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3. AS JUNTAS ADMINISTRATIVAS DA PROVÍNCIA DO CEARÁ

3.3. A JUNTA DO SERTÃO

No início do século XIX, José Pereira Filgueiras havia consolidado sua influência na região com a morte de seu inimigo José Alexandre Correia Arnaud. Filgueiras e Arnaud disputaram à “vaga” de capitão-mor do Cariri, por intermédio da morte de José Holanda Cavalcante no entorno de 1810341. Na época (1812), Filgueiras

foi o escolhido do então governador Manoel Inácio de Sampaio e Pinto Freire (o governador Sampaio), o que desencadeou as desavenças entre os dois potentados do Crato. Arnaud, fazendo uso de sua influência, procurou diretamente a Corte no Rio

339 Operação da Comissão encarregada dos melhoramentos na Província do Ceará.doc. cit.

340 A Junta de Porbem Barbosa denunciou o juiz de fora do Icó, Francisco Rodrigues Cardeira, em fins de 1821, o que acarretou sua destituição do posto ocupado. O mesmo juiz, por sua vez, já havia denunciado a primeira junta [de Xavier Torres] como ilegítima, por ter sido eleita apenas com os votas da capital, levando a ordem das Cortes portuguesas para se convocarem novas eleições para a escolha de uma junta administrativa, agora com os eleitores de toda a província. Francisco Alberto Rubim Oficio do [secretário de estado dos Negócios da Marinha e Ultramar], Inácio da Costa Quintela, ao [Presidente das Cortes Gerais], João Batista Figueiras, remetendo oficio do governo do Ceará, Francisco Alberto Rubim, sobre os reflexos da revolução de 1817, ocorrida em Pernambuco, na capitania do Ceará. Doc. Cit. e José Martiniano de Alencar, Sessão de 15 de julho de 1823, PORTUGAL: Diário das Cortes Gerais, extraordinárias, e constitucionais da nação portuguesa, Segundo ano da legislatura, tomo sexto. Doc. Cit. p. 827

341 CEARÁ. Atas do Conselho Geral da Província do Ceará (1829-1835). Fortaleza: INESP, 1997, p. 162.

de Janeiro, e obteve do então Príncipe regente D. João, a divisão da vila do Crato em duas. Criada a vila do Jardim em 1814 para apaziguar o conflito, Arnaud fora nomeado capitão-mor da mesma, cargo que exerceu por pouco tempo, pois morreu em meados de 1816, mesmo ano em que também foi criada a Comarca do Crato342. Neste

contexto do Antigo Regime, uma vila no interior da capitania do Ceará, região periférica do capital mercantil, era um território de extrema influência pessoal e autonomia administrativa em relação ao governo, ao ponto das rixas entre duas casas ser considerado um motivo que justificava a divisão de uma vila em duas, apenas para contemplar os interesses de um dos lados beligerantes.

Vencida a disputa com Arnaud, Filgueiras teve que conviver com outro problema, a criação da comarca do Crato, que trazia necessariamente a nomeação de um ouvidor. Fato que representava a divisão do poder pessoal de Filgueiras com um representante do juizado de carreira, fruto do avanço da interiorização das instituições de Estado. Como destacou Carvalho em seu texto “Cidadania no Brasil”, estes senhores detinham em suas mãos a justiça local, que por sua vez tinha o sentido de “instrumento do poder pessoal”343. Foi neste cenário onde José Raimundo dos

Passos Porbem Barbosa foi nomeado ouvidor da nova comarca. Possivelmente Filgueiras passou a olhar o novo ouvidor como um intruso em seu domínio344.

José Pereira Filgueiras, homem criminoso de tirada de presos, arrombamento de cadeia, e resistência, antes do meu tempo de que nunca pode conseguir seguro, e assim mesmo tem a regência das vilas do Crato, e de Santo Antônio do Jardim, prende homens para casar, da cadeia solta os suspeitos de morte, açoita pessoas livres, e manda aos juízes sumariar as pessoas com quem tem inimizade...345

Diante de tamanha influência local, qualquer tentativa de nomear autoridade ligada a um centro de poder mais centralizado, era recebido como um

342 THÉBERGES, Pedro. Op. Cit., p. 28-40.

343 CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 10ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 21.

344 Os conflitos entre representantes dos senhoriatos locais e autoridades vindas de fora da vila sempre estiveram presentes no Ceará, intensificando-se com reformas pombalinas na segunda metade dos setecentos. Ver por exemplo o caso do Assassinato do Juiz de Vila Nova Del Rei descrito por Otaviano Vieira Jr. VIEIRA JÚNIOR, Antônio Otaviano. O Assassinato do Juiz de Vila Nova D’El Rei. In: Entre

Paredes e Bacamartes: história da família no sertão cearense (1780-1850). Fortaleza: Demócrito

Rocha/Hucitec, 2004, p.190-202.

345 João Antônio Roiz de Carvalho, a bordo do navio São José Jequiá, em 31 de maio de 1817. In: Ministério da Educação e Saúde. Documentos históricos: Revolução de 1817. Vol. CI., Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1953, p. 223-249.

afrontamento. Ou seja, as rivalidades entre Filgueiras e Porbem Barbosa, representavam também o choque e, consequentemente, a disputa de espaço de influência política, entre duas concepções de justiça e de Estado distintas. Enquanto o capitão-mor de ordenanças Filgueiras era assentado no poder pessoal, em relações quase que especificamente paternalistas, os ouvidores se afirmavam como agentes de um saber jurídico letrado. Portanto, Porbem Barbosa era ali o poder de fora, tentando impor os limites da lei e do direito do Estado português sobre uma comunidade que tinha uma compreensão local de justiça e de autoridade346. Ambos,

o poder local e o representante da lei, passaram a disputar os mesmos espaços de influência, levando à rancores e rivalidades mútuas.

Em correspondência à José Bonifácio, Porbem Barbosa chega a referir-se a Filgueiras como “meu antigo inimigo”347 e mesmo Filgueiras, ao marchar para

Fortaleza, alegava que sua intenção não era destituir a junta administrativa, mas antes “excluindo de seu seio o Presidente [Porbem Barbosa], e outros de seus Membros, José de Agrela Jardim”348.

No período das eleições para a 1ª e 2ª junta de governo, a freguesia dos Cariris novos, onde ficava a vila do Crato, mão participou dos pleitos. No primeiro, por a eleição ter se restringido a Fortaleza, e no segundo, simplesmente não vieram para Fortaleza os eleitores da freguesia dos Cariris Novos. Não sabemos se a ausências dos eleitores foi por não terem sidos chamados a participarem da escolha da junta administrativa, ou simplesmente não terem enviados “representantes”, ou se teve ainda alguma coisa a ver com as rivalidades entre Filgueiras e Porbem Barbosa, ou com o movimento contra o juramento à Constituinte de Lisboa e a eleição para representantes da província no ano anterior (o Cerca Igrejas). O fato é que os Cariris Novos não participaram da escolha do governo da Junta de Porbem Barbosa.

Neste sentido, temos alguns elementos para entendermos o que acontecia na organização do campo político brasileiro, no Ceará. Primeiro, aquela marcha do capitão-mor do Crato e das casas do sertão central contra o governo oficial da

346 Cf. HESPANHA, António Manuel. A Cultura jurídica europeia: síntese de um milénio. Cit. 347 Carta de Porbem Barbosa a José Bonifácio em 06 de dezembro de 1822. Doc. Cit.

348 Correspondência de José Pereira Filgueiras ao Juiz, presidente e oficiais da Câmara da Villa de São

Bernardo. Transcrito no Oficio do [secretário de estado dos Negócios da Marinha e Ultramar], Cândido José Xavier, ao [Presidente das Cortes Gerais]; João Batista Figueiras, remetendo oficio e cartas do [governo das Armas do Ceará], Francisco Xavier Torres, sobre os tumultos na Villa do Jardim e Crato, bem como louvando o decreto do príncipe regente de 16 de fevereiro. Cit.

província, era também parte de uma antiga rixa entre dois adversários que disputavam o mesmo espaço de poder desde meados de 1816, quando foi criada a Comarca do Crato. Portanto, representava um choque de concepções administrativas e jurídicas de naturezas distintas. A justiça de carreira e institucional, que se interiorizava na província com a criação das comarcas do interior a partir de 1816, contra a justiça dos rústicos, de natureza local. Neste sentido, a adesão da província do Ceará à Independência e ao Rio de Janeiro, foi resultado de vários fatores, não podendo ser reduzida a esta mera disputa de espaço de poder entre uma casa e um poder de fora, representado na rivalidade de Filgueiras e Porbem Barbosa, como também não podendo ser entendida apenas como um “anseio” por liberdade contra o domínio luso. Os interesses não só de Filgueiras, como também dos membros das vilas do Icó e Crato, perante à adesão ao grupo político dos chamados patriotas, deve ser dado o seu devido peso, como também devemos reconhecer a influência do discurso liberal que, a essa época, já chegava à província com força.

Mas apesar desta polifonia de razões, as rixas pessoais e os interesses políticos dos comerciários de Fortaleza e Aracati, em choque com os interesses das casas sertanejas de Icó e Crato, foram mais fundamentais ou determinantes para o desencadear destes movimentos políticos no Ceará do início do século XIX (que culminou no engajamento pro-independência liderado por Filgueiras e Tristão Gonçalves de Alencar Araripe), do que qualquer suposto sentimento ou desejo de liberdade ligado a abstrações identitárias, que só viera a surgir depois. Estes grupos locais, acompanhando o desenrolar dos acontecimentos no mundo luso, apropriavam- se dos discursos políticos e os punham a serviço de si, em um espaço de conflito que se ampliava geograficamente do território e governo das vilas, para constituir um espaço e governo da província entre 1821 e 1824, e nacional a partir desta data. Então, ao mesmo tempo em que o Levante do Icó representou um desejo de constituir um governo das casas do sertão em detrimento dos comerciários de Fortaleza, também foi alimentado por uma rixa pessoal e da própria concepção de poder representado em Filgueiras e Porbem Barbosa. Neste último caso, o Levante do Icó representou uma reação de uma concepção de justiça local, que se via atacada por uma proposta de centralização política e constituição de um campo jurídico profissional. Então, a “justiça dos rústicos” da província do Ceará, encontrou em D.

Pedro a possibilidade de uma sobrevida, representado na preservação de parte do poder e influência dos capitães-mores de ordenanças.

Os comerciários de Fortaleza, que em suas reivindicações de tornarem-se governo, destituíram o governador Rubim em um levante militar em três de novembro de 1821, embora não formalmente, construíram um projeto administrativo provincial, a semelhança dos últimos governadores da então capitania do Ceará Grande. Tal projeto visava centralizar a administração em Fortaleza, impor o trabalho e a fixação do homem no campo, além de fragilizar o poder e autonomia dos senhoriatos das vilas do sertão. Projeto este que seguia o curso dos acontecimentos desencadeados pelo constitucionalismo e, como tal, não previa qualquer ruptura com Portugal. Mas também, pelo que percebemos da análise das fontes, não se opunham caso a Independência de fato se consolidasse. Um projeto de governo local e, como tal, afirmava-se mais diretamente como proposta presente nas instruções de polícia de 1822, mas que desencadeou reações de criadores e comerciantes do Crato e Icó. Em fins de 1822, tão logo a Junta de Porbem Barbosa anunciara sua Instrução de Polícia, a câmara do Icó e do Crato promoveram eleições e escolheram um “Governo temporário”, composto por nomes das duas vilas, para fazer frente ao governo de Fortaleza:

...deliberou o Conselho Eleitoral, reunido nesta vila do Icó, instalar um governo temporário composto de seis membros nomeados pelas respectivas câmaras com os eleitores de seus termos, que formando nesta Comarca um centro de união, e uma autoridade legal, pudesse proteger, e animar a todos os honrados, e generosos brasileiros, que livremente se quisessem desenvolver a favor da santa causa da Independência do Brasil = Este passo virtuoso, e filho do heroísmo, e mais que tudo da cega fidelidade, respeito, e amor a sua Majestade o Senhor Dom João Sexto, e a seu Prezado Filho o Príncipe Regente e Perpetuo Defensor do Brasil...349

Como exporto na “tabela 3” acima, a exceção dos padres Antônio Manuel de Sousa e Joaquim Xavier Sobreira, que também eram proprietários, a junta foi formada por senhores de terras e comerciantes do interior da província. As casas sertanejas, na prática, reagiam ao governo dos comerciários da capital que, principalmente, na segunda Junta Administrativa, alimentava a pretensão de ampliar

349 José Pereira Filgueiras. Quartel da Villa do Icó vinte e nove de Outubro de mil oitocentos e vinte e dois = José Pereira Filgueiras = Ilustríssimo Senhores Juiz Prezidente, e Officiaes da Camara da Villa de São Bernardo. In: CONSELHO ULTRAMARINO-CEARÁ. Ofício da Junta da Província do Ceará ao secretário de estado dos Negócios do Reino, Francisco Ferreira de Araújo Castro, participando as sublevações contra a referida Junta, ocorrida na vila do Crato. Doc. Cit.

a política civilizatória dos antigos governadores sobre o interior da província. A chamada “independência” do Brasil, na província do Ceará, estancou este movimento “civilizatório”, pelo menos até 1824, quando foram destroçados os últimos núcleos de resistência dos rebeldes da Confederação do Equador na província.

De fins de 1822, quando Filgueiras e a Junta do Sertão destituíram a Junta de Porbem Barbosa, até 1824, as juntas administrativas eram formadas por membros de casas sertanejas, com a única exceção no padre Pinheiro Landim350. Este grupo,

no discurso político, defendiam um governo local, apoiados em princípios de liberdade e autonomia política provincial, só aceitando ligarem-se ao restante do antigo território da América portuguesa, pelo viés federalista351.

Todas estas informações levantadas até aqui, desde o levante contra Rubim em 1821, ao levante de Filgueiras contra Pedro José da Costa Barros em 1824, e a consequente instalação da Junta Tristão/Filgueiras, apontam para a importância do contexto local para se compreender o processo de formação do Estado Brasileiro no Ceará. É inegável que os fatores externos foram influentes, até mesmo direcionando o discurso e posicionamento político dos senhoriatos locais, todavia, estes fatores por si só não desencadeariam o processo político que levou à formação do Estado brasileiro na província, sem as lutas de interesses e por espaços de poder locais. Enfim, o Estado Nacional não foi apenas uma força que veio de fora e se impôs ao sertão. Ou seja, não foi apenas uma “interiorização da metrópole”, no sentido de uma mera sujeição das casas locais, foi também, e principalmente, forças internas que se somaram ou resistiram a este movimento centrípeto.

3.4. A INVENÇÃO DO ESTADO REPRESENTATIVO NO CEARÁ: IDEIAS LIBERAIS