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O feminismo africano e a escrita de Chimamanda Ngozi Adichie

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Academic year: 2021

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Março, 2014

„E OUVIRAM-SE AS VOZES DE MULHERES AFRICANAS...”

O FEMINISMO AFRICANO E A ESCRITA DE CHIMAMANDA

NGOZI ADICHIE”

Natalia Telega-Soares

Dissertação

de Mestrado em Estudos sobre as Mulheres.

As Mulheres na Sociedade e na Cultura.

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Mestrado em Estudos sobre as Mulheres. Mulheres na Sociedade e na Cultura, realizada sob a orientação científica de Professora Doutora Ana Paiva Morais e Professora Doutora Ana Maria Mão de Ferro Martinho Carver Gale.

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“I am not free while any woman

is unfree, even when her shackles

are very different from my own.

And I am not free as long as

one person of color remains chained.

Nor is any one of you.”

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação representa um caminho – uma viagem ao meu interior – no sentido de aquisição de conhecimentos, que considero preciosos e do despertar da consciência sobre matérias que acredito me alargaram os horizontes e me enriqueceram pessoalmente. Um percurso pautado, por vezes, por incertezas, questionamentos e pontual desalento mas que, acima de tudo, se revelou num trilho cheio de luz, cores e fragrâncias – com novas vozes que passaram a ecoar na minha vida – quando a minha imaginação e reflexões se familiarizaram com a temática, na senda de respostas a perguntas que me colocara no início da pesquisa.

Não existem palavras que possam exprimir a minha gratidão a quem comigo embarcou nesta aventura e me fortaleceu, nomeadamente em momentos menos fáceis.

Os primeiros agradecimentos são endereçados à minha Orientadora, a Professora Doutora Ana Paiva. Não será exagero se admitir que a Professora se revelou a orientadora de sonho. Registo, com grande apreço, o entusiasmo com que me aceitou como orientanda e como isso representou, para mim, um enorme privilégio. Pelo apoio técnico, referências, sugestões, palavras reconfortantes, encorajamento e atenção que me dispensou – a minha profunda gratidão.

Expresso palavras de agradecimento também à Professora Doutora Ana Mão de Ferro Martinho Gale – pela gentileza ao aceitar a tarefa de coorientação desta dissertação, pelo apoio no que se reporta a indicações bibliográficas e pela estimulante troca de ideias que me proporcionou.

À São, minha querida cunhada e amiga, uma grande mulher que admiro e sempre vou admirar, por todo o apoio ao longo dos últimos meses e pela leitura crítica do meu trabalho. As suas palavras cheias de força animaram-me quando foi preciso.

Ao José, meu marido e grande amigo, minha alma gémea, pelo apoio constante em cada fase de realização deste estudo, desde a conceção à paginação, acompanhando sempre com afeto e entusiasmo as minhas inquietações e descobertas. Obrigada por teres caminhado comigo!

Todos os meus pensamentos vão para os meus queridos Pais que, embora vivam quase a 4.000 quilómetros de Portugal, estão presentes no meu coração. Estou grata por terem sempre acreditado em mim e, com isso, me terem feito acreditar que com ética, trabalho, esforço e determinação tornamo-nos naquilo que queremos ser.

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Por fim, não posso deixar de mencionar as minhas amigas e amigos que estiveram também ao meu lado e me prestaram atenção, auxílio, colocando questões que me ajudaram a refletir e a prosseguir: Ewa K., Ewa S., Gabriela M., Juliana S., Joana C. e Przemek Z. Obrigada por fazerem parte da minha vida!

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RESUMO

„E OUVIRAM-SE AS VOZES DE MULHERES AFRICANAS...” O FEMINISMO AFRICANO E A ESCRITA DE CHIMAMANDA NGOZI

ADICHIE”

NATALIA TELEGA-SOARES

Esta dissertação tem como objetivo analisar a problemática do pensamento de mulheres negras, afro-americanas e africanas, expressamente nas suas obras selecionadas para o efeito. Pretende-se aprofundar as questões relacionadas com a problemática do racismo e das práticas de exclusão levadas a cabo por feministas brancas ocidentais perante mulheres negras e denunciadas por intelectuais negras como bell hooks, Patricia Hill Collins, Audre Lorde, feministas pós-coloniais como Uma Narayan, Chandra Talpade Mohanty e Gayatri Chakravorty Spivak e africanas, nomeadamente Molara Ogundipe-Leslie, Oyeronke Oyewumi, Chikwenye Ogunyemi, etc.

No âmbito deste trabalho, dar-se-á particular relevo à questão da voz de mulheres negras, no sentido da sua capacidade de denunciar as práticas discriminatórias por parte dos feminismos ocidentais que relegaram as mulheres negras à margem da vida cultural e histórica. Analisar-se-á a razão por detrás de distanciamento de feministas negras de alguns conceitos promovidos por feminismos ocidentais e explicar-se-á a importância da insistência de mulheres negras no seu direito à auto-nomeação enquanto ato político e simbólico. O ato que leva as mulheres negras a elaborar respostas mais adequadas à realidade e às necessidades das suas conterrâneas que não são, de maneira nenhuma, idênticas às verbalizadas pelas feministas no Ocidente.

Nesta dissertação de mestrado, optou-se, principalmente, por uma perspetiva cultural (na sua parte dedicada à teoria feminista, por exemplo) de forma a enquadrar a problemática da mulher africana enquanto sujeito com voz. A parte baseada em obras literárias incluída na dissertação, que apresenta dois romances de autora nigeriana da nova geração, Chimamanda Ngozi Adichie, terá como objetivo fornecer um instrumento de análise mais prático dos problemas abordados na parte inicial.

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ABSTRACT

“AND THERE WERE HEARD AFRICAN WOMEN´S VOICES ...” THE AFRICAN FEMINISM AND CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE´S

WRITING”

The aim of this thesis is to examine problematics of thought expressed in selected writings by Black, Afro-American and African women. We sought to fathom questions related to the problem of racism and exclusionary practices implemented by White Western feminists toward Black women and denunciated by Black female intellectuals, such as bell hooks, Patricia Hill Collins, and Audre Lorde; by post-colonial feminists, such as Uma Narayan, Chandra Talpade Mohanty, and Gayatri Chakravorty Spivak; and, finally, by African women, namely, Molara Ogundipe-Leslie, Oyeronke Oyewumi, and Chikwenye Ogunyemi, among others.

Within the scope of this work, particular focus shall be placed on the question of Black women´s voice, specifically its ability to denounce discriminatory practices implemented by Western feminisms that relegate Black women to the margin of cultural and historical life. We will examine the reasons behind detachment of Black feminists from some of the concepts disseminated by Western feminisms, and we will expound significance of Black women´s insistence upon their right to self-naming as a political and symbolic act - the act which prompts Black women to elaborate more adequate answers to their own reality and necessities which are not, by any way, synonymous to those expressed by the feminists in the West.

In this Master Thesis, we have opted for a cultural perspective (in the Thesis´s part dedicated to the feminist theory, for instance) to contextualise the problematics of the African woman as an individual possessing her own voice. The part based on literary works included in this study presenting two novels by a Nigerian female writer of the new generation, Chimamanda Ngozi Adichie, has as its aim to provide a tool for a more practical analysis of the questions touched upon in the initial part.

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ÍNDICE

Introdução ………... 1

1. Mulheres Afroamericanas e a crítica do feminismo anglo-americano …... 5

1.1. O conceito de irmandade enquanto fundamento do feminismo branco ……… 5

1.2. Críticas do feminismo hegemónico e do conceito de irmandade por mulheres negras ……… 7

1.3. Imagens estereotípicas das mulheres negras ………... 8

1.4. As práticas de racismo e da exclusão no passado histórico ………... 11

1.5. As experiências das mulheres negras enquanto conhecimento subjugado ……. 12

1.6. As vozes emergentes de mulheres negras na contemporaneidade e na História passada...………... 14

1.7. Os pontos de rutura entre feministas brancas e negras………. 17

2. Construção da mulher do Terceiro Mundo enquanto “Outra” ……… 20

2.1. O que significa “Terceiro Mundo”? ……… 21

2.2. Mulher colonizada entre duas culturas em guerra ……… 22

2.3. Imagens da “Outra” na epistemologia feminista ocidental ……….. 25

2.4. Pode a “Outra” falar? ……….. 30

3. O Feminismo africano e o pensamento centrado nas mulheres ………. 32

3.1. As linhas de demarcação entre o feminismo ocidental e africano ……… 33

3.1.1. Género enquanto uma categoria da análise ……….. 33

3.1.2. Posicionamento perante homens e maternidade ……… 34

3.2. O ato libertador de auto-nomeação ………. 36

3.3. Conceitos e alternativas oferecidos por mulheres africanas ……….. 37

3.3.1. Womanism de Chikwenye Ogunyemi ……… 38

3.3.2. Africana womanism de Cleonora Hudson-Weems ……… 40

3.3.3. Stiwanism de Molara Ogundipe-Leslie ……….. 41

3.3.4. Motherism de Catherine Acholonu ……… 43

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4. A escrita literária como voz de insurgência ……….... 47

4.1. Na margem do cânone – exclusão de escritoras africanas ………. 48

4.2. Romper com os estereótipos à volta de mulheres africanas: a narrativa de Chimamanda Ngozi Adichie ……… 51

4.2.1. A Cor de Hibisco ………. 52

4.2.2. Meio Sol Amarelo ……… 56

Conclusões ……….. 62

Referências bibliográficas ………. 65

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1 Introdução

Esta dissertação intitulada “E ouviram-se as vozes de mulheres africanas…” Feminismo africano e a escrita de Chimamanda Ngozi Adichie” nasceu da vontade de contribuir para o campo dos Estudos sobre as Mulheres através da análise da temática da voz da mulher negra, da invisibilidade desta e das múltiplas opressões que a relegam para a margem da cultura. Ao longo dos últimos anos, através do processo de leitura e reflexão, temo-nos apercebido da necessidade de estudar e analisar a problemática do pensamento da mulher negra e da sua forma de abordar a sua condição e posição perante o mundo, para que o seu pensamento e a escrita sejam mais conhecidos e apreciados. Acreditamos que a análise da problemática das questões relacionadas com os feminismos negros e africanos, a reflexão sobre a reação das mulheres negras no que diz respeito à construção da mulher do Terceiro Mundo enquanto Outra e sobre a insistência das mulheres africanas no direito à auto-nomeação, enriquecem o conhecimento académico, abrindo espaço para discussão e reflexão acerca de questões levantadas neste estudo.

O presente trabalho pretende trazer respostas às questões que nos inquietaram profundamente: porque é que as mulheres negras se separaram do movimento feminista ocidental e não se identificaram com muitos aspetos que motivaram as feministas brancas, porque é que as feministas ocidentais excluíram as mulheres negras do seu conceito de “irmandade”, como é que as intelectuais negras, afro-americanas e da diáspora africana reagiram ao conceito de “irmandade”, quais foram os pontos de rutura entre as feministas brancas e negras, e, por fim, como as intelectuais negras usaram a sua voz, que lhes foi, outrora, negada, para denunciarem as práticas racistas e discriminatórias dos feminismos brancos. A insistência das feministas africanas em se autonomearem, em criarem a sua própria terminologia que se adequasse melhor às suas vidas e realidades, constituiu um ponto muito importante para este trabalho, pois permitiu demonstrar que as mulheres africanas não são vítimas mudas sem a sua própria voz expressa através da palavra escrita. Aliás, o termo “voz” é o fio condutor de todo o trabalho, ligando os seus capítulos com o objetivo de desenhar uma imagem da mulher africana enquanto ser poderoso, ciente de si e capaz de desafiar não só os estereótipos provenientes do ocidente mas também as normas culturais africanas.

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2 É de extrema importância aqui sublinhar que não se trata, e não se pode tratar, de todas as mulheres africanas de forma equivalente, tal como todo o continente africano não pode ser visto e “lido” segundo os mesmos critérios, pois a sua riqueza histórica e cultural não o permite. Tratar as mulheres africanas como indivíduos homogéneos seria uma forma de lhes recusar a sua singularidade e heterogeneidade.

Em termos de orientações teóricas, pretende-se apresentar algumas correntes da teoria feminista, analisar o conceito de “irmandade” como um dos principais motivos de atuação das feministas ocidentais da segunda vaga, para compreendermos melhor a separação dos feminismos brancos por parte das algumas feministas pós-coloniais. Serão ainda apresentados alguns dos conceitos fundamentais dos “feminismos” africanos para compreender o caminho que as mulheres africanas percorreram e com que dificuldades se depararam na sua busca de autodefinição, e de apresentação de soluções teóricas para a problemática das mulheres que são provenientes delas próprias - do seu percurso intelectual e da sua escrita - e não do mundo exterior, ocidental.

A bibliografia utilizada para o efeito foi escolhida cuidadosamente para que pudesse ilustrar as problemáticas referidas. Revelou-se muito estimulante e importante para nos apresentar algumas intelectuais negras que se tornaram ícones do pensamento feminista negro e analisar alguns dos seus trabalhos. Desta forma, optou-se por livros e ensaios escritos ainda nos anos 70, 80 e 90 do século XX por académicas negras como, por exemplo, bell hooks, Patricia Hill Collins, Angela Davis, Audre Lorde, Mary Kolawole, Oyeronke Oyewumi, Molara Ogundipe-Leslie, as feministas do Terceiro Mundo (o uso do termo será apresentado no Capítulo 2) como Gloria Anzaldúa, Uma Narayan ou Chandra Talpade Mohanty, visto que o que interessava era identificar o pensamento das mulheres negras analisando a sua escrita e, desta forma, dar-lhes voz, em vez de analisar as obras das feministas ocidentais sobre as mulheres negras.

O objetivo principal desta dissertação de mestrado será argumentar e provar que as mulheres africanas lutam, com sucesso, contra a imagem que lhes é imposta de serem mudas, de não terem a voz com que se possam autodefinir, de dar o nome à sua luta e ao seu quotidiano. É importante realçar que se abordará, principalmente, a perspetiva cultural (na sua parte dedicada à teoria feminista, por exemplo) de forma a enquadrar a problemática das mulheres africanas enquanto detentoras de voz no sentido de elas serem capazes de se pronunciar sobre a sua condição e vida. A parte desta dissertação que incidirá sobre obras literárias terá como objetivo fornecer um instrumento mais prático de

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3 análise dos problemas abordados na sua parte inicial. A escolha de uma escritora africana que pudesse ilustrar a tese desta dissertação, de que as mulheres são detentoras de uma voz própria, lutadoras e raramente se assumem como vítimas, foi ditada por várias razões. É verdade que Chimamanda Ngozi Adichie é, atualmente, uma das mais conhecidas e lidas autoras africanas e uma escritora cujas obras se encontram traduzidas para várias línguas. Além disso, ela é considerada uma escritora talentosa, premiada por cada um dos seus romances, e que, nas suas obras, se debruça sobre temáticas importantes para o povo nigeriano. No entanto, a sua escrita toca nas problemáticas que são cruciais para este trabalho – a situação das mulheres africanas nas suas sociedades e as estratégias de sobrevivência que adotam face às dificuldades. Por escrever com mestria sobre mulheres, celebrando as suas forças e capacidades, como recomendou às escritoras africanas a académica e feminista nigeriana Chikwenye Ogunyemi (1985), Chimamanda Ngozi Adichie revelou-se o exemplo perfeito da voz da escritora africana contemporânea.

O presente trabalho encontra-se dividido em quatro capítulos, sendo os três primeiros de cariz mais teórico. O capítulo 1 debruça-se sobre o conceito de “irmandade” desenvolvido por feministas brancas ocidentais, o problema do racismo no movimento e pensamento feminista na história passada e no presente, analisando a escrita das mulheres afro-americanas e a sua insistência na necessidade de desconstruir a imagem negativa da mulher negra e da sua sexualidade. Serão ainda apresentados exemplos das práticas de exclusão por parte das feministas brancas ocidentais no mundo académico e literário. O capítulo 2 centrar-se-á na denúncia do silenciamento das mulheres do Terceiro Mundo por parte das feministas ocidentais. A partir dos textos de Uma Narayan e Chandra Talpade Mohanty analisar-se-á como as obras sociológicas e literárias produzidas no Ocidente contribuíram para a construção da mulher do Terceiro Mundo enquanto “Outra”, vítima sem voz. Da mesma forma, a mulher africana foi construída enquanto vítima pobre, ignorante e inconsciente da sua situação. No capítulo 3 serão analisados os conceitos ligados às várias versões do “feminismo” africano, questão muito importante para as intelectuais africanas se autonomearem e autodefinirem, sendo que o poder de darem o nome à sua luta constitui um ato político. Nesta parte do trabalho tentaremos compreender quais são as vertentes e as leituras do feminismo africano e o motivo pelo qual as intelectuais africanas fizeram o esforço de se separar do feminismo ocidental. O último capítulo debruçar-se-á sobre dois romances de Chimamanda Ngozi Adichie – “A Cor do Hibisco” (2003) e “Meio Sol Amarelo” (2006) de forma a compreender se, e em que

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4 medida, a ficção duma das escritoras africanas da nova geração contribuiu para devolver a voz perdida das mulheres africanas.

É verdade que Adichie publicou três romances (sendo “Americanah” publicado em 2013 o terceiro romance), um volume de contos (The Thing around Your Neck, 2009) e uma peça de teatro (For Love of Biafra, 1998), no entanto, para objeto desta dissertação centrar-nos-emos nos dois primeiros romances. Esta opção justifica-se porque o âmbito desta dissertação não engloba toda a obra da autora e não pretende analisar de forma exaustiva todas as dimensões da sua escrita. O romance “Americanah” merece, sem dúvida, um estudo separado, visto que as questões de identidade racial, de pertença étnica e da identidade construída à volta da raça e das relações inter-raciais nos Estados Unidos transcendem o objetivo deste trabalho. A personagem principal de “Americanah” – Ifeoma - é extremamente complexa e construída, também, em grande parte, em torno destas questões raciais as quais merecem um tratamento específico e mais desenvolvido do que seria possível realizar neste estudo, sob pena de resultar numa análise incompleta. Feita essa escolha, procederemos à análise crítica de todas as questões enunciadas nesta Introdução, na esperança de encontrar respostas para as perguntas e tentar contribuir, de alguma forma, para imprimir visibilidade ao pensamento e à figura da mulher africana, enquanto entidade dotada de voz própria.

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5 1. Mulheres Afroamericanas e a crítica do feminismo anglo-americano

O objetivo deste capítulo será compreender, através de literatura selecionada para o efeito, e criada, principalmente nos anos 80 e 90 do século XX, porque é que um dos grandes conceitos dos feminismos brancos ocidentais – o da irmandade (sisterhood) – nunca foi abraçado por mulheres negras. Tentaremos analisar criticamente as reações expressas através da escrita – ensaios, artigos, livros completos – de mulheres negras que, principalmente nas últimas décadas do século passado, se ergueram contra as imagens estereotipadas dominantes das sociedades brancas ocidentais e que se estendem à crítica feminista. Foram estas imagens, que datam dos tempos de escravatura e que perduram até ao dia de hoje, que relegaram as mulheres negras à invisibilidade histórica e cultural. Audre Lord (2007a) afirma que a invisibilidade de mulheres negras é o resultado da visibilidade distorcida pela cultura e do silêncio imposto a mulheres negras. A noção de irmandade promovida por feministas brancas assentava na crença de que todas as mulheres sofriam do mesmo tipo de opressão (patriarcal) pelo que se revelou, graças ao trabalho efetuado por várias feministas negras, um conceito oco, falso e hipócrita, como teremos a possibilidade de verificar.

1.1. O conceito de irmandade enquanto fundamento do feminismo branco

Nas últimas décadas do século XX, durante a segunda vaga dos feminismos, viram a luz do dia e, por conseguinte, abanaram a sociedade rompendo com ideias estabelecidas, os livros que se tornaram as principais referências para as gerações contemporâneas e futuras de mulheres cuja missão foi lutar pelos seus direitos. Em 1963 foi publicado o livro de Betty Friedan “Feminine Mystique”, sete anos depois, em 1970, Kate Millet publicou a sua tese de doutoramento “Sexual Politics”, no mesmo ano saiu o livro de Shulamith Firestone “The Dialectic of Sex: A Case for Feminist Revolution” e, também em 1970, Germaine Greer publicou o seu muito aclamado livro, “The Female Eunuch”. O ano de 1970 foi muito prolífico e testemunhou a explosão das publicações de grande impacto na área dos feminismos. Estes trabalhos serviram de inspiração para os futuros trabalhos de feministas e académicas/os. Finalmente, no mesmo ano (1970) Robin Morgan editou uma antologia de textos feministas radicais sob o título significativo “Sisterhood is Powerful”.

Todos estes trabalhos, tal como outros, não mencionados aqui, mas considerados importantes no mundo académico e ativista, visaram procurar resposta à pergunta: porque é que a mulher é oprimida, quem a oprime e quais podem ser as eventuais soluções para a

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6 sua situação. Uma das conclusões tiradas por académicas feministas foi que todas as mulheres, em todos os cantos do mundo, sofrem da mesma maneira. O conceito de patriarcado ganhou imensa popularidade dentro dos estudos sobre as mulheres e foi visto enquanto elemento principal responsável pela situação precária das mulheres (Narvaz & Koller, 2006: 51). O patriarcado é, para explicar sucintamente, a supremacia masculina em todas as dimensões da vida que relega mulheres à posição marginal dentro da sociedade – tanto no espaço público, como no privado. Como argumenta Kramarae (1993: 397), o termo “patriarcado” foi usado por feministas com grande frequência, já que parecia esgotar todas as explicações sobre a opressão de mulheres no mundo. Como afirma esta autora, através da pesquisa dos livros e documentos que tratavam da condição marginalizada das mulheres, o patriarcado foi identificado, em todos estes trabalhos, como o sistema comum à subjugação das mulheres.

Neste contexto, segundo o pensamento feminista dominante na época, se todas as mulheres sofriam do mesmo tipo de opressão das mãos de homens só por serem mulheres, o que as unia era precisamente o facto de serem mulheres. Na base desta caraterística – mulheres não relacionadas biologicamente mas sim ligadas em solidariedade em sofrimento e em luta comum contra a opressão – foi criado o termo de irmandade. A relação de amizade e irmandade entre as mulheres tornou-se a base fundamental do feminismo da segunda vaga. Na ótica das feministas, só esta relação de respeito e de amor mútuo, compreensão e solidariedade face ao sofrimento e abuso experienciado por mulheres, tem o potencial de subversão e libertação da opressão patriarcal (Lugones & Rosezelle, 2003: 406-407).

Curioso é o facto de todos estes textos publicados nos anos 70 e 80, se concentrarem somente na figura da mulher branca da classe média cuja experiência da vida no seio da sociedade branca e patriarcal passou a ser a experiência universal de todas as mulheres, em todo o mundo. Problemas enfrentados por mulheres brancas, tais como falta de oportunidades no mercado de trabalho e na vida académica, domesticidade forçada e supremacia masculina visível em cada dimensão da vida, tornaram-se, por extensão, os problemas principais de todas as mulheres.

Shulamith Firestone (1970) acusa no seu livro “The Dialectics of Sex” a família patriarcal de ser um dos maiores obstáculos à autorrealização das mulheres. Betty Friedan (1963) descobre na sua famosíssima obra “The Feminine Mystique” “o problema que não tem nome” com que a maioria de mulheres americanas tem que se confrontar: o vazio da

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7 existência da mulher da classe média que nunca trabalhou profissionalmente e que, por obrigação externa, ficou confinada à vida doméstica:

“But the new image this mystique gives to American women is the old image: ´Occupation: housewife´. Beneath these sophisticated trappings, it simply makes certain concrete, finite, domestic aspects of feminine existence – as it was lived by women whose lives were confined, by necessity, to cooking, cleaning, washing, bearing children – into religion, a pattern by which all women must now live or deny their femininity.”

(Friedan, 1963: 21) Estes trabalhos e pontos de vista contribuíram para a visibilidade da mulher enquanto vítima do sistema que a oprime ditando as condições da sua vida, as escolhas que devia fazer, os padrões que devia seguir para corresponder à imagem da mulher perfeita e, principalmente, feminina. Nestas imagens, as mulheres eram meramente bonecas, objetos de decoração sem voz própria e vontade de dar rumo à sua vida (Bartky, 1998). Não se pode, por isso, subestimar todo o efeito que as campanhas, as ações de sensibilização, os livros, os discursos, etc. tiveram na mentalidade da sociedade na altura. As mulheres feministas de segunda vaga, mostraram ao mundo que houve algo errado na forma como as mulheres eram tratadas e representadas, privadas dos seus direitos e relegadas à posição de cidadãs de segunda classe (Thompson, 2002: 338).

1.2. Críticas do feminismo hegemónico e do conceito de irmandade por mulheres negras

O pensamento feminista desenvolvido durante a segunda vaga dos feminismos veio a ser criticado fortemente por mulheres intelectuais afro-americanas e outras mulheres de cor que entraram (ou tentaram entrar) em diálogo com os principais aspetos tratados no feminismo chamado hegemónico (Thompson, 2002). Uma das principais acusações feitas ao feminismo branco foi que este levou a cabo a tentativa de se posicionar na prática política, enquanto o único movimento feminista que possuía a legitimidade para tal (Amos & Parmar, 1984: 4). A experiência das mulheres brancas foi considerada a mais adequada, a mais importante e quase universal, o que fez com que toda a panóplia de outras experiências vividas por parte das mulheres negras fosse ignorada. Amor e Parmar argumentaram que o pensamento feminista da segunda vaga nunca analisou devidamente a questão do racismo, tão profundamente enraizado nas sociedades ocidentais. A ausência da questão da raça na escrita e na prática feministas da época contribuiu para uma certa

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8 miopia entre as feministas brancas, empurrando assim a história das mulheres negras para as margens da consciência e do conhecimento.

Contra essa tradição de apagamento histórico e cultural das mulheres negras nos Estados Unidos levantaram-se várias intelectuais negras fazendo o trabalho que visava colocar as mulheres negras no centro do movimento feminista, devolvendo-lhes o valor que mereciam. Contam-se entre estas intelectuais Angela Davis, Audre Lorde, Barbara Smith, bell hooks, Frances Bell, Julianne Malveaux, Toni Cade Bambara e Patricia Hill Collins, entre outras. É claro que mais mulheres negras se envolveram ativamente na missão de devolver a voz às mulheres que foram silenciadas pelo mainstream cultural, histórico e feminista, porém a dimensão deste capítulo permite-nos só mencionar e analisar a escrita e as ideias de algumas destas intelectuais.

1.3. Imagens estereotípicas das mulheres negras

A denúncia relativamente à estereotipia e às imagens negativas sobre as mulheres negras foi já referida por parte de Angela Davis (1981: 3) que, no seu importante livro “Women, Race and Class” afirmou que, nos estudos e nas pesquisas feitos por investigadores/as americanos/as não houve espaço para nem interesse em incluir as mulheres negras. Nos trabalhos que tratavam assuntos relacionados com a família ou as tradições dos escravos, a mulher ou era invisível ou aparecia como ser extremamente sexuado e promíscuo. Aliás, os relatos e os estudos sobre a suposta promiscuidade e sexualização dos negros abundavam no mundo académico e influenciaram o imaginário popular. A mulher negra, em especial, foi considerada como “fácil” e sempre disponível sexualmente – como argumentavam as académicas negras feministas – e esta imagem prevalece até hoje, prejudicando a situação da mulher negra na sociedade contemporânea (Gilman, 1985; hooks, 1982, 1998, 2000, 2003; Collins, 2000).

Para melhor compreendermos esta imagem negativa, que é, aliás, um conjunto destas imagens relacionadas com a mulher negra na sociedade branca ocidental, necessitamos de recuar no tempo. A sexualidade dos negros, já no século XVII, tornou-se sinónimo do desvio, ato ilícito e repugnante. O apetite sexual e o desejo erótico assemelhavam-se mais aos dum macaco do que aos do ser humano (Gilman, 1985: 230). Foram estas as imagens que predominaram na literatura das viagens ou “científica” da época (séculos XVII-XIX). Com efeito, a mulher negra tornou-se o símbolo da sexualidade negra doentia – lasciva, incontrolável e contrária à sexualidade sublimada da mulher

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9 branca. Estas diferenças, como explica Gilman, serviam para diferenciar (e valorizar hierarquicamente) a raça negra e branca com o objetivo de elevar a raça branca. Vale a pena aqui salientar, que com estas tendências na ciência, na filosofia, na arte, etc. que visavam provar a superioridade biológica e moral da raça branca (Mama, 1995) a mulher branca, embora oprimida em certas formas na sua sociedade, situava-se em posição de superioridade em relação à mulher negra que se encontrava no fundo da camada social.

A ciência vai, assim, ao encontro do imaginário representado na arte – no Dictionnaire des sciences médicales (1819), a natureza sexual dos negros é descrita como “voluptuosa”, desconhecida nos climas do mundo ocidental, devido ao desenvolvimento abundante dos órgãos sexuais dos negros. A fisionomia é o que distingue as raças e é reveladora da natureza dos negros. A aparência física da mulher negra – a cor da sua pele e a forma dos seus genitais são vistos como inerentemente diferentes (Gilman, 1985: 231).

Na literatura do século XIX a mulher negra era fortemente associada à prática de prostituição. Assim, os dois elementos: o da prostituição e o da cor negra da pele iam de mãos dadas com o discurso médico e literário da época. A mulher negra era associada também aos órgãos sexuais anormais, e, por conseguinte, demonstrava a sexualidade devoradora, perigosa e ilícita.

Estes argumentos sobre as imagens relativas à sexualidade das mulheres negras ecoam na escrita de bell hooks (1982). No livro “Ain´t I a woman” a autora analisa a vida das mulheres escravas transportadas para os Estados Unidos onde foram sujeitas a todos os tipos de abusos, inclusive, ou talvez convenha admitir – principalmente – a abusos sexuais por parte do seu dono branco. Violação na propriedade branca era uma realidade quotidiana das mulheres negras. Bell hooks argumenta que toda a estereotipia ligada à sexualidade ilícita e devoradora das mulheres negras tem as suas raízes no sistema de escravatura quando todas as mulheres negras foram vistas como imorais, depravadas sexualmente e “disponíveis” em qualquer momento. Têm aqui a sua culpa também as mulheres brancas da época que contribuíram para esta opinião sobre as mulheres negras, repetindo que as mulheres negras sempre iniciavam a relação sexual com homens, e por isso justificava-se a exploração sexual das mulheres negras (hooks, 1982). Este trabalho, escrito quando a autora era muito jovem é um documento muito importante dado que imprimiu visibilidade à condição precária da mulher negra nos Estados Unidos, desde os tempos da escravatura até aos dias de hoje. É também, um grito de revolta contra as práticas de exclusão por parte das feministas brancas: «The success of sexist-racist

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10 conditioning of American people to regard black women as creatures of little worth or value is evident when politically conscious white feminists minimize sexist oppression of black women» (hooks, 1982: 51).

Alguns anos mais tarde, bell hooks continua a sua luta contra a marginalização das mulheres negras e prossegue o tema da objetificação dos corpos e da sexualidade destas mulheres. In “Selling Hot Pussy” (1998) a autora sublinha o facto de, na cultura contemporânea, estarmos a evidenciar as tendências que tiveram lugar já no século XVII e XIX, como atrás foi mencionado. Continuam as imagens da mulher negra como o objeto sexual atraindo os olhares que mutilam o seu corpo. Em pleno século XX as mulheres negras continuam a ser vítimas dos estereótipos negativos sobre a sua sexualidade, promiscuidade e disponibilidade “a pedido”. E, novamente, as mulheres negras ficaram entregues a si próprias com o problema, visto que o pensamento e a ação feminista dos tempos que corriam não colocavam questões acerca da condição das mulheres negras. Ou o problema nunca foi identificado ou, se o foi, terá sido ignorado como não sendo um problema que dissesse respeito ao feminismo branco.

Vale a pena ainda apresentar a posição de Patricia Hill Collins (2000: 76) acerca das imagens estereotipadas (por ela denominadas “imagens controladoras” [controlling images]) na sociedade branca acerca das mulheres negras. Todas as imagens estereotipadas servem para manter o instrumento de controlo vivo e eficiente. No imaginário popular, as mulheres negras são tudo: recebem o apoio social, são sexua(liza)das, são consideradas como mães poderosas (matriarcas) que, com efeito, não necessitam realmente de ajuda, ou também são vistas como dependentes de Estado, no sentido de beneficiarem de apoio social sem sequer tentarem trabalhar. Estas imagens fazem com que a discriminação contra elas seja “justificada” e sustentada.

A autora distingue os seguintes três tipos de opressão das mulheres negras, nos Estados Unidos da América: a opressão de cariz económico (visto que as mulheres negras são exploradas economicamente e constituem a parte da sociedade americana mais atingida pelo desemprego), opressão política (por exemplo, dificuldades em aceder a educação de qualidade) e opressão da imagem do corpo, já acima referida. Esta última imagem da “mulher de má vida” representa uma imagem muito viva e atual da sociedade contemporânea.

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11

1.4. As práticas de racismo e de exclusão no passado histórico

O conceito da irmandade, ou seja, o sentido de união em prol dos direitos de todas as mulheres, já existia, embora expresso de outra forma, nos tempos da luta pelos direitos dos negros nos Estados Unidos. Pode-se afirmar, que no seio da atividade política das mulheres em prol da libertação dos negros, nasceu a consciência de que as mulheres foram subjugadas e forçadas à submissão. No caso das irmãs Grimké (Sarah e Angelina), provenientes duma família sulista que possuía escravos, a consciência sobre a condição das mulheres emergiu porque, na sua luta contra a escravatura, elas foram atacadas e ridicularizadas por homens (Davis, 1981: 40.). Até a Igreja se pronunciou sobre a sua atividade argumentando que, ao tentar substituir o lugar do homem na praça pública, elas desafiavam a vontade de Deus em relação às mulheres.

Porém, no recente movimento dos direitos das mulheres e de todos os cidadãos, aparece uma mancha, uma certa falha. Entre as mulheres brancas que defendem a abolição da escravatura e os direitos das mulheres, não houve nenhuma mulher negra. Não só não houve, como nem no discurso, nem nos documentos da época, a condição precária das mulheres negras é sequer mencionada. Como argumenta Davis, só as irmãs Grimké fizeram referências às condições das mulheres negras (escravas). Ambas criticaram fortemente as ativistas brancas por estas terem ignorado as necessidades das mulheres negras e por se terem “esquecido” de as envolver na luta contra a escravatura.

O racismo evidente dentro do movimento em prol das mulheres revelou-se particularmente gritante e profundo quando começou a campanha pelo direito ao voto, no seio do movimento sufragista. As sufragistas Elizabeth Cady Stanton ou Susan B. Anthony opuseram-se ferozmente à emancipação política dos homens negros, se o direito ao voto não fosse concedido às mulheres brancas (Davis, 1981: 78). Para o Partido Republicano, a emancipação dos homens negros ia garantir mais votos porém, as líderes do movimento sufragista revelaram profundo racismo rejeitando a hipótese de conceder o direito ao voto aos homens negros, chamando-lhes ignorantes. Neste contexto, tem que se afirmar que as mulheres negras nem sequer foram consideradas como merecedoras de um dos direitos mais básicos da democracia. Foram ignoradas enquanto mulheres e cidadãs pelas suas irmãs brancas (Sheftall-Guy, 1995).

O racismo no seio do movimento sufragista foi tão forte que a própria Susan B. Anthony receava que as suas colegas brancas do sul pudessem separar-se do movimento e da causa, se as mulheres negras fossem convidadas a se juntarem ao grupo (Davis, 1981).

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12 É certo que as feministas americanas daquela época não estiveram à altura da situação quando era urgente responder ao racismo cada vez mais forte da sociedade americana.

1.5. As experiências de mulheres negras enquanto conhecimento subjugado

Esta exclusão das mulheres negras da atividade política e feminista empreendida por mulheres brancas foi denunciada também nos nossos dias por feministas negras. O conceito de irmandade foi considerado hipócrita e oco – ele não trazia nada às mulheres negras nos Estados Unidos. Até se pode argumentar que o pensamento eurocêntrico estava e continua a estar no centro de interesse da epistemologia feminista (Collins, 2003: 322). A autora sempre viu a relação entre o conhecimento e as relações de poder. Mais do que isso, ela estabeleceu as ligações entre o feminismo negro e o projeto da justiça social. O meio académico, enquanto lugar onde nasce o conhecimento e onde as feministas brancas desenvolveram as suas teorias, pode-se tornar também o locus da exclusão. Como demonstrado por feministas negras, a exclusão das mulheres negras das universidades e dos programas em Estudos sobre as Mulheres e Feministas assegurou aos homens brancos e às mulheres brancas o espaço dentro destas instituições. Esta exclusão levou também à consolidação da hegemonia branca. Foi revelado (hooks, 2003) que as feministas ocidentais brancas contribuíram para o silenciamento das mulheres negras, suprimindo as suas ideias e não permitindo a divulgação das mesmas. Embora as mulheres negras tenham tido, há muito, ideias explícitas acerca da intersecção de fatores tais como a raça, o sexo e a classe na sua opressão, elas próprias não encontraram o seu lugar dentro das estruturas feministas brancas. A título de exemplo, bell hooks afirma que, durante muito tempo, as académicas feministas negras não foram aceites pelos seus pares. Nas organizações feministas brancas que trabalhavam no terreno também faltou lugar para as mulheres negras (exemplo de NAWSA)1.

Esta denúncia é exatamente feita por uma feminista negra, lésbica, poeta e mãe de dois filhos – Audre Lorde. No seu volume de ensaios e discursos compilados num livro sob o título marcante “Sister Outsider” (2007) questiona porque é que as mulheres negras académicas nunca são convidadas para conferências, ou se são convidadas, é em número

1

NAWSA – National American Woman Suffrage Association foi uma organização que nasceu em 1890 como resultado da fusão de National Woman Suffrage e American Woman Suffrage Association. Fonte: http://www.britannica.com/EBchecked/topic/404319/National-American-Woman-Suffrage-Association-NAWSA [acedido em 25 de Dezembro de 2013 às 10h23].

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13 reduzido. Porque existe aquele medo de tentar compreender as vivências e as experiências das mulheres negras?

A palavra escrita por mulheres negras não pode ser apropriada para os efeitos planeados por mulheres brancas, para provar as “verdades” preestabelecidas (hooks, 2000) mas tem que ser lida para ser compreendida. Lorde (2007c: 43) assume que não é viável o argumento quando uma académica ou uma professora afirmam que não se sentem suficientemente preparadas ou não lhes cabe a elas ensinar a literatura das mulheres negras. Justificam-se por não possuírem a experiência duma pessoa de dentro, duma insider. Porém o contra-argumento de Lorde é – então estas académicas sentem-se preparadas para ensinar a escrita e o pensamento dos clássicos gregos ou de Shakespeare? Na verdade, estamos a lidar aqui, segundo afirma Lorde, com um pretexto para evitar entrar na realidade quotidiana das mulheres negras. É uma responsabilidade de mulheres perante as outras que lhes deveria ditar o envolvimento na ação de quebrar os silêncios e constituir as pontes entre as diferenças. As separações que foram impostas às mulheres, tanto às brancas como às negras, pela sociedade racista, não podem servir de desculpas para não iniciar a tentativa de diálogo. Os silêncios são o que imobiliza o movimento na direção do outro:

“The fact that I am here and that I speak these words is an attempt to break that silence and bridge some of those differences between us, for it is not difference which immobilizes us, but silence. And there are so many silences to be broken”2

.

(Lorde, 2007c: 44) A mesma autora diz que a recusa ou a falta de vontade de estudar profundamente a palavra escrita por mulheres negras, de incluir as suas obras nos programas de estudos sobre as mulheres ou nas disciplinas relacionadas com a literatura das mulheres se deve ao facto de as mulheres negras continuarem a não ser consideradas enquanto pessoas na sua íntegra, sujeitos independentes com um conjunto de ideias, observações, histórias e vivências por contar.

Estas observações remetem-nos para o conceito utilizado por Michel Foucault sobre conhecimentos subjugados (Clarke, 1980) e que se adequa muito bem à problemática aqui apresentada. Segundo Foucault, os conhecimentos subjugados são os conhecimentos ingénuos localizados no fundo da hierarquia que não atingem os níveis requeridos para serem introduzidos no sistema oficial institucionalizado. Noutras palavras, são os conhecimentos ”não validados”, que existem ao lado dos conhecimentos autorizados. São

2 Discurso apresentado no “Painel da Literatura e do Lesbianismo” da Modern Language Association (MLA)

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14 os conhecimentos ocultos, desqualificados como não suficientemente credíveis. Cremos que os conhecimentos das mulheres negras, as suas histórias e experiências possam ser classificados consoante a definição de conhecimentos subjugados por terem sido, precisamente, ocultos, ignorados, rejeitados por feminismos brancos. Vale a pena referir que pode ser “útil” nomear ou categorizar um certo tipo de conhecimento como “subjugado” porque, desta forma, ele perde a sua raison d´être ou a qualidade de ser verdadeiro. Assim, o/a autor/a deste tipo de conhecimento é ignorado/a, desacreditado/a e a sua experiência acaba por ser excluída.

1.6. As vozes emergentes de mulheres negras na contemporaneidade e na História passada

Referindo os conhecimentos subjugados e colocando-os no contexto da escrita/experiência das mulheres de cor, é oportuno mencionar a voz, expressa através da palavra, na antologia dos textos criados por mulheres negras/de cor e editada por duas escritoras e feministas chicanas – Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa. Esta antologia, sob o título “This Bridge Called My Back”, publicada em 1981, foi trabalhada com o objetivo de dar voz às mulheres oprimidas e apagadas na cultura e na história. As experiências do seu quotidiano foram expressas em várias formas: através da poesia, do ensaio, dos discursos, etc. Através da sua escrita, estas mulheres negras e de cor pretendiam prestar homenagem à experiência que viviam e que constituía uma experiência muito diferente da de mulheres brancas e também da de homens negros:

“By giving voice to such experiences, each according to her style, the editors and contributors believed that they were developing a theory of subjectivity and culture that would demonstrate the considerable differences between them and Anglo-American women, as well as between them and Anglo-European men and men of their own culture”. (Alcarón, 2003: 404).

Como afirma Norma Alcarón (2003: 407), a antologia em questão teve enorme impacto na escrita e no pensamento feminista das décadas seguintes, porque abriu espaço para os feminismos alternativos e não só para os feminismos brancos. A partir da data da publicação do livro em 1981, foi possível incluir outros discursos feministas (conhecimentos subjugados) no mainstream feminista e cultural. Tendo sido, todavia, a brecha aberta, segundo explica a autora, há que renovar o debate acerca do impacto que esta antologia provocou no feminismo branco. As feministas brancas citavam os textos do livro apoiando-se neles para argumentar sobre as diferenças entre as mulheres de cor e

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15 brancas, porém, ao mesmo tempo, apagavam as diferenças entre estes grupos apresentando as mulheres negras e de cor como uma amálgama, um grupo homogéneo, sem as suas próprias diferenças e variedades. Desta forma, todas as mulheres negras foram empurradas para uma categoria de “mulheres de cor”, o que nos faz voltar ao pensamento de Audre Lord, citado neste capítulo, que dizia que os estereótipos e a apresentação errada e simplista de mulheres negras as relegou, na realidade, para a invisibilidade e apagamento cultural.

A questão da diferença foi também abordada por Audre Lorde (2007b). No seu artigo de grande relevância “The Master´s Tools Will Never Dismantle the Master´s House” a autora expõe o argumento de que o grande erro do feminismo constituiu a tentativa de tolerar as diferenças, em vez de as aproveitar para reforçar as relações entre as mulheres. As diferenças assumem o potencial de criar uma fonte de enriquecimento e empoderamento, porém, as mulheres foram socializadas ou para ignorarem as diferenças entre elas ou para as tratar como uma fonte do potencial conflito, uma razão que está por detrás da separação.

“Difference must not be merely tolerated, but seen as a fund of necessary polarities

between which our creativity can spark like a dialectic. Only then does the necessity for interdependency become unthreatening. Only within that interdependency of different strengths, acknowledged and equal, can the power to seek new ways of being in the world generate, as well as the courage and sustenance to act where there are no charters”.

(Lorde, 2007b: 111) A diferença é vista, então, como uma fonte da criatividade e pode-se revelar uma força inspiradora que contribui muito mais para a aproximação mútua do que o silêncio, o medo e a separação. A diferença não tem que ser, obrigatoriamente, destrutiva, como aparece universalmente vertida no pensamento filosófico do mundo ocidental onde as diferenças são pensadas em termos de hierarquização e binarismo. O diferente, o outro, tem que ser desvalorizado e colocado na posição inferior (Braidotti, 1994).

É importante sublinhar que, nos anos 70 e 80 do século XX ouviram-se, com toda a força, mais vozes de mulheres afro-americanas que falaram a respeito da diferença e da condição da sua vida. Apareceram publicações importantes, ao lado da já mencionada antologia editada por Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa. Foi publicada uma antologia “The Black Woman” (1981) e editada por Toni Cade Bambara ou “Home Girls: A Black Feminist Perspective” editada em 1983 por Barbara Smith (James & Busia, 1993), entre outras, cujo objetivo foi recuperar a visibilidade da mulher negra. O grupo de feministas negras e lésbicas, the Combahee River Collective, fundado por Barbara Smith também

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16 tomou a sua posição na cena cultural e feminista da época, publicando em 1974 uma importante declaração acerca das questões como o racismo, a opressão multifatorial, o sexismo, a hegemonia heterossexual e a opressão de classe (The Combahee River Collective, 2003).

Embora, como aqui temos provado, os feminismos brancos tenham contribuído, conjuntamente com a cultura da sociedade e as suas práticas do racismo, do sexismo e do classismo, para o sufocamento e silenciamento das mulheres negras, elas nunca se adaptaram às regras ditadas pela maioria branca. O grande trabalho foi feito pelas mulheres intelectuais negras com o objetivo de tirar das trevas as figuras importantes de mulheres na história do movimento pelos direitos das mulheres. A “herstoria” – a história vista e descoberta por mulheres e sobre mulheres traz-nos de volta nomes de mulheres insubmissas, cientes do trabalho preciso para mudar a sociedade e as regras pelas quais esta sociedade se governava.

Uma das primeiras intelectuais negras – Maria W. Stewart - já no século XIX reconheceu a necessidade de as mulheres negras rejeitarem toda a estereotipia à sua volta (Collins, 2003, Sheftall-Guy, 1995). Foi ela que argumentou que a opressão das mulheres negras tem múltiplas caras, sendo uma delas a opressão de género, outra a opressão da classe e a terceira a opressão de raça. Para Stewart não foi suficiente identificar as origens da opressão; ela até tencionava ir mais longe e incentivava as suas irmãs negras para elas procurarem denominar-se, criar autodefinições, buscar a sua própria força na fonte da autonomia pessoal. Encorajava as mulheres para estas seguirem o exemplo dos homens na luta pela independência e autonomia pessoal. As mulheres tinham que reclamar os seus direitos e privilégios. A causa era a vida ou a morte. A inércia significava a morte, e a ação prendia-se com a vida. Um forte instrumento de mudança e do empoderamento das mulheres, na ótica de Stewart, foi a educação. O conhecimento permitia o acesso ao poder – o poder de dar rumo à sua própria vida. O conhecimento era o poder em si próprio.

A atividade intelectual das mulheres negras no século XIX era bastante prolífica e não se limitava à escrita de Stewart. Havia outras intelectuais negras que devolveram a voz à mulher negra colocando-a no centro do seu interesse e da sua ação. Devolvidas ao mundo por feministas do século XX, trazem-nos o depoimento que desmente o estereótipo sobre a mulher negra enquanto ser passivo, somente vitimizado e não consciente da sua situação. As obras que foram escritas no final de século XIX por mulheres negras tiveram como objetivo analisar a situação sociopolítica à data e lutar contra a dura realidade da

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17 comunidade afro-americana. As mulheres negras pronunciaram-se contra o linchamento, o racismo, a falta de condições humanas e outras injustiças feitas aos negros nos Estados Unidos, desde os tempos da escravatura (Mama, 1995). As angústias das mulheres afro-americanas não se limitavam somente às “questões das mulheres” (Carby, 1985).

A escrita das mulheres como Ann Cooper3, por exemplo, tornou-se uma arma de intervenção cultural e política. O desafio perante as mulheres negras consistiu, afinal de contas, em dar uma nova forma à sociedade. Curiosamente, Ann Cooper não fazia a distinção entre os aspetos biológicos dos sexos. No seio da sociedade, as mulheres também sabiam adaptar-se às normas e às regras do sistema masculino, enquanto os homens podiam apresentar as caraterísticas e seguir as virtudes femininas. Os textos de Cooper atacavam fortemente as práticas da exclusão de mulheres/feminismos brancos, acusando-as de falta de solidariedade (Guy-Sheftall, 1995: 43).

As mulheres brancas tiveram a sua parte na consolidação do sistema patriarcal que criou e reforçou as estruturas sociais que assentavam no racismo e sexismo. Por manter o silêncio sobre a múltipla discriminação das mulheres negras, por defender os interesses da sua raça e classe e o estatuto social de que as mulheres brancas gozaram, elas, desta forma, reforçaram o sistema de opressão. Como afirmava Ann Cooper, se o racismo tivesse sido erradicado do movimento feminista, teria sido benéfico para as próprias mulheres brancas. O que aconteceu foi que foram criadas instituições separadas, agendas/planos separados, animosidade e tudo menos a solidariedade e irmandade tão amplamente defendidas por feministas brancas.

1.7. Os pontos de rutura entre feministas brancas e negras

Tendo analisado todos os argumentos expostos por feministas negras e apresentados até agora, parece-nos compreensível a posição de mulheres negras que não se conseguiram rever nos objetivos e no pensamento do feminismo branco, nem identificar com eles. Quase nada do que era exposto no pensamento feminista branco apelava às mulheres negras visto que as experiências do quotidiano dos dois grupos eram totalmente diferentes, para não dizer opostas. O nível da vida económico diferencia muito os dois

3 Anna Julia Cooper (1858 – 1964) – filha dum dono de escravos e ela própria uma escrava. Conhecida como

defensora dos direitos do povo negro e das mulheres, professora, primeira mulher negra a obter doutoramento (com a tese dedicada à problemática de linchamento). Publicou um livro: ”A Voice From the South and Other Important Essays, Papers and Letters”. Fonte: http://essays.quotidiana.org/cooper_a/ [acedido em 25 de Dezembro de 2013 às 10h55].

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18 grupos. Os padrões de feminilidade que se aplicavam às mulheres brancas (enquanto fadas de lar, mães perfeitas, etc.) não eram compatíveis com as mulheres negras que se viam obrigadas a trabalhar desde terna idade e depois, na vida adulta, para sustentar a família. O direito ao aborto, invocado por muitas mulheres brancas também se revelou menos adequado às mulheres negras que, frequentemente, foram forçadas à esterilização ou contraceção contra a sua vontade (Altekruse & Rosser, 1993). São conhecidos muitos casos de uso de medicamentos não testados ou perigosos como Depo Provera no âmbito de políticas demográficas que atingiam as mulheres de cor, na tentativa de controlar o número de filhos (Bulbeck, 1998). A família e a maternidade que eram apresentadas por muitas feministas brancas enquanto instituições que oprimiam as mulheres (Firestone, 1970; Delphy & Leonard, 1992; Rich, 1995; Badinter, 2010, etc.) revelaram-se, em muitos casos, loci de resistência, de sobrevivência e de força para as mulheres negras. É de sublinhar que a experiência de maternidade vivida por mulheres negras difere bastante da vivenciada por mulheres brancas. Nas comunidades afro-americanas as mulheres criaram laços fortes fora da família, com outras mulheres que, em casos de necessidade, podiam criar filhos de outras mulheres. O termo em inglês “othermothering” refere-se à tradição vinda da África, onde se atribuía imenso valor à maternidade e onde as mulheres que se ocupavam de filhos das outras ganhavam estatuto social e respeito na comunidade (James, 1993: 48). As mulheres afro-americanas transplantaram este conceito e esta prática para solo americano aliviando, desta forma, a experiência da maternidade e, criando laços fortes dentro da comunidade. Na vida das mulheres brancas esta prática era quase impossível sendo que as mulheres brancas se viam obrigadas a educar os filhos sozinhas, sem o apoio de outras mulheres brancas. Não é, por isso, uma tarefa penosa e solitária criar filhos na comunidade afro-americana e, consequentemente, a maternidade assume um outro significado e valor para elas. Neste contexto, a denúncia da família e da maternidade enquanto instrumentos de controlo e submissão das mulheres não se aplica às mulheres negras não sendo este o objetivo com o qual elas se podiam identificar.

Seria prudente também referir que, embora tenham peso maior, o racismo e as práticas de exclusão como o vazio do termo irmandade não constituíram os únicos fatores que afastaram as mulheres negras e de cor do movimento feminista branco. Além das diferentes realidades do quotidiano vividas por mulheres desfavorecidas e menos privilegiadas, registaram-se algumas propostas no pensamento feminista branco que não se adequaram à mentalidade e à cultura das mulheres negras. Houve e continua a haver

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19 leituras diferentes das realidades e das experiências. Um dos pontos de rutura ou de separação entre as feministas brancas e negras é a atitude perante homens (Joseph & Lewis, 1981). Na ótica das mulheres negras, as feministas brancas fizeram o necessário para se separarem dos homens. Afirma Lewis (1981: 55), que na sua tentativa de identificar a fonte da opressão das mulheres, uma parte importante das feministas brancas radicais apontou os homens enquanto principais responsáveis pela situação precária das mulheres. Na sua vertente radical, o feminismo imaginou o espaço sem homens onde a criação e o individualismo no feminino podiam encontrar todas as condições para a sua ampla expressão. Esta hipótese, porém, não convenceu as mulheres negras que não queriam e não podiam criar o seu próprio mundo separado dos homens. Devemos ter presente que, para as mulheres negras, os homens eram irmãos na luta contra a discriminação racial e era com eles que faziam todos os esforços para sobreviver no seio da sociedade racista (Joseph & Lewis, 1981). E é verdade também que, para as mulheres negras de classes desfavorecidas, o alvo não é ganhar contra os homens para chegar ao estatuto social por eles ocupado porque, como observa bell hooks (2003), os homens negros de classes baixas também são alvo da opressão racista capitalista, da mesma forma que as mulheres negras o são. Identificar o homem como o principal responsável da opressão das mulheres não só não é suficiente, como contribui para o conflito e hostilidade desnecessários entre seres humanos.

Filomena Chioma Steady (1993: 96) defendeu a tese de que o conceito de irmandade, nestas condições e tendo em conta as diferentes realidades mais o racismo do movimento feminista, é perigoso no sentido de ocultar os verdadeiros problemas das mulheres negras. A irmandade é somente uma ideia ingénua que não nos permite ver com clareza as múltiplas opressões das mulheres e a participação das próprias mulheres na opressão das outras menos privilegiadas (Steady, 1993). A mesma autora avisa que para evitar uma certa apatia dos feminismos e para prevenir que o sistema patriarcal se reproduza e solidifique, a liderança dos movimentos feministas tem que, obrigatoriamente, incluir as mulheres de minorias étnicas. Enquanto existirem mulheres excluídas do movimento, os objetivos deste de promover a igualdade entre os sexos e pôr fim à discriminação, não serão atingidos.

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2. Construção da mulher do Terceiro Mundo enquanto “Outra”

A contestação expressa por intelectuais afro-americanas como bell hooks, Patricia Hill Collins, Audre Lorde e muitas outras a propósito do essencialismo e do racismo inerente ao pensamento feminista da segunda vaga no seio dos feminismos anglo-americanos, acendeu um rastilho que deu início e força à voz das mulheres de cor que começaram a opor-se à hegemonia dos feminismos brancos. As reações das feministas afro-americanas encontraram toda a compreensão e foram ainda mais fortalecidas no espírito da irmandade política por outras mulheres de cor, nomeadamente as da América Latina (Gloria Anzaldúa, Cherríe Moraga, Maria Lugones) ou as de origem asiática, radicadas nos Estados Unidos (Elaine Kim ou Trinh T. Minh-ha,) (Tong, 2009).

Nas décadas seguintes, as feministas insistiram na necessidade de pensar e teorizar as questões ligadas ao género não as separando de outros fatores sociais, mas em forte ligação com outros problemas já levantados por pensadoras afro-americanas. Sublinhou-se que o género tinha que ser analisado criticamente em conjunto com os fatores de classe, raça, origem étnica, orientação sexual, idade, etc. Acrescenta-se o facto de a crítica feminista proposta por mulheres do Terceiro Mundo conter mais um aspeto de extrema relevância nas diferenças entre as mulheres: o da cultura e das diferenças culturais entre as mulheres.

Este capítulo, então, será dedicado a uma análise de críticas e resistências oferecidas por feministas do Terceiro Mundo, segundo as quais alguns dos feminismos ocidentais, sendo fruto da mentalidade/filosofia ocidental que se posiciona no centro de discurso filosófico e científico rejeitando outros conhecimentos (Lazreg, 1988: 84) e que também se posiciona em oposição a outras culturas e sistemas de pensamento, projetaram a visão da mulher do Terceiro Mundo enquanto “Outra”, silenciando-a e marginalizando as suas experiências e histórias. Serão analisados alguns dos trabalhos criados por intelectuais do Terceiro Mundo com o objetivo de verificarmos como se opuseram às normas estabelecidas por feministas ocidentais.

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2.1. O que significa “Terceiro Mundo”?

É de grande importância, no entanto, pensarmos, em primeiro lugar, o que significa a expressão “Terceiro Mundo” e em que contextos/situações é usada. A expressão não se revela simples e unidimensional – ela carrega consigo uma carga emocional e, muitas vezes, como afirmam os/as intelectuais, encontra-se associada à inferioridade cultural, económica e civilizacional (Johnson-Odim, 1991). Propomos uma definição de Garber (1992), que afirma o seguinte:

“What the so-called third world nations have in common is their postcolonial status, their relative poverty, their largely tropical locations, and the fact that they were once subject to Western rule.”

(Garber, 1992 apud Bulbeck, 1998: 34) Como explica Bulbeck, no seu sentido original, a expressão “Terceiro Mundo” significava a “terceira força” das nações posicionadas entre o primeiro mundo democrático e o segundo mundo composto por países sob o regime comunista. Trinh T. Minh-ha, por sua vez, sugere que o terceiro mundo continua a representar o subversivo, a voz reprimida que está prestes a explodir na direção do centro (Bulbeck, 1998: 35). Bulbeck fornece a sua própria definição do Terceiro Mundo: «”The third world” is a category produced and reproduced by capitalist imperialism, referred to in the oppositions between industrialised north and developing south, or core and periphery» (ibidem., p. 35). No seu trabalho de grande impacto intitulado “Feminism Without Borders”, Mohanty (2003) aborda a questão da expressão e acrescenta a sua leitura à polifonia do debate. Para a autora, os termos “ocidental” e “Terceiro Mundo” continuam a constituir as designações com forte cariz político, no entanto ela, passados vários anos a efetuar pesquisas e trabalhos académicos, chegou à conclusão de que se sente mais à vontade com outras expressões, para substituir “Terceiro Mundo”. Argumenta que “One-Third World” e “Two-Thirds World” se revelam mais úteis, particularmente, quando estão associados à divisão “Third World/South” e “First World/North” (Mohanty, 2003).4

No contexto deste trabalho, utilizaremos a expressão “Terceiro Mundo” porque a mesma foi abraçada por feministas pós-coloniais

4 Os conceitos de “one-third world” e “two-thirds world” são explicados brevemente no livro de Chandra

Mohanty “Feminism without Borders” publicado em 2003 onde a autora se inspira no trabalho efetuado por Gustavo Esteva e Madhu Suri Prakash sobre qualidade de vida a nível económico no mundo desenvolvido e em desenvolvimento.

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22 que se identificaram com os objetivos, as necessidades e as lutas de pessoas do Terceiro Mundo. Vejamos a interessante argumentação de Uma Narayan (1997) a este respeito:

“(…) Calling myself a “Third World feminist” is problematic only if the term is understood narrowly, to refer exclusively to feminists living and functioning within Third World countries as it sometimes is. But like many terms, “Third World feminist” has a number of current usages. Some feminists from communities of color in Western contexts have also applied the term “Third World” to themselves, their communities, and their politics. (…). As a feminist of color living in the United States, I continue to be a “Third World feminist” in this broader sense of the term”.

(Narayan, 1997: 4) Trata-se de uma escolha consciente, embora a expressão suscite reações e associações negativas. Porém, ela pode também tornar-se uma força e um meio de articular as vozes dissidentes.

2.2. Mulher colonizada entre duas culturas em guerra

A perspetiva acima descrita verificou-se, de facto. As feministas do Terceiro Mundo tornaram-se a voz da consciência de algumas das correntes dos feminismos brancos e o grito de desobediência face às práticas imperialistas que subalternizaram as mulheres nativas tornando-as “outras”. Segundo McCann e Seung-Kyung (1993: 4-5), é muito importante examinar o percurso que conduziu as teorias feministas do Norte (as teorias dos feminismos heterogéneos) a apresentarem os discursos e as vozes vindas de outras partes do mundo como típicos e representantes de todas as mulheres. Vale a pena lembrarmo-nos de que quem não faz parte do grupo subordinado, não se encontra, logicamente, afetado pelo processo de dominação que define o grupo “inferior”. Mais do que isso, os membros do grupo dominante não estão marcados por aspetos como a raça, a classe, processos coloniais e neocoloniais de dominação. Não tendo vivido este tipo de experiência, as atitudes das mulheres brancas do Norte apresentam exemplos de puro racismo e sexismo (McCann & Seung-Kyung, 2003).

Prende-se também com este problema do sexismo e racismo praticados por feministas ocidentais o problema da cultura e das diferenças que há entre as mulheres de vários cantos do mundo. Afinal, serão todas as mulheres iguais, estarão todas elas expostas ao mesmo tipo de opressão, onde a cultura não conta ou, se tem expressão, é na opressão das mulheres que a mesma se manifesta, como afirmam os trabalhos levados a cabo pelas antropólogas feministas do Ocidente sobre as vidas de mulheres do Terceiro Mundo?

Referências

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