranquilidade – perdeu-se dos nossos dicionários. A guerra, e a anarquia incandesceram a fisionomia [sic] dos povos. Há um terremoto político em todas as partes do império. Os partidos formigam de tropel, chocam-se, e sucedem-se,

destroem-se, e multiplicam-se. A razão decide-se pela força, e o país

encantado da constituição vai-se tornando no império das viúvas, e dos órfãos [...]. Ha um choque estrondoso da liberdade com o despotismo, porém

há outro da licença com a liberdade. Tem-se acreditado por uma ilusão

terrível, que um povo só é livre, quando ultrapassa todos os limites...75

73 Sobre essa fase de Independência ver cf. NEVES, Lúcia M. Bastos P. Estado e política na

independência. In: GRINBERG, Keila e SALLES, Ricardo. O Brasil imperial, V. I (1808-1831). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 96-136; cf. SILVA, Alberto da Costa (coord.). Crise colonial e

Independência: 1808-1830. V.1. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011, p. 75-113 e cf. ARMITAGE, João. Op.

Cit.

74O Padre Barreto foi acusado de ser o fundador da sociedade secreta “Coluna do Trono e do Altar”

da qual participara Pinto Madeira que, como veremos adiante, também foi acusado de proclamar o Estado Absoluto nas vilas do Crato e Jardim em 1829 e a promover uma revolta contra a abdicação de D. Pedro I e a ascensão dos liberais ao poder em 1832. Sobre o padre Barreto ver introdução de Antonio Joaquim de Mello In: BARRETO, Francisco Ferreira. Obras religiosas e profanas (1824). Org. Antonio Joaquim de Mello. Recife: Typographia Mercantil de Caslos Muhlert & Cia, 1874.

Na definição do sacerdote, a realidade do Brasil era um horizonte de incertezas. A Independência rompeu com a ideia de continuidade das longas trajetórias políticas do Antigo Regime, para implantar em seu lugar a efemeridade política. Ou, como era comumente classificado, um estado de anarquia, caracterizado por um maior poder das partes (interesses privados e locais) em detrimento do todo, instalando uma situação de conflito entre os interesses distintos que levara à descontinuidade política. Ninguém mais “era governo”, mas apenas “estava governo”. Uma situação que o padre compara com a natureza gasosa das nuvens, que se dissipam ou se agregam frente o curso dos ventos circunstanciais.

O que queremos destacar desta questão é justamente o quadro de incertezas e de transformações no discurso e nas referências conceituais do novo Estado que se afirmava. Transformações que iam da relação deste Estado nascedouro para com as populações locais, marcadas pela transição do súdito para o cidadão brasileiro, ou ainda do português da América, para o brasileiro.

Neste sentido, o discurso de formação do Estado nacional brasileiro, promoveu necessariamente o avanço do seu campo político.

Com a quebra do poder absoluto, que tutelava, controlava ou excluía as inevitáveis manifestações de interesses da sociedade de ordens, tais interesses puderam aflorar em uma luta aberta. Luta que se manifestava nos debates nas Cortes, nos artigos na imprensa, mas também nos ajuntamentos e em manifestações de rua para apoiar autoridades ou, ao contrário, exigir que fossem destituídas e até mesmo processadas.76

Este fim da tutela de um rei absoluto, ou, como preferimos, a ampliação da liberdade de expressão, fez com que, do constitucionalismo vintista até 1840, estivessem presentes questões tanto de interesse mais imediatos, como também de ordem política, mas que, igualmente, geravam conflitos. Quais os limites do poder do Estado? Qual a fronteira entre o governo e a casa? Como os cidadãos seriam chamados a participar do governo? Eram questões postas77 e demandavam respostas

múltiplas que potencializavam a situação de conflito. Um momento histórico de definição das atribuições institucionais e limites do Império78, da província, do

76 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. Op. Cit. p. 137.

77 Cf. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema: a formação do Estado Imperial. 5ª Ed., São

Paulo: HUCITEC, 2004.

78 Existiam resistências em algumas províncias à Independência até fins de 1823, tais como Maranhão, Piauí, Bahia, Ceará e Pará, bem como a guerra da Cisplatina trouxeram elementos de incerteza para a definição das fronteiras do jovem império. Cf. PIMENTA, João Paulo G. A independência do Brasil como uma revolução: história e atualidade de um tema clássico. História da historiografia, n. 03, p. 53- 82, 2009 e cf. ARMITAGE, João. História do Brasil (1835). Brasília: Senado Federal, 2011. Sobre a diferença temporal entre a Independência e a Formação do Estado brasileiro cf. HOLANDA, Sergio

município e da cidadania. “Mudanças” caracterizadas também pela necessidade de adaptação aos interesses do grande capital, em um movimento que Ilmar Mattos classificou como “recunhagem da moeda colonial”79.

No geral, as bases organizacionais da política oitocentista do novo país eram liberais80, ressaltando-se o forte domínio da influência reformista luso-brasileira

na defesa da monarquia constitucional e centralizada81, mas que não excluía a

presença de “projetos” federalistas e republicanos82. O momento entre o

constitucionalismo vintista, até as reformas políticas de 1840, foi tanto de experimentar novas práticas e instituições, como de temer uma maior ampliação de direitos e liberdades. Uma época caracterizada por acalorados debates e embates de ideias, não só no parlamento, mas principalmente nos periódicos83. Batalhas que envolviam

diversos segmentos sociais nos diferentes recantos do Brasil. Como disse Bernardes, no que tange a fase imediata após a Revolução do Porto: “...de um lado havia os que acreditavam, ainda, poder salvar o [...] modo de ser do Estado e sociedade do Antigo Regime, de outro os que saudavam a obra das Cortes como aurora de um novo tempo...”84. Um embate que se ampliou até a década de 1830, mas que encontrou um

meio-termo no conceito de moderação.

Buarque de. A herança colonial – sua desagregação. In: O Brasil Monárquico. Tomo II, vol. 1. 3ª ed., São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970, p. 9-39.

79 MATTOS, Ilmar Rohloff de. A Moeda Colonial, Região de Agricultura Mercantil-Escravista e A Moeda Colonial em restauração. In: O tempo saquarema. Op. Cit. P. 30-113.

80 Sobre essa base liberal dos constituintes e das legislaturas que se seguiram a 1826 ver NEEDEL,

Jeffrey D. Variaciones para un tema: las vicitudes del liberalismo durante la monarquia brasileña. In: JAKSIĆ, Iván y CARBÓ Eduardo Posada. Liberalismo y poder. Latinoamérica en el siglo XIX. Chile: FCE, 2011, p. 145-277

81 Sobre as bases do pensamento ilustrado português de caráter mais reformista e a influência deste na formação de propostas de um Estado brasileiro cf. SILVA, Ana Rosa Cloclet da. Inventando a Nação: Intelectuais Ilustrados e Estadistas Luso-Brasileiros na Crise do Antigo Regime Português (1750-1822). São Paulo: Hucitec/Fapesp, 2006. Mas nas primeiras décadas do século XIX há uma grande influência de pensadores franceses e ingleses na política brasileira e em toda América Latina, tais como Thomas Hobbes, Montesquieu, Rousseau, Edmund Burke ou a partir da segunda metade da década de 1830, o crescimento da influência de Tocqueville; Benjamin Constant e François Guizot. Sobre o Liberalismo no Brasil monárquico. Cf. GUIMARÃES, Lucia Maria Paschoal e PRADO, Maria Emília (orgs) O

Liberalismo no Brasil imperial: origens conceitos e práticas. Rio de Janeiro: UERJ, 2001; cf. PAIM,

Antônio. História do liberalismo brasileiro. São Paulo: Mandarim, 1998 e cf. NEVE, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Corcundas e constitucionais. Cit.

82 Cf. FONCECA, Silva Carla Pereira de Brito. O Conceito de República nos primeiros anos do Império: a semântica histórica como um campo de investigação das idéias políticas. Anos 90, v. 13, n. 23/24, p. 323-350, 2006 e Federalismo e República na sociedade Federal de Pernambuco (1830-1834).

Seculum, n. 14, p. 57-73, 2006.

83 Ver por exemplo O Conciliador do Maranhão HDBN; Suplemento ao nº 104 do Conciliador (Maranhão), 10/7/1822, HDBN; Aurora Fluminense, HDBN; Diário do Governo do Império do Brasil, HDBN; Sentinela da Liberdade da Guarita de Pernambuco (1823), HDBN; Correio Braziliense, HDBN; CANECA, Joaquim do Amor Divino. Types Pernambucano. Brasília: Senado Federal, 1984; Diário do Governo do Ceará, Fortaleza: Museu do Ceará, 2006.

84 BERNARDES, Denis Antônio de Mendonça. A gente ínfima do povo e outras gentes na Confederação do Equador. Cit. p. 136.

Como uma das consequências do predomínio das ideias moderadas no processo de formação nacional, as bases da antiga burocracia administrativa das províncias e vilas, formadas durante o Antigo Regime, marcadas por intensas rivalidades familiares, foram preservadas, mantendo assim as referências das experiências políticas locais patrimonialistas85. Foram, portanto, estas características

culturais que definiram a lógica das instituições públicas e administrativas do Estado do Brasil por todo o oitocentos86. Como disse François Xavier Guerra, sobre a América

hispânica, mas que também se aplica ao caso brasileiro:

...essa tão original política do século XIX era consequência da coexistência ou da hibridização entre um conjunto de ideias, imagens e práticas novas, que para simplificar chamamos ‘modernidade’, e elementos herdados desse outro mundo contra o qual se constituiu, e que ela mesma chamava de o Antigo Regime.87

Marcadamente, estas primeiras experiências de institucionalização, tais como as eleições para a composição de um legislativo “nacional”, a própria ideia de representatividade política, a formação de um juizado de paz (eletivo)88 e,

posteriormente, um júri local89, a Guarda Nacional90 e os legislativos provinciais91,

representaram diretamente uma expressão deste contexto. Ou seja, eram instituições edificadas sob uma proposta liberal moderna, referendadas em ideias como as de representatividade política, contrato social, constitucionalismo, igualdade jurídica, mas ao mesmo tempo, instituídas sobre uma base sociocultural patrimonialista e personalista92. O que não caracteriza, no entanto, uma inaptidão ou incompreensão

85 Sobre as práticas de benesses e mercês como parte de uma cultura política do Antigo Regime Luso que fortificava o poder privado de base patrimonial cf. BICALHO, Maria Fernanda Batista. Conquista, Mercês e Poder Local: a nobreza da terra na América portuguesa e a cultura política do Antigo Regime. Almanack braziliense nº 02, p. 21-34, 2005.

86 Pensamos esta questão da relação entre o patrimonialismo e reformismo a partir de cf. GÁRCIA CANCLINI, Néstor. Culturas híbridas. São Paulo: UNESP, 1997, cf. MOREL, Marco. Palavra, imagem

e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: PD&A, 2003 e Thompson,

E. P. Miséria da Teoria. Cit. Neste último, referendado no conceito de experiência.

87 XAVIER-GUERRA, François. De la política antigua a la política moderna. La revolucíon de la soberania. In: Los espaços públicos em Iberoamérica. Op. Cit., p. 109-139.

88 BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Coleção de leis do Império do Brasil de 1827. Parte primeira. Rio de Janeiro: Typographia nacional, 1878, p. 67-70

89 BRASIL. Lei de 29 de novembro de 1832: Código do Processo Criminal de Primeira Instância, Parte primeira. (artigos 5º e 29-32). In: Coleção de leis do Império do Brasil de 1827. Parte primeira. Rio de Janeiro: Typographia nacional, 1874, p. 186-242.

90 BRASIL. Lei de 18 de agosto de 1831. In: Coleção de leis do Império do Brasil de 1831. Parte primeira. Rio de Janeiro: Typographia nacional, 1875, p. 49-74.

91 BRASIL. Lei n. 16 de 12 de agosto de 1834. In: Coleção de leis do Império do Brasil de 1834. Parte primeira. Rio de Janeiro: Typographia nacional, sd, p. 15-22.

92 Entendemos aqui o patrimonialismo e o personalismo como parte de uma cultura política largamente difundida, ou seja, uma base de referenciais simbólicas e valores socialmente difundidos, que naturalizava a influência pessoal e das casas na administração pública, impondo simbologias e formas

do liberalismo pela burocracia administrativa das vilas e províncias, muito pelo contrário, caracteriza antes uma apropriação orgânica destas ideias políticas, incorporadas às experiências políticas da América portuguesa, pois como destacou Roger Chartieu, “A recepção sempre envolve apropriações, que transforma, reformula e transcende o recebido”93.

Neste sentido, o Padre Lopes Gama fez uma rica observação sobre as características destas instituições nas duas primeiras décadas do Pós-Independência:

Como os ingleses e franceses têm a aliás muito saudável instituição do júri, nós também quisemos ter júri da mesma forma e com a mesma generalidade [...]. Criou-se logo por toda a parte sem se atender à falta de instrução. Os resultados de tal arremedos são [...] a continuação e progresso dos mais horrorosos crimes na razão direta da impunidade. Geralmente falando, pelos nossos matos as causas criminais e até a maior parte das cíveis, não se decidem segundo as leis, sim segundo o mandam as facas e bacamartes [...]. Em todas as nações cultas [...], o malvado é tido na conta de inimigo público,