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As máximas da moral par provision

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 43-46)

2 A MORAL NO DISCURSO E NO PREFÁCIO DE PRINCÍPIOS

2.1 A moral par provision no Discurso do Método

2.1.1 As máximas da moral par provision

Descartes, após apresentar suas justificativas, tomará as seguintes máximas que irão constituir sua moral par provision:

A primeira [máxima] era obedecer às leis e aos costumes de meu país, mantendo constantemente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde minha infância, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões as mais moderadas e as mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos mais sensatos daqueles com os quais teria de viver.21

“Minha segunda máxima consistia em ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações, e, em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, desde que me tenha uma vez determinado.”22

18

DESCARTES. Discours de la Méthode. AT, VI, p. 22. (Grifos nossos).

19 Ibid. p. 17. 20

LIMA VAZ, Henrique C. de. Escritos de Filosofia IV: Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo: Loyola, 1999. p.281. (Grifos do autor).

21

DESCARTES. Discours de la Méthode. AT, VI, p. 22-23. (Acréscimo nosso).

“Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim mesmo do que a fortuna, e de antes modificar meus desejos do que a ordem do mundo.”23

É assim que Descartes conclui sua moral par provision:

Enfim, para conclusão dessa Moral, deliberei passar em revista as diversas ocupações que os homens exercem nesta vida, para procurar fazer a escolha da melhor; e, sem que pretenda dizer nada sobre as dos outros, pensei que o melhor a fazer seria continuar naquela mesma em que me encontrava, isto é, empregar toda a minha vida em cultivar minha razão, e avançar, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade.24

Cabe-nos a pergunta: Como surgiram essas máximas no pensamento de Descartes? Quais suas fontes de inspiração? Pela leitura de suas obras e de suas inúmeras cartas, podemos verificar que são poucas as referências feitas por Descartes a outros autores. Sabemos que, em séculos anteriores, isto ocorria menos frequentemente do que em nossos dias. Todavia, no século XVI já existiam escritores que se manifestavam contra o plágio de suas obras.25 Temos mostrado, por diversas vezes, a presença de Montaigne e Charron nos

escritos de Descartes. No entanto, ele só faz referência explícita26aos dois uma única vez, e

em tom de crítica, em carta ao marquês de Newcastle, datada de 23 de novembro de 1646. Em uma primeira passagem da carta, cita Montaigne isoladamente: “Eu não posso concordar com Montaigne e outros que atribuem também o entendimento ou o pensamento aos animais.”27

No outro trecho da mesma carta, duas páginas adiante, refere-se aos dois, conjuntamente:

Se bem que Montaigne e Charron tenham dito que há mais diferença de homem para homem, do que do homem para o animal, jamais foi encontrado animal tão perfeito que tenha se utilizado de algum símbolo, para fazer entender a outros animais alguma coisa que não fosse em relação a suas paixões; e não há homem tão imperfeito que não o use.28

23

DESCARTES. Discours de la Méthode. AT, VI, p. 25.

24 DESCARTES. Discours de la Méthode AT, VI, p.27. 25

Jean-Baptiste Benedetti (1530-1590) protesta veementemente contra o plágio de sua obra Resolutio omnium

Euclidis problematum aliorumque uma tantummodo circuli data apertura (Veneza, 1553) por Jean Taisnier,

que a reproduz textualmente. É a Taisnier (e não a Benedetti ) que Stevin se refere como aquele que primeiro ensinou que os corpos sob efeito da gravidade (de peso específico idêntico) executam seu movimento de queda ao mesmo tempo; cf. Simon Stevin, Appendice de la statique, (Oeuvres mathématiques, Leide, 1634, p. 501). (Cf. KOYRÉ, 1973. p. 141.

26 Sobre esta questão de citações ou referências nas obras de Descartes, vejamos o que nos diz Mesnard:

“Descartes, a beau, dans ses deux principaux ouvrages, le Discours et les Principes, retracer l’histoire de sont esprit, ces narrations un peu condensés, un peu stylisées aussi, nous montrent moins la vraie psychologie du grand homme que ses étapes dans la réalisation d’un système. L’engendrement des thèses, leur développement et leurs rapports ne sont pas exposés sous nos yeux. Lacune non moins grave: Descartes ne cite jamais (ou presque) de noms propres, il ne prend pas position – ou avec quelle prudence – vis à vis de telle doctrine, la scolastique exceptée, qu’il assaille surtout en physique”. ( MESNARD, 1936, p. 24-25).

27

DESCARTES. Correspondance. AT, IV, p. 573.

Na primeira máxima, Gilson nos aponta a presença tanto de Charron como a de Montaigne:29

Ora a advertência que eu faço aqui, àquele que quer ser sábio é guardar e observar a palavra e o fato das leis e costumes que se encontram no país em que se está: da mesma forma respeitar e obedecer aos magistrados e a todos os superiores, mas com todo um espírito e de maneira nobre e generosa[..].30 [...] Algumas coisas eles têm escrito por necessidade da sociedade pública, como suas religiões: e tem sido razoável esta consideração, porque eles não têm querido esmiuçar diretamente as opiniões comuns, a fim de não gerar perturbação na obediência às leis e costumes de seu país.31

Porque qualquer sinal que haja de novidade, não mudo facilmente, pelo medo que tenho de perder na mudança: e desde que não sou capaz de escolher, sigo a escolha de outro, e me mantenho na posição onde Deus me tem colocado. De outra maneira eu não saberia abster-me de mudar sem cessar. Assim, pela graça de Deus, tenho me mantido íntegro, sem inquietação e problema de consciência, nas antigas crenças de nossa religião, no meio de tantas seitas e divisões, que nosso século tem produzido.32

Segundo Touchard, a segunda máxima provém do estoicismo.33 Gilson observa que

esta máxima prepara a concepção cartesiana34 de “virtude” que vai aparecer pela primeira vez

numa carta de Descartes à princesa Elisabeth:35

29 GILSON, 1987, p. 235-236. 30 CHARRON, 1986, p. 496-497. 31

MONTAIGNE, 2001, p. 796-797. (Montaigne faz referência aos filósofos antigos).

32 Ibid. p. 883.

33 TOUCHARD, Georges. La Morale de Descartes Paris: Ernest Leroux , Éditeur, 1898. p. 13. (Livro em

forma de microfichas, por nós consultado na Bibliothèque Nationale de France François Mitterrand).

34

As denominações cartesiano e cartesianismo empregadas no decorrer desta pesquisa, referem-se exclusivamente às próprias ideias ou ao pensamento escrito de Descartes. Desde a primeira hora, os chamados discípulos ou seus sucessores divergem de pontos fundamentais de sua filosofia. Como exemplo, temos Regius, também conhecido por Henry De Roy, que nosso filósofo o havia considerado seu melhor discípulo. Foi ele que levou Descartes a pedir a seus leitores: “Não me atribuam jamais nenhuma opinião que não a encontrem expressamente em meus escritos”. (DESCARTES, 1998a, p. 36).

Como afirma Rodis-Lewis, “a rigor, Descartes não podia fazer escola: seus sucessores, recebendo como seguras as conclusões do sistema, perdem o vigor da dúvida inicial. Por isso são chamados, às vezes,

pequenos cartesianos todos aqueles que têm simplesmente caminhado na via já traçada. “Os ‘grandes’ seriam

então Malebranche, Espinosa e Leibniz, que desenvolvem, segundo estruturas originais, a relação fundamental da ontologia ao conhecimento do tipo matemático. Esta concepção do Cartesianismo, muito difundida, sobretudo no último século, parece-nos discutível; e temos preferido confrontar as quatro grandes construções metafísicas do século XVII em função de seu Racionalismo. Porque mesmo Malebranche, que é herdeiro do dualismo de Descartes, a ele se opõe desde sua primeira obra [...]. Quanto a Espinosa e Leibniz, a primeira inspiração deles é radicalmente heterogênea e se proclamam muitas vezes seus adversários. Portanto, ‘sem Descartes nenhum deles teria sido o que foi’, declara H. Gouhier, propondo chamá-los ‘pós- cartesianos.’” (RODIS-LEWIS, Geneviève. Descartes et le Rationalisme. 4. Ed. Paris: PUF, 1985, p. 6-7). Grifos do autor.

Recentemente, Rodis-Lewis em debate, na Conferência de Denis Kambouchner na Sorbonne, tendo por tema: Descartes et le Problème de la Culture , fazendo eco às palavras de Gouhier, diz: “eu direi que jamais houve ‘cartesianos’, existiram pós-cartesianos, ou seja, pensadores que partiram das questões e não das soluções de Descartes”. (Bulletin de la Société Française de Philosophie. 1998. p. 37-38).

A segunda [regra], que tenha uma firme e constante resolução de executar tudo o que a razão lhe aconselhar, sem que suas paixões ou seus apetites o desviem; e é a firmeza desta resolução que creio dever ser tomada pela virtude, se bem que eu não saiba de alguém que a tenha jamais assim explicado.36

Para Gilson, Descartes, ao escolher a terceira máxima, inspira-se nos antigos estoicos.37 No Manuel d’Épictète, é feita a distinção entre o que depende de nós: o julgamento,

o desejo, o impulso para a ação; e o que não depende de nós, isto é, as coisas exteriores, como a riqueza, a saúde, a fama, etc. Esta distinção, segundo Epicteto, permitir-nos-á conhecer o que devemos desejar e aquilo de que devemos nos afastar e a maneira como devemos agir.38

Para Sêneca, cabe ao homem aceitar de bom grado o que a constituição do universo o obriga a aceitar. Não devemos nos perturbar com aquilo que não podemos evitar.39 O sábio

não permitirá que nenhum dinheiro de proveniência suspeita transponha o umbral de sua porta; mas não rejeitará nem repelirá grandes riquezas, dom da fortuna e fruto da virtude.40

Para a quarta máxima, Descartes toma a experiência de sua própria vida, voltada para a procura da verdade, em que tem por gozo exclusivamente o prazer de cultivar a razão.41

Gaukroger observa que se trata menos de uma máxima do que um aparte autobiográfico.42

Observemos que o próprio Descartes, ao referir-se à moral par provision, menciona “três ou quatro máximas.”43

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 43-46)