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4. A escrita literária como voz de insurgência

4.2. Romper com os estereótipos à volta de mulheres africanas: a narrativa de

4.2.1. A Cor de Hibisco

O primeiro romance de Chimamanda Ngozi Adichie, “A Cor de Hibisco” (The Purple Hibiscus), foi publicado em outubro de 2003 e ganhou o prémio Commonwealth Writers´ Prize for Best First Book em 2005. Os acontecimentos do romance desenrolam-se na Nigéria pós-colonial, numa família abastada de Eugene Achike, uma personagem tanto fascinante como repugnante devido ao seu comportamento perante a sua mulher e os filhos ditado pela religiosidade mal compreendida. Como argumenta Fwangyil (2011: 262), a autora faz-nos um retrato de sociedade e do ambiente opressor e sufocante em que as mulheres vivem. Ogwude (2011: 111) avança com a opinião de que o romance explora o chauvinismo religioso enquanto hostilidade cultural.

A narrativa pertence a Kambili, rapariga adolescente, à beira de puberdade. É através dela que somos apresentados a algumas personagens femininas do romance que

53 despertam o nosso interesse. Em primeiro lugar, Beatrice, mãe de Kambili e mulher de Euguene, também cunhada da Tia Ifeoma que será analisada um pouco mais adiante. Como atrás mencionado, colocámos a pergunta se as personagens femininas de Chimamanda Ngozi Adichie reagem de uma forma sustentada, abrindo o espaço para o seu empoderamento ou se, pelo contrário, se deixam vencer pelas normas e expetativas sociais. À primeira vista, Beatrice é-nos apresentada como uma mulher submissa, ameaçada pelo seu marido, que permanece muda e profere poucas palavras ao longo das páginas da obra. Sabemos, através da adolescente Kambili, que a mãe sofre a fúria implacável e ataques físicos por parte de Eugene e é, pura e simplesmente, vítima da violência doméstica. O sofrimento da mulher exprime-se, de cada vez após ser espancada, através do ato da limpeza das estatuetas colocadas na estante da sala; o mesmo sofrimento demonstra-se, silenciosamente, em forma de nódoas negras na cara da mulher, o que é o fruto e o testemunho mudo da violência vivida por Beatrice.

“Há anos, antes de eu conseguir compreender o que se passava, sempre ouvia barulho vindo do quarto deles como se estivessem a bater com qualquer coisa contra a porta, costumava perguntar-me porque é que as polia. (…) Demorava pelo menos um quarto de hora a limpar cada estatueta de ballet. Nunca tinha lágrimas no rosto. Da última vez, há duas semanas apenas, quando o seu olho inchado ainda estava roxo, quase negro como uma pêra-abacate demasiado dura, ela mudara-lhes a ordem depois de as ter polido”

(Adichie, A Cor de Hibisco, 2010, p. 15).

[“Years ago, before I understood, I used to wonder why she polished them each time I heard the sounds from their room, like something being banged against the door. (…) She spent at least a quarter of an hour on each ballet-dancing figurine. There were never tears on her face. The last time, only two weeks ago, when her swollen eye was still the black-purple color of an overripe avocado, she had rearranged them after she polished them”]

(Adichie, Purple Hibiscus, 2009, pp. 10-11). Qualquer tentativa de resistir à autoridade feroz do marido, mesmo numa situação de fragilidade ligada à indisposição causada pela gravidez provoca um ataque de ódio e violência. A mulher tem que pagar pelo “pecado” de contrariar a vontade do seu marido. O preço a pagar pela violência são abortos espontâneos sucessivos e a impossibilidade de ter mais filhos, preocupação constante de Beatrice. Com a impossibilidade de ter mais um filho, em particular, um rapaz, associa-se o medo de rejeição pelo marido e pela comunidade; Beatrice exprime este medo e angústia quando relata à sua cunhada que os mais velhos da comunidade já sugeriram ao Eugene que se case com uma mulher que lhe desse mais filhos. A recusa por parte de Eugene de se juntar a mais uma mulher, gere em

54 Beatrice um profundo sentimento de gratidão – afinal, ele não é assim tão mau já que poderia fazer o que seria normal se seguisse a tradição. É esta gratidão, em conjunto com a dependência económica, e o esforço de implementar as normas culturais onde a mulher sem marido é uma cidadã de segunda classe, que fazem com que Beatrice permaneça em silêncio e nunca questione a autoridade do marido. Não a questione mesmo quando Eugene maltrata os seus próprios filhos inventando torturas mais repugnantes por cada pequena “subversão” feita no dia-a-dia.

No entanto, a ditadura em casa de Eugene tem um fim. A solução, embora chocante, vem de Beatrice. A decisão agonizante de matar o seu marido é, porém, uma decisão heroica. Chimamanda Adichie nunca justifica o ato da sua protagonista, e também não a culpabiliza. Deixa o processo de reflexão ao seu leitor/à sua leitora. Cremos, no entanto, que o homicídio perpetrado por Beatrice é o grito pela liberdade – a sua liberdade e a dos seus filhos. Trata-se, afinal, de um grito da mulher torturada e privada da sua dignidade há anos. Não é, de forma nenhuma, uma solução desejável, nem um final feliz. Pode ser, isto sim, um início da nova vida, talvez marcada pela depressão e remorsos, mas mesmo assim uma vida livre da violência e da falta de esperança. Após a morte do seu marido, Beatrice desafia as normas da sociedade recusando cortar o cabelo ou vestir-se de preto ou branco. Como se a morte de Eugene despertasse vida, embora penosa, em Beatrice.

O ato desesperado de Beatrice faz-nos pensar que mesmo as vítimas têm as suas formas de sobreviver e resistir; nunca são totalmente mudas e passivas. Elas têm a sua voz, mesmo se o preço a pagar para a articular for altíssimo.

Ao lado de Beatrice, conhecemos neste romance mais uma protagonista muito interessante e, à primeira vista, a mulher que não podia ser mais diferente de Beatrice. É a Tia Ifeoma, irmã de Eugene, cunhada de Beatrice. Trata-se de uma mulher educada, viúva com dois filhos e detentora de uma personalidade forte e cheia de vida. Já na primeira descrição a Tia Ifeoma aparenta uma alegria que falta, obviamente, a Beatrice. Ri-se imenso, e o riso dela ecoa pela casa toda. Os filhos da Tia Ifeoma, ao contrário da Kambili e do seu irmão, Jaja, vivem uma plena vida, numa casa onde as suas opiniões são respeitadas, onde se respira liberdade e onde não grassa o ambiente murcho da religiosidade levada ao extremo. É importante salientar que a Tia Ifeoma, independente

55 economicamente, leciona na universidade e possui uma personalidade que lhe proíbe deixar intimidar-se pela família do marido (que morreu num acidente) no que diz respeito às suspeitas relativamente à morte dele. A mulher está consciente de que a família e a comunidade do seu marido suspeitam de o ter morto. No entanto, esta suspeita não lhe causa transtorno. Sabe perfeitamente que a família se governa pelas tradições mais obscuras que discriminam, muitas vezes, as mulheres que entraram nas famílias pela via do casamento.

A Tia Ifeoma possui toda a coragem para desafiar o seu irmão, Eugene, sobre a maneira como ele trata o seu pai (Pa Nnukwu) pelo facto de ele não se ter convertido. O “pagão” nunca teve a possibilidade de dedicar tempo com qualidade aos seus netos, Kambili e Jaja, e nunca teve o direito de entrar em casa de Eugene. Quando o Pa Nnukwu morre, é a Tia Ifeoma, ela própria cristã, que se opõe à ideia do enterro cristão do seu pai – desta forma obedece à vontade dele e demonstra respeito face à sua escolha de permanecer animista. A sua dignidade coerente não lhe permite aceitar o apoio financeiro de Eugene pois está consciente de que a aceitação do apoio significaria a necessidade de se submeter à vontade do irmão.

Quando as duas mulheres, Beatrice e Tia Ifeoma, conversam na sua intimidade, é- nos revelado que o facto que gere a profunda gratidão em Beatrice (de Eugene não ter seguido os conselhos da umunna relativamente a casar-se com outra mulher a fim de procriar mais filhos), é visto por Tia Ifeoma como nada de particular. Na sua ótica, Eugene não fez nada extraordinário ao recusar-se casar com uma segunda mulher. Seria, afinal de contas, ele próprio a perder com esta solução. Sem dúvida nenhuma, nesta conversa revela- se o espírito indomável e solidário da Tia Ifeoma com as mulheres. É este sentido de valor humano enquanto mulheres, solteiras ou não, que a Tia Ifeoma defende e tenta transmitir às suas alunas na universidade. É o discurso que Beatrice chama “universitário”, que pouco tem a ver com a realidade quotidiana das mulheres africanas, pois para Beatrice «Um marido coroa a vida de uma mulher, Ifeoma. É isso que elas querem» (Adichie, A Cor de Hibisco, 2010, p. 72) [A husband crowns a woman´s life, Ifeoma. It is what they want.] (Adichie, Purple Hibiscus, 2009, p. 75). Para a Tia Ifeoma, o casamento não tem, necessariamente, que significar um estado de graça. A vida sem o homem tem o seu valor simplesmente porque a vida duma mulher tem o seu valor, ao contrário do que é levada a pensar Beatrice. «Nwunye m, às vezes a vida começa quando o casamento acaba» (Adichie,

56 A Cor do Hibisco, 2010, p. 71) [Nwunye m, sometimes life begins when marriage ends”] (Adichie, Purple Hibiscus, 2009, p. 75). A mensagem emancipadora está subjacente na opinião da Tia Ifeoma quando esta afirma que o diploma universitário pode não ser a fonte da liberdade porque quando as estudantes se casam, os seus maridos começam a controlar a suas vidas. Tal como no romance seguinte, Adichie opina que a educação pode ser uma fonte de libertação e a garantia da autonomia das mulheres se estas quiserem fazer dela, dos estudos, o seu instrumento da emancipação. Ecoam aqui, nesta mensagem, as palavras de Ogundipe-Leslie, que apelava para que as mulheres africanas se tornassem senhoras de si próprias através da educação e da autonomia económica.

Não nos restam dúvidas de que a personagem da Tia Ifeoma é personagem forte e insubmissa. Em tudo o que faz, desafia as normas de género e questiona a posição da mulher como vista pela sociedade tradicional nigeriana. É independente, é intelectual, apoia o seu pai como se fosse um homem, encoraja Kambili a vestir calças e pensar pela sua própria cabeça. Na situação de falta de meios económicos, luta diariamente pelo sustento da sua família e, quando acabam todas as possibilidades, não recua perante a opção de emigrar para os Estados Unidos em busca de vida melhor para si e seus filhos. Embora muito diferentes, ambas, Beatrice e Tia Ifeoma, revelam-se lutadoras, dispondo, cada uma delas, de várias estratégias de sobrevivência.