• Nenhum resultado encontrado

Na margem do cânone – exclusão de escritoras africanas

4. A escrita literária como voz de insurgência

4.1. Na margem do cânone – exclusão de escritoras africanas

O campo da literatura africana, e por conseguinte, o conceito de “cânone” literário sempre pertenceu aos homens, e esta situação continua a persistir até aos dias de hoje, embora possamos ouvir cada vez mais vozes femininas, nesta área prestigiosa da produção literária. Lília Momplé (1999) admite que a própria palavra “cânone” é virtualmente

49 desconhecida entre escritores e escritoras moçambicanos – é a palavra que gera uma certa confusão. No entanto, esta escritora moçambicana tem certeza sobre uma coisa e afirma: «(…) nenhuma escritora moçambicana se encontra representada no cânone educativo. Nos livros de leitura adoptados para o ensino, os nossos textos simplesmente não existem.» (Momplé, 1999: 32-33).

Como afirma Catarina Martins (2011) no seu artigo publicado em e-cadernos do CES Coimbra intitulado “´La Noire de…´ tem nome e voz. A narração de mulheres africanas anglófonas e francófonas para lá da Mãe-África, dos nacionalismos anticoloniais e de outras ocupações”, a situação do cânone literário africano ser “ocupado” e definido principalmente por homens, tem vindo a ser criticado pelas escritoras africanas e pela crítica feminista, particularmente a partir dos anos oitenta do século XX (Martins, 2011: 119). O papel das feministas no processo da escrita tem vindo a ser crucial «com a inclusão, portanto, na academia de preocupações de investigação e críticas que ora denunciassem as mensagens sexistas (escritos quer por homens, quer por mulheres), ora revelassem vozes, até então silenciadas, que retiravam a mulher do lugar de subalternidade que até então lhe havia sido atribuído» (Macedo, Amaral, 2005: 14). A palavra, a expressão literária tornaram-se uma arma feminista e serviram para alcançar os objetivos de mulheres africanas dedicadas à defesa dos direitos das mulheres e da mudança social, como observámos no capítulo anterior.

Segundo argumenta Catarina Martins, o facto de as mulheres terem sido excluídas e subalternizadas no domínio literário prende-se com a luta anticolonial e anti-imperialista. A dimensão da literatura africana está fortemente ligada às questões políticas, coloniais, da luta contra o colonizador e pós-colonialismo. Costumava-se argumentar que foram estes temas que dominaram a produção literária africana e que contribuíram para o estabelecimento do “cânone” literário masculino. O livro “The Empire Writes Back” (1989) de Bill Aschcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin analisa a literatura africana e cita somente três nomes de mulheres escritoras entre todo o batalhão de homens. Florence Stratton (1994) e Makuchie Nfah-Abenuyi (1997) confirmam também que nos trabalhos em que analisaram a literatura africana se ignoraram as questões de género; a experiência literária das mulheres escritoras foi sujeita à invisibilidade e, até, ao apagamento.

50 É inegável que os trabalhos académicos dedicados à literatura africana deram pouca atenção à expressão literária das mulheres africanas. As revistas académicas (a título de exemplo, African Literature Today) ilustraram esta tendência visto que, se apareciam artigos publicados sobre a literatura feminina, os mesmos surgiam, principalmente, nas edições especiais dedicadas a mulheres escritoras (isto, nos anos 70 e 80 do século XX) (Aidoo in Stratton, 1994). Foram publicados alguns livros dedicados ao assunto de mulheres africanas na literatura, mas estes apareciam esporadicamente. Além disso, as mulheres africanas, enquanto escritoras, não só foram ignoradas nos trabalhos dedicados à literatura africana, mas a sua voz, quando falaram, foi silenciada. Como se afirma (in Nfah- Abenuyi, 1997: 6): «the neglect of the woman as a writer in Africa has been an unfortunate omission because she offers self-images, patterns of self-analysis, and general insights into the woman´s situation which are ignored by, or rather inaccessible to, the male writer».

A exclusão das escritoras africanas do campo da literatura reconhecida pelo Ocidente repetiu-se no solo africano. Afirma Nfah-Abenuyi (1997: 2) que embora as mulheres africanas tenham sido ativas no campo da literatura tradicional oral, enquanto escritoras têm sido ignoradas e nunca receberam a atenção que mereciam. A autora fornece algumas explicações acerca desta situação. Em primeiro lugar, relata que uma das principais razões foi a chegada tardia das mulheres à cena literária dos muitos países africanos – neste caso os fatores que influenciam esta chegada tardia são: educação que privilegia rapazes, costumes relacionados com o casamento e os sistemas tradicionais da família que não permitiram às mulheres desenvolver as suas capacidades literárias. No entanto, a mesma autora afirma que a partir dos anos 60 do século XX havia mulheres africanas que publicaram os seus trabalhos (por exemplo, Flora Nwapa, Buchi Emecheta, Ama Ata Aidoo, etc.). Todavia os escritores promoviam o seu trabalho e a sua escrita à custa das suas conterrâneas (Nfah-Abenuyi, 1997:3). É importante aqui relembrar que houve alguns progressos neste campo existindo atualmente muito mais interesse pela literatura das mulheres africanas do que nos anos 70 e 80 do século XX, em resultado da insistência das académicas feministas em estudar a escrita das mulheres (Nfah-Abenuyi), 1997). No entanto, é de extrema importância continuar o trabalho e ouvir o que as mulheres africanas têm a dizer sobre si e as suas irmãs.

A separação do feminismo ocidental explorada nos capítulos anteriores prendeu-se também com a necessidade de, primeiro, desconstruir a mulher africana enquanto Outra

51 mas, ao mesmo tempo igual às outras mulheres africanas e, no passo seguinte, de construir de novo as mulheres africanas enquanto seres heterogéneos, distintos e que tenham a sua própria voz e que possam negar a visão redutora ocidental da mulher africana pobre, ignorante, rural, sem poder e presa à tradição misógina da sua sociedade. Assim, o papel da literatura africana escrita por mulheres é o de «afirmação do papel das mulheres nas sociedades e nas culturas africanas» (Martins, 2011: 126).

4.2. Romper com os estereótipos à volta de mulheres africanas: a narrativa de