• Nenhum resultado encontrado

As linhas de demarcação entre o feminismo ocidental e africano

3. O Feminismo africano e o pensamento centrado nas mulheres

3.1. As linhas de demarcação entre o feminismo ocidental e africano

3.1.1. Género enquanto uma categoria de análise

Uma das principais diferenças entre o feminismo ocidental e o feminismo africano baseia-se no facto de que a noção de feminilidade não significa exatamente a mesma coisa para as sociedades ocidentais e africanas. A categoria “mulher” não pode ser considerada como uma categoria separada do seu contexto. “Mulher” não constitui somente um papel social, uma identidade, uma posição ou uma localização como acontece no feminismo e na cultura ocidental. Antes de mais, “mulher” é uma soma de várias posições, papéis e significados (Oyewumi, 1997, 2003). Como explica Oyeronke Oyewumi, cada indivíduo ocupa múltiplos contextos que não estão separados um do outro, mas que interagem, misturam-se e influenciam-se mutuamente. Cada indivíduo tem, por conseguinte, várias e múltiplas relações com o poder, o privilégio e a desigualdade. A autora vai mais longe e acusa a cultura e o feminismo ocidental de terem implementado (imposto até) os seus valores e as suas soluções socioculturais no corpo africano deixando marcas indeléveis (Oyewumi, 1997: 9). A África tornou-se um recipiente de ideias ocidentais que não se adequam à realidade africana.

Visto que a categoria de mulher não é estável nem imóvel, e que, em muitas sociedades africanas, “feminilidade” é só um dos aspetos da pessoa e transcende o papel social, não faz sentido falar de género enquanto categoria sociocultural mas sim baseado na diferença biológica. Enquanto no discurso ocidental o corpo é uma base da categorização do género (poder-se-á dizer que tudo começa com o corpo), no discurso africano a distinção entre o sexo e o género não tem a base epistemológica do ser. Isto deve-se ao facto de, em muitas sociedades africanas, existirem múltiplas categorias sociais que não têm as suas origens na distinção corporal dos sexos. Um bom exemplo desta situação é a categoria do “female husband” – o sistema de género praticado por Igbo7

na Nigéria (Sudarkasa, 1986) onde uma rapariga mais velha entre os filhos pode ser escolhida pelo seu pai, caso não haja na família um herdeiro masculino, para assumir o papel social de um homem. Biologicamente a filha é uma menina mas o seu “género social” (o de rapaz) tem mais peso na sociedade do que o biológico. Ogundipe-Leslie (1994: 13) corrobora os argumentos de Oyewumi e de Sudarkasa afirmando que as relações interpessoais nas

7

Um dos maiores grupos étnicos no leste, sul e sudoeste da Nigéria, Camarões e Guiné Equatorial. Ver mais em: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/282215/Igbo

34 sociedades africanas vão muito mais para além das relações de género, por isso torna-se errado analisar mulheres africanas somente na sua interação com homens. Por exemplo, o casamento pode ser muito mais do que uma relação entre dois sexos; pode ser e, muitas vezes é, uma rede de relações e interdependências entre duas ou mais mulheres e mulheres e homens onde fatores como a idade, ou a ordem da entrada na família pela via do casamento tem mais importância do que o próprio género. Okome (2003: 79) argumenta que não existe igualdade entre homens e mulheres mas ela também não existe mesmo entre as próprias mulheres só por elas partilharem o mesmo sexo biológico. Na sociedade Ibo (Nigéria) mulheres que entram na família através do casamento não gozam do mesmo estatuto que as filhas (as irmãs do marido). As esposas mais novas não recebem o mesmo tipo de tratamento que as esposas seniores. Uma mulher chefe tem mais poder do que qualquer mulher ou homem. E, por fim, um homem rico tem o estatuto mais elevado do que um homem pobre. Sylvester (1995: 964) relata que, no Zimbabwe, um grupo de mulheres trabalhadoras em propriedades agrícolas não tinha, curiosamente, a noção de serem mulheres e da sua “feminilidade”. Sylvester reconheceu que se preparou para entrevistar “mulheres” no senso strictu da palavra mas foi confrontada com um elemento de surpresa. Houve pessoas que lhe disseram que a categoria de “mulher” no sentido geral podia ser atribuída na base do trabalho efetuado. Outras sentiam que a categoria de mulher não podia existir se as divisões entre elas fizessem com que elas não pudessem exercer a sua solidariedade. A noção geral foi que tinha que se ter cuidado com a categoria de mulher e os seus interesses/expetativas porque outras mulheres podiam discordar e fazer uma outra leitura da questão.

Torna-se, então, claro que a organização social dos povos africanos é bastante diferente da dos países europeus ou da América do Norte e, consequentemente, a categoria de género não é a única ou a mais importante na vida e na realidade quotidiana de uma pessoa africana. Logo, o feminismo na sua vertente ocidental, com o grande enfoque nas questões relacionadas com o género aplica-se muito menos ao continente africano.

3.1.2. Posicionamento perante homens e maternidade

Um outro ponto de demarcação ou de diferenças substanciais entre feminismos africanos e ocidentais é a atitude perante homens. Do lado ocidental mantém-se e nutre-se a posição de que o único opressor das mulheres africanas é o homem africano. Todos os

35 trabalhos levados a cabo nos anos 80 e 90 do século XX “comprovam” a situação precária da mulher em África causada exclusivamente pelo homem que é: «the enemy, the exploiter and oppressor» (Kamara, 2011: 213, Ogunyemi, 1996: 114). Chega-se à conclusão, então de que há uma guerra entre homens e mulheres africanos. A proposta de solução dirigida a mulheres africanas foi a de criar um mundo autónomo separado dos homens com a estética e economia emocional adequada a mulheres.

As mulheres africanas, tal como as suas irmãs afro-americanas rejeitaram esta visão do feminismo argumentando que problemas com os quais se confrontam as mulheres e os homens africanos (a pobreza, a exploração capitalista, a falta de recursos básicos como a água, a corrupção política, etc.) requerem a cooperação entre os sexos e as soluções para estes problemas não podem ir na linha do pensamento dicotómico. Por esta razão, como argumenta Kramara e outras académicas africanas, a perspetiva africana difere imenso da ocidental: sublinha-se a complementaridade dos sexos e o papel da cooperação. Ambos, mulheres e homens podem e devem (como veremos neste capítulo) trabalhar em todas as esferas da vida juntos, sem se deixarem separar pelo pensamento hierárquico, alheio ao pensamento africano (Dove, 1998: 515).

Pode-se, então afirmar, que a especificidade do feminismo africano assenta na solução pacífica e, talvez, possamos avançar com a afirmação que esta abordagem de mulheres africanas é mais humanista porque procura garantir o bem-estar dos dois sexos. Esta visão assenta na cultura africana que se expressa pelo interesse pelo coletivo – o bem da comunidade é de maior importância do que o bem individual.

No sistema que valoriza a comunidade e o coletivo, o papel da mulher no seio da comunidade é mais estimado – a mulher é vista como mãe, traz vida ao mundo, garante e assegura a regeneração espiritual dos anciãos. Ela, a mãe, transmite a cultura e constitui o centro da organização social. Porém, o papel da maternidade não é atribuído somente às mães biológicas. Baseando-se nos trabalhos académicos, Dove afirma (1998: 520-521) que a maternidade transcende as relações de sangue e de género, mesmo nos tempos de hoje. Uma outra pessoa, membro da família, ou não, pode desempenhar o papel da mãe. E este papel constitui a fonte da força, do reconhecimento, do empoderamento e do estatuto da mulher na sua comunidade. A maternidade, neste sentido, traduz os valores de comunidade, da importância do outro e de formas de resistência. A ética do cuidado,

36 muitas vezes criticada em algumas correntes dos feminismos ocidentais é levada a um outro patamar no pensamento africano. A tarefa de “othermothering”, a fonte da força das mulheres afro-americanas, é uma das mais gloriosas tarefas da mulher no continente africano. Uma mulher que não tem filhos biológicos, pode ser protegida emocionalmente através do seu papel da “mãe dentro da comunidade” onde esta prática lhe confere o estatuto da mulher sábia e respeitada (Ogundipe-Leslie, 1994).