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Imagens da “Outra” na epistemologia feminista ocidental

2. Construção da mulher do Terceiro Mundo enquanto “Outra”

2.3. Imagens da “Outra” na epistemologia feminista ocidental

As feministas do Terceiro Mundo vieram a denunciar os trabalhos efetuados no Ocidente que tentaram explicar, através da apropriação dos valores ocidentais e usando os instrumentos da análise crítica tipicamente ocidentais, os costumes e as tradições do mundo não ocidental. As denúncias permitem-nos compreender que estes trabalhos, tanto a nível literário, sociológico ou antropológico, demonstraram uma abordagem que ignorava as especificidades históricas e políticas (Narayan, 1997). Estes trabalhos, de cariz feminista, destinados, muitas vezes aos leitores ocidentais com pouco conhecimento na área, revelaram falta de compreensão dos condicionalismos culturais e históricos por detrás da descrição de certas práticas culturais, como sati, circuncisão genital feminina, dote, etc. O exemplo clássico, já fortemente criticado por Audre Lord (2007a) na sua carta à autora do livro em questão, Mary Daly (Gyn/Ecology, publicado pela primeira vez em 1978)5, é como ela utiliza exemplos de práticas culturais na Índia e África sem pesquisar, de forma objetiva, os contextos de cada uma das práticas que critica.

Como observaram as feministas do Terceiro Mundo, o feminismo ocidental teve tendência para omitir e marginalizar as mulheres não-ocidentais que, por conta da sua etnia, classe e/ou orientação sexual, já estavam marginalizadas. Os seus interesses, simplesmente, não faziam parte das análises e agendas políticas das feministas ocidentais.

5 A carta (“An Open Letter to Mary Daly”) foi escrita no dia 6 de maio de 1979 e na sequência de falta da

resposta por parte de Mary Daly, quatro meses mais tarde, Audre Lorde decidiu publicar a carta para esta poder ser lida por todos/todas os/as leitores/as. No entanto, alguns académicos mantêm que Mary Daly chegou a responder à carta de Audre Lorde e esta resposta foi encontrada entre os dossiers de Lorde.

Fonte: http://www.historyisaweapon.com/defcon1/lordeopenlettertomarydaly.html [acedido dia 26 de novembro de 2013 às 12h55].

26 Exclusões deste tipo contribuíram e continuam a contribuir para a construção de teorias pouco verídicas e adequadas às mulheres do Terceiro Mundo. Estas teorias não conseguem fornecer respostas ao que, supostamente, desejam fazer: unir todas as mulheres do mundo. Por outro lado, quando aparecem os trabalhos que pretendem incluir no projeto feminista as mulheres do Terceiro Mundo, o que eles realmente fazem é excluir e silenciar estas mulheres através de uma representação mal informada e preconceituosa. Narayan acredita que são estas representações erradas das culturas do Terceiro Mundo que constituem um obstáculo à mútua compreensão e à construção de “comunidades de resistência” (Narayan, 1997: 45).

Quando as feministas ocidentais tratam os temas relacionados com as práticas culturais como o sati, o casamento precoce de raparigas, o dote, a circuncisão genital feminina ou a questão de véu, todas estas práticas são privadas do seu contexto que muda de país para país, de comunidade para comunidade e que depende da época na história (Lazreg, 1988: 86). Desta forma, argumenta Narayan, (e as palavras dela ecoam nos trabalhos de Mohanty), apaga-se a história e oculta-se o contexto da tradição. O problema habita na noção de durabilidade de certas práticas, como se as mudanças culturais não operassem no seio da sociedade sujeita à transformação ao longo dos tempos. Deparamo- nos aqui, sem dúvida, com o legado da filosofia ocidental segundo o qual os sítios como África eram lugares sem história e que a sua história começou somente com a chegada do colonizador branco (Said, 1994).

No mesmo sentido e com o objetivo de denúncia, ergue-se a voz de Chandra Talpade Mohanty, outra feminista indiana radicada no Ocidente. Segundo ela, alguns dos textos que perpetuam a imagem monolítica da mulher do Terceiro Mundo colonizam novamente as vidas e as experiências de vários grupos de mulheres, apagando as suas especificidades (Mohanty, 2003). No imaginário ocidental, é nestas terras – imóveis, resistentes à mudança, subdesenvolvidas – é que a mulher se encontra vítima das tradições. Segundo esta lógica, a “típica” mulher do Terceiro Mundo está severamente limitada e vitimizada. Vejamos um fragmento muito relevante que ilustra esta tese:

“(…) Third World women as a group or category are automatically and necessarily defined as religious (read: not progressive), family-oriented (read: traditional), legally unsophisticated (read: they are still not conscious of their rights), illiterate (read: ignorant), domestic (read: backward), and sometimes revolutionary (read: their country is in a state of war; they must fight). This is how the “Third World difference” is produced.”

27 Esta imagem contrasta claramente com a da mulher ocidental enquanto ser moderno, livre de fazer as suas escolhas e opções, educada e não constrangida por religião ou por tradição (Mohanty, 2003: 30). À medida que mulheres ocidentais têm todo o controlo sobre as suas vidas e os seus corpos, mulheres do Terceiro Mundo apresentam-se como seres passivos, pouco conscientes da sua condição precária, silenciados e, acima de tudo, com necessidade de apoio por parte das suas “irmãs” ocidentais. Tal análise normativa, com a distribuição desigual de poder e das capacidades, contribuiu fortemente para a vitimização de mulheres do Terceiro Mundo e para a sua apresentação enquanto “Outras”. A “Outra” aparece diante de nós como um ser construído através do discurso normativo e redutor, nunca ganhando a subjetividade de uma mulher material, viva e real, agente da sua própria vida e história.

Os títulos analisados por Mohanty a propósito de mulheres do Terceiro Mundo corroboram a sua teoria e as denúncias feitas tanto por ela, como por outras intelectuais. A título de exemplo, “Comparative Perspective of Third World Women: The Impact of Race, Sex and Class” (1983) de Beverly Lindsay, “Women of Africa: Roots of Oppression” (1983) de Lindsay Cutrufelli, “Frogs in a Well: Indian Women in Purdah” (1979) de Patricia Jeffrey – todos estes trabalhos reproduzem a mesma imagem de mulheres do Terceiro Mundo que não possuem interesses políticos, que são política e/ou economicamente dependentes e não têm nenhum poder nas suas comunidades e vidas. A mulher do Terceiro Mundo presente nestas imagens é sempre mutilada pela sua própria comunidade. Questiona Mohanty: seria possível e aceitável publicar um livro intitulado “Mulheres da Europa” quando se sabe muito bem que o tal essencialismo e o apagamento de diferenças entre mulheres europeias seria uma forma de crime contra elas (Mohanty, 2003: 25)?

“When “women of Africa” as a group (versus “men of Africa” as a group?) are seen as a group precisely because they are generally dependent and oppressed, the analysis of specific historical differences becomes impossible, because reality is always apparently structured by divisions – two mutually exclusive and jointly exclusive groups, the victims and the oppressors. Here the sociological is substituted for the biological, in order, however, to create the same – a unity of women. Thus it is not the descriptive potential of gender difference but the privileged positioning and explanatory potential of gender difference as the origin of oppression that I question.”

(Mohanty, 2003: 25-26) Neste contexto, Taiwo (2003: 46) fala da pobreza profunda da teoria feminista ocidental. Aborda a pobreza no sentido de ausência ou da insuficiência teórica. Como explica, pode também existir pobreza no sentido de irrelevância duma teoria. Cremos que

28 no contexto da teoria feminista ocidental, na sua relação com a África e o modus operandi com que tratou as mulheres africanas, podemos afirmar que Taiwo se refere não à ausência da teoria mas à sua insuficiência em termos de categorias da análise. Não existe, segundo o autor, a tal ligação necessária entre a vida e a teoria. Tal como Leila Ahmed (1982) denunciou a ignorância total do mundo ocidental acerca de mundo árabe e os condicionalismos da vida quotidiana de mulheres árabes, também os/as académicos/as africanas acusaram as académicas ocidentais de ignorância e de falta de vontade de ouvir as mulheres africanas. Analisando os aspetos estereotípicos do trabalho sobre as mulheres Kaguru levado a cabo por Meeker & Meekers em 1997, pergunta Taiwo:

“Why is it necessary to generalize from Kaonde or Kaguru women to African women at large? What is it about Kaguru or Kaonde women that magically transforms them into typical African women unless we already assumed the coherence of the phrase or have decided that all African women are the same? It is problematic enough, once one sets out with some respect for the complexity of one´s subject matter, to speak of Kaguru women. How much more will it be to speak of Tanzanian, not to talk about East African, or African women? This penchant for generalization must be traced to a fundamental lack of respect for the complexity of African life.”

(Taiwo, 2003: 60) Trata-se de um exemplo de um fenómeno que Lazreg (1988: 96) denomina «exercer poder discursivo sobre a “Outra”». Ela afirma que mulheres no Terceiro Mundo encontram-se “capturadas” entre três tipos de discurso: o discurso disseminado por homens sobre a diferença do género, o discurso sociológico (científico) sobre os povos do Terceiro Mundo (no artigo dela, precisamente do Norte da África e do Médio Oriente) e o discurso produzido dentro da academia feminista sobre as mulheres inseridas nas sociedades não- ocidentais. Lazreg fornece alguns exemplos destes discursos, um deles sobre o uso de véu como símbolo, na imaginação ocidental, da subjugação e opressão da mulher árabe. Não interessam os contextos, as motivações políticas de mulheres que decidem usar o véu – o discurso ocidental nega às mulheres árabes a liberdade de decidir se querem ou não usar véu, bem como o respetivo motivo. Junto das feministas ocidentais, sublinhou-se o facto de o véu poder, em alguns casos, em alguns contextos e em algumas épocas, tornar-se um símbolo de resistência contra a cultura e as políticas imperialistas do Ocidente, porém as vozes das feministas árabes continuam, muitas vezes, abafadas e negadas.

O argumento sobre o silenciamento da voz da mulher árabe é confirmado por Taiwo quando refere uma situação bastante frequente na academia ocidental: dois anos depois de Leila Ahmed ter publicado, na revista Feminist Studies, o seu artigo crítico sobre a abordagem ocidental das complexidades do mundo árabe, tentando chamar a atenção

29 para a problemática de práticas de exclusão de “outros” conhecimentos, Barbara K. Larson publica noutra revista de renome, Signs, um artigo onde descreve a condição oprimida da mulher árabe, a vítima, muda e passiva, do Islão, sem sequer ter mencionado o trabalho efetuado por Ahmed. A triste conclusão é que «No Arab or African scholar qualifies as required or even recommended reading» (Taiwo, 2003: 54).

No mesmo sentido, Wanjira Muthoni argumenta que a questão da mutilação genital feminina assume grande importância para as mulheres ativistas em África mas que, quando confrontadas com as acusações moralistas e pouco informadas do ponto de vista cultural feitas por feministas ocidentais, que se sentem no seu direito de instruir as mulheres africanas sobre os efeitos nocivos desta prática, fazem com que qualquer possibilidade de cooperação, ou mesmo a compreensão seja gravemente comprometida (Arndt, 2000: 724). Okome (2003) vai ainda mais longe quando argumenta que o próprio termo “mutilação genital feminina” (inglês: Female Genital Mutilation, FGM) serve para disseminar a ideia de que as sociedades africanas praticam esta tradição para desfigurar, deliberadamente, os corpos de mulheres:

“Indeed, the practice of female genital surgeries has been identified by Western feminists as the ultimate signifier of African male dominance and women´s powerlessness. (…) The term FGM is problematic not only because it emerges from an assumption that the intent of societies in which these procedures are practiced is to control women by wreaking violence on them, but also these societies are presumed to desire butcher, mangle, deform, assault and batter their women en masse, an assumption that has not be conclusively proven.”

(Okome, 2003: 68) Tendo, então, em consideração os graves problemas com os quais as mulheres do Terceiro Mundo se deparam a respeito do direito de autodefinição, Lazreg coloca uma pergunta de grande importância: se as intelectuais feministas no Ocidente lutaram durante décadas contra as imagens estereotipadas e redutoras das mulheres brancas que persistiam na história e na cultura ocidental, porque é que fizeram o mesmo a mulheres não ocidentais? Porque é que consolidaram as imagens negativas sobre a Outra, contribuindo para a sua múltipla marginalização, se elas próprias eram, outrora, vítimas das mesmas imagens negativas e redutoras? E, por fim, porque é que, se o feminismo e a sua epistemologia assentam na experiência pessoal, se negou às mulheres do Terceiro Mundo esta possibilidade de exprimir as suas próprias experiências e contar as suas histórias? Porque, como se tornou claro, a experiência das mulheres do Terceiro Mundo foi sempre subvalorizada e rotulada como “conhecimento local” (Lazreg, 1988: 84).

30 A diferença tão temida no feminismo ocidental operou a dois níveis. Por um lado, fez com que fosse “essencializada” e criasse a “Outra” (Narayan, 2003: 85) – tão diferente que não pode ser compreendida e marcada pela sua cultura onde a cultura surge como um carimbo no corpo da mulher. Por outro lado, esta diferença resultou no apagamento da “Outra”, onde as categorias como a raça, a classe, a religião, a cor e a própria individualidade da mulher são sujeitas à invisibilidade. Conclui Lazreg: «For example, a Muslim woman is no longer a concrete individual. She is not Algerian or Yemeni – she is an abstraction in the same way as a “woman of color” is» (Lazreg, 1988: 98). E podíamos acrescentar: ela é uma abstração da mesma forma que é abstração a mulher africana, ou indiana ou latino-americana.