• Nenhum resultado encontrado

Mulher colonizada entre duas culturas em guerra

2. Construção da mulher do Terceiro Mundo enquanto “Outra”

2.2. Mulher colonizada entre duas culturas em guerra

A perspetiva acima descrita verificou-se, de facto. As feministas do Terceiro Mundo tornaram-se a voz da consciência de algumas das correntes dos feminismos brancos e o grito de desobediência face às práticas imperialistas que subalternizaram as mulheres nativas tornando-as “outras”. Segundo McCann e Seung-Kyung (1993: 4-5), é muito importante examinar o percurso que conduziu as teorias feministas do Norte (as teorias dos feminismos heterogéneos) a apresentarem os discursos e as vozes vindas de outras partes do mundo como típicos e representantes de todas as mulheres. Vale a pena lembrarmo-nos de que quem não faz parte do grupo subordinado, não se encontra, logicamente, afetado pelo processo de dominação que define o grupo “inferior”. Mais do que isso, os membros do grupo dominante não estão marcados por aspetos como a raça, a classe, processos coloniais e neocoloniais de dominação. Não tendo vivido este tipo de experiência, as atitudes das mulheres brancas do Norte apresentam exemplos de puro racismo e sexismo (McCann & Seung-Kyung, 2003).

Prende-se também com este problema do sexismo e racismo praticados por feministas ocidentais o problema da cultura e das diferenças que há entre as mulheres de vários cantos do mundo. Afinal, serão todas as mulheres iguais, estarão todas elas expostas ao mesmo tipo de opressão, onde a cultura não conta ou, se tem expressão, é na opressão das mulheres que a mesma se manifesta, como afirmam os trabalhos levados a cabo pelas antropólogas feministas do Ocidente sobre as vidas de mulheres do Terceiro Mundo?

23 Porque o efeito destes trabalhos foi (re)produzir, como adiante veremos, a mulher do Terceiro Mundo enquanto vítima (McCann & Seung-Kyung, 2003: 4).

O trabalho nesta área, desenvolvido por Uma Narayan (1997, 2000, 2003) académica feminista da Índia, radicada nos Estados Unidos, serve-nos de grande apoio para podermos compreender como as questões culturais, extremamente complexas e multidimensionais, foram distorcidas e manipuladas com o objetivo de criar a mulher do Terceiro Mundo enquanto “Outra”. Vale a pena analisarmos com mais atenção o pensamento e a argumentação desenvolvidos por Narayan, cujo trabalho marcou a teoria cultural e feminista das últimas décadas. A argumentação apresentada pela autora suscitou debates no mundo académico acerca das práticas imperialistas no seio do feminismo ocidental e contribuiu para mais denúncias por parte de pensadoras do Terceiro Mundo no que diz respeito à construção das mulheres não-ocidentais enquanto vítimas. Nos seus textos, a autora sublinha o facto de o feminismo precisar de reconhecer o valor das diferenças e das experiências diversificadas sob pena de as romantizar e de lhes atribuir o valor ocidental ou, até, de as oprimir. Existe um grande risco de abordar as diferenças culturais de uma forma pouco pragmática ou retirada do contexto.

Para muitas feministas do Terceiro Mundo, as mulheres que abraçaram as causas feministas, abraçaram, ao mesmo tempo, as causas de hegemonia cultural originárias do mundo ocidental. É muito importante sublinhar, para vermos com mais clareza a lógica no pensamento de mulheres africanas que será analisado no próximo capítulo, que, segundo Narayan, qualquer contestação da cultura nativa, no seio do próprio país, se depara com forte resistência e é vista como fruto da educação ocidentalizada. Porém, no caso da autora, a dor e a revolta contra as injustiças aplicadas às mulheres nasceram antes de ela ter recebido a educação ocidentalizada. Apareceram como fruto da observação da vida e da experiência da sua mãe, que, de forma silenciosa e obediente, passou à filha o legado de desobediência, a coragem de falar em voz alta sobre as injustiças (Narayan, 2003: 12).

A crítica da sua própria cultura não é e não tem que ser, automaticamente, uma prova de falta de lealdade perante “os seus” e a prova de impregnação da cultura ocidental. Relembremos que, no caso de intelectuais afro-americanas, a relutância em criticar os aspetos da sua própria comunidade e o machismo dos homens negros também teve as suas raízes no medo de serem acusadas de deslealdade, de rejeitarem a sua raça e de prejudicarem a luta que mulheres e homens afro-americanos partilhavam. Quando as feministas do Terceiro Mundo avançam com críticas severas do sistema que oprime as

24 mulheres, elas, pura e simplesmente, repetem o que as mulheres não feministas, as suas conterrâneas, afirmam acerca da sua cultura. Neste sentido, se a voz vem de dentro, é repetida após a denúncia das mulheres, como argumenta Narayan, não pode ser acusada de estar impregnada dos valores ocidentais. O feminismo do Terceiro Mundo não é, de forma alguma, a imitação do feminismo ocidental. Se há, no entanto, semelhanças entre as maneiras como (re)agem as feministas ocidentais e do Terceiro Mundo, isto explica-se pelo facto de existirem certas formas de opressão e subjugação de mulheres, tanto no mundo ocidental como no Terceiro Mundo.

Se a noção de “ocidentalização” é uma noção particularmente negativa no mundo não ocidental, isto deve-se, claramente, à história da colonização e ao contraste profundo entre a cultura ocidental e a “indígena” (Said, 1994; John, 1996; Mohanty, 2003; Oyewumi, 2003). As lutas pela independência da dominação ocidental não só assentavam na rejeição do domínio político dos colonizadores, mas também na rejeição total do valor da cultura ocidental, imposta aos povos colonizados. Assistiu-se à tentativa de (re)valorizar a cultura indígena/local conjuntamente com as suas práticas e tradições. Esta valorização da cultura foi uma resposta à erradicação ou regularização dos costumes culturais dos povos colonizados sendo uma forma de sobrevivência das pessoas e de comunidades inteiras (Said, 1994).

No contexto da colonização, a figura da mulher tornou-se um campo de batalha de forças políticas no que diz respeito à cultura ocidental e à cultura da colónia (Narayan, 1997: 55). Todas as práticas tradicionais dos tempos pré-coloniais tornaram-se um importante ponto de conflito e de negociação entre as culturas ocidental e colonizada. Nesta luta de valores e tradições, as práticas indígenas foram relegadas para o domínio da barbárie e rotuladas de retrógradas pela cultura ocidental, que as via e interpretava como uma prova de inferioridade da cultura indígena. A mulher colonizada tornou-se, neste processo, o símbolo do corpo oprimido pelo discurso e pela cultura tradicional. Vale a pena salientar que as elites masculinas do Terceiro Mundo defendiam estas práticas como as reminiscências do passado glorioso do seu país. As mulheres, no discurso nacionalista e libertário, foram apresentadas como guardiãs das tradições e como uma garantia de continuação cultural e religiosa do povo (Narayan, 1997: 19).

Nestes discursos, tanto do lado do colonizador como do lado do colonizado, as mulheres feministas (ou “somente” interessadas em questões de mulheres) tiveram a sua contribuição no processo de jogo entre as duas culturas. A título de exemplo: as feministas

25 britânicas da época vitoriana constituíram a sua missão de levantamento da “Outra” da miséria, propondo as reformas (ligadas à prostituição e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis) sem sequer ouvir atentamente a voz da mulher indiana. Enquanto na Inglaterra as mulheres reformistas lutaram pela dignificação das suas conterrâneas, no solo colonizado a “Outra”, a mulher colonizada, tornou-se o peso da mulher branca (Narayan, 1997, Mohanty, 2003). Neste processo, falou-se em representação da mulher enquanto outra construindo a sua subjetividade sem, porém, lhe dar a voz. As questões de género foram usadas em prol de interesses políticos e culturais onde o importante, tanto para o colonizador como para o colonizado, foi contrastar as mulheres de dois lados numa lógica dicotómica.