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As preocupações intelectuais de Descartes após sua formação

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 30-35)

Após completar seus estudos,52 Descartes dirige-se à Holanda para juntar-se ao

exército holandês, comandado pelo príncipe Maurício de Nassau,53 que se encontrava

aquartelado em Breda. Nesta cidade, veio a conhecer Beeckman54que ali estava de passagem.

Antes do encontro com Beeckman, a física conhecida por Descartes era a de Aristóteles, estudada por ele em La Flèche. A física aristotélica fundamentava-se na noção de

forma substancial, que condicionava toda a sua estrutura. Para o Estagirita, a verdadeira

realidade – a substância – é o composto físico que surge da união de matéria e forma (composição hilemórfica). Entretanto, já a partir da segunda metade do século XVI, estudiosos originais empreendem esforços em busca de uma ciência da natureza, distinta da física qualitativa aristotélica. Um dos nomes que ganha vulto é o do matemático italiano, natural de Veneza, Giambattista Benedetti (1530-1590). Outro estudioso da época que irá contribuir para a construção da nova física é Simon Stevin (1548-1620) cidadão flamengo, notável por seus conhecimentos de física e matemática. Stevin foi convidado pelo príncipe Nassau55 para ocupar importante posto em seu exército, onde se revelou também como um

grande engenheiro militar. Na física, estudou os campos da estática e da hidrostática, desenvolvendo importantes trabalhos.56 Embora Descartes e Stevin, fizessem parte, na mesma

época, do exército do Príncipe Nassau, não há registro de encontro entre eles.

Beeckman desenvolveu estudos particulares de matemática e de física, elaborando questões fundamentais de mecânica e de acústica.57Entre os problemas mostrados por ele a

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Após ter deixado La Flèche, Descartes foi estudar “jurisprudência” na Universidade de Poitiers, como já tinha ocorrido com seu irmão mais velho. Em novembro de 1616, recebeu, com elogio, os títulos de bacharel e de licenciado em Direito. A realização deste curso pode ser vista mais como uma submissão à vontade paterna do que como uma livre escolha, sabendo-se que, àquela época não havia ainda atingido a maioridade. Em nenhum momento ele mencionou explicitamente esses seus estudos, nem tampouco manifestou qualquer interesse pela advocacia. (Cf. RODIS-LEWIS, 1995, p. 40-41).

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Descartes, seguindo o exemplo de muitos jovens da nobreza francesa, alista-se por vontade própria no exército do príncipe Maurício de Nassau. A política francesa era de apoio aos holandeses contra os espanhóis. Era visto como um gesto patriótico a decisão de um jovem francês fazer parte do exército holandês. Por outro lado, o príncipe Nassau era um homem culto, distinguindo-se como matemático, expert na arte de fortificações e na arte militar, bom político e bom guerreiro. Estas qualidades não devem ter passado despercebidas de Descartes. (Cf. GAUKROGER, 1999, p. 95; Cf. RODIS-LEWIS, 1995, p. 45 e Cf. BAILLET, 1946, p. 23).

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Isaac Beeckman era um jovem holandês de Middelburg, de vasta cultura, cerca de seis anos mais velho que Descartes. O primeiro encontro dos dois ocorreu em 10 de novembro de 1618. Estabeleceu-se logo uma grande amizade, dada a afinidade intelectual existente entre ambos. (Cf. RODIS-LEWIS, 1995, p. 46-55; Cf. GAUKROGER, 1999, p. 100-105).

55 Rodis-Lewis nos diz que, por ocasião da chegada de Descartes, provavelmente Stevin, bem como Nassau não

se encontravam em Breda. Cf. RODIS-LEWIS, 1995, p. 45.

56

RODIS-LEWIS, 1995, p. 45. Cf. GAUKROGER, 1999, p. 97 e 119.

Descartes, um foi objeto de estudo de Galileu (a queda dos corpos), e outro, de Stevin (no campo da hidrostática). Beeckman havia lido Stevin, mas não conhecia Galileu.58

Beeckman exerceu um verdadeiro fascínio sobre o jovem Filósofo. Revelou-lhe que a física deve ser considerada quantitativamente, mediante fórmulas matemáticas.59 Ele situa-se

entre os primeiros a aplicar a matemática ao estudo da física. Descartes jamais havia encontrado alguém, antes de Beeckman, que unisse a matemática à física.

Os encontros com Beeckman em Breda, ocorridos entre 10 de novembro de 1618 e o final de dezembro do mesmo ano, apresentaram-se para Descartes como um estágio de intensa aprendizagem, imprimindo-lhe uma mudança de orientação e aprofundamento de seus conhecimentos da física e da matemática aplicada. Esta nova visão da matemática, com sua aplicação às ciências da natureza, mostrou-lhe um alcance científico bem mais amplo que as meras utilizações práticas. Após a rápida convivência em Breda, Descartes e Beeckman continuaram a se comunicar através da troca de correspondência.

Em abril de 1619, Descartes deixa Breda e dirige-se à Alemanha para juntar-se, desta vez, ao exército católico de Maximiliano da Baviera, aliado da França, que se encontrava aquartelado em Ulm, localidade situada entre Frankfurt e Viena. Como havia acontecido na Holanda, também na Alemanha, não participou de batalhas, sendo mais uma vez favorecido pela trégua acordada entre os exércitos beligerantes. A suspensão das hostilidades permitiu- lhe, mais uma vez, voltar-se para suas atividades intelectuais. Manteve contatos com o matemático Johannes Faulhaber, que havia publicado vários textos matemáticos e científicos, incluindo trabalhos sobre mecânica e ótica.60

É possível que o seu desejo de passar por exércitos tenha sido motivado pela leitura de Les Essais. Se ele não leu Montaigne em La Flèche, por influência de Camus, bispo de Balley, como já nos referimos acima, leu-o logo depois de sua saída do Colégio. Não passaram despercebidas de Brunschvicg61 as semelhanças de pensamentos e de estilo de

Descartes e Montaigne sobre a vida militar. Vejamos o que diz Montaigne:

Não há ocupação mais agradável do que a militar: nobre em sua prática [...] e nobre em seu fim [...] É agradável a companhia de tantos homens fidalgos, jovens ativos: a imagem habitual de tantos espetáculos trágicos: a liberdade

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Cf. RODIS-LEWIS, 1995, p. 50. Rodis-Lewis, na mesma página, afirma que historiadores das ciências ao estudarem estes textos, ficaram impressionados como estudiosos, realizando as mesmas experiências de forma independente, apresentam erros análogos.

59 RODIS-LEWIS, 1995, p. 47 e 55. 60

Cf. GAUKROGER, 1999, p. 144.

desta conversação sem artifício e um modo de vida viril e sem cerimônia.62

Comparemos o que foi expresso acima por Montaigne com o que foi registrado por Descartes no Discours sobre as experiências de suas viagens e passagens por exércitos:

[...] e depois ao viajar, tendo reconhecido que todos aqueles que têm sentimentos muito contrários aos nossos, não são por isso, bárbaros nem selvagens, mas que muitos usam tanto ou mais que nós, da razão; e tendo considerado quanto um mesmo homem, em seu mesmo espírito, sendo criado desde sua infância entre franceses ou alemães, torna-se diferente do que seria se vivesse sempre entre Chineses ou Canibais; e como até nas modas de nossos trajes, a mesma coisa que nos agradou há dez anos e que talvez nos agradará ainda antes de dez anos, nos parece agora extravagante e ridículo; de sorte que são bem mais o costume e o exemplo que nos persuadem, do que qualquer conhecimento certo.63

Passou ainda o inverno de 1619-1620 na Alemanha, recolhido em seu famoso poêle

ou quartier,64 entretendo-se com seus pensamentos, como ele mesmo o diz.65

Esse ambiente isolado, silencioso e aconchegante foi palco de grandes transformações que se verificaram no pensamento de Descartes. Segundo o registro de Baillet, foi na noite de 10 de novembro de 1619 que Descartes teve três sonhos consecutivos, interpretados por ele mesmo, ainda durante o sono.66 As explicações em torno desses sonhos

são as mais variadas: uma crise mística de Descartes? Um colapso nervoso? Não entraremos no mérito dessas discussões.67

Comentaremos apenas o terceiro sonho,68por ser o mais significativo sob o ponto de

vista intelectual: “Um momento depois, ele teve um terceiro sonho que nada tem de terrível

62 MONTAIGNE, 2001. p. 1708. 63

DESCARTES. Discours de la Méthode. AT, VI, p. 9 e 16. "Cette présentation du bom usage des voyages [Descartes] s’inspire largement de Montaigne [...]” (RODIS-LEWIS, Geneviève. L’Oeuvre de Descartes. Paris, Vrin, 1971a. t. I. p. 58). Acréscimo nosso.

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Espécie de aquecedor ou estufa. O aposento é aquecido por um forno que fica do lado de fora, na parede contígua, sem causar incômodo ao hóspede com correntes de ar, fumaça e faíscas. Em Les Essais, Montaigne elogia este sistema de calefação, superior às lareiras francesas. (Cf. MONTAIGNE, 2001, p. 1682). RODIS- LEWIS afirma que, pelo fato de Descartes referir-se ao exército, no início da Segunda Parte do Discours, e logo depois mencionar a palavra quartier, a maior parte dos comentadores confundiu a palavra quartier (que no contexto significa recanto, lugar retirado), com quartier d'hiver, onde se agrupavam os soldados ociosos, durante a estação invernosa. (Cf. RODIS-LEWIS, 1995, p. 60-61 e 327-328. Cf. também DESCARTES.

Discours de la Méthode. AT, VI, p.11)

65 Cf. DESCARTES, AT, VI, p. 11.

66 BAILLET apud ADAM & TANNERY, v. X, p. 181-188. 67

Geneviève Rodis-Lewis faz referência a MILHAUD, que em seu livro Descartes Savant [Paris, 1921], (acréscimo nosso), fala de uma crise mística de Descartes. Cita também MARITAIN que na obra Le Songe

de Descartes, Paris, 1932, afirma: “le songe d’une nuit d’automne, excité par um malin génie dans um

cerveau de philosophe”. (RODIS-LEWIS, L’Oeuvre de Descartes. Paris, Vrin, 1971b. t. II, p. 449. Cf. GAUKROGER, 1990, p. 150.

68 “Il est assez naturel que Descartes ait reconstitué le dernier dans tous sés détails: mais le second et surtout le

premier”? (GOUHIER, Henri. Les Premières Pensées de Descartes: Contribution a l’Histoire de l’Anti- Renaissance 2. ed. Paris: Vrin, 1979. p. 33.

como os dois primeiros.”69 Descartes vê um livro sobre sua mesa sem saber sua procedência e

o abre: é um Dicionário ou melhor, uma Enciclopédia.70 Apodera-se dele, na esperança de ser-

lhe muito útil. Eis que, de repente, encontra-se com outro livro em suas mãos, que não lhe é desconhecido, mas sem saber de onde viera. Observa que se trata de uma compilação de poesias de diversos autores, intitulada Corpus Poetarum &c. Surge-lhe a curiosidade de ler alguma coisa. Ao abri-lo, depara-se com o verso: Quod vitae sectabor iter? (Que caminho

seguirei na vida)? Repentinamente, um homem desconhecido apresenta-lhe uma poesia,

exaltando-a, que começa com o verso Est et Non ( Sim e Não). Descartes diz-lhe que conhece o poema; é um idílio de Ausônio, que se encontra no Corpus Poetarum que está sobre a mesa. Quer mostrá-lo ao estranho e põe-se a folhear o livro, vangloriando-se de que conhece muito bem sua organização. Enquanto procura o poema, o homem pergunta-lhe onde conseguira a Coletânea. Descartes retruca-lhe que não lhe pode dizer como o livro tinha surgido; mas que um momento antes, havia manuseado um outro que desaparecera, sem que soubesse quem lho tinha trazido e quem lho tinha retomado. Mal acaba de falar, o livro aparece na outra extremidade da mesa. No entanto, descobre que é a Enciclopédia, mas não mais exatamente igual à que tinha visto anteriormente. Ele encontra as poesias de Ausônio na Antologia dos Poetas, que folheava, mas não a que começa por Est et Non, e diz ao homem que conhece uma do mesmo Poeta, ainda mais bela, que se inicia por Quod vitae sectabor iter? O estranho pediu que lha mostrasse e Descartes sentindo-se na obrigação de procurá-la, depara-se com pequenos retratos gravados no livro.71 Isto o leva a pensar que o livro que tem em suas mãos é

muito bom, mas a edição não é a mesma que ele conhece. Os livros e o homem desaparecem, sem que ele despertasse.72

69 AT, X, p. 182.

70 Rodis-lewis, em Descartes: Biographie, chama-nos a atenção sobre o que Baillet chama em francês de

Dictionnaire, por trazer certa obscuridade para o entendimento da interpretação dada por Descartes sobre seu

sonho, ao referir-se a um livro. Diz-nos que o padre Poisson, em seu Comentário sobre o método, cita outro fragmento de manuscritos de Descartes, do tempo de juventude, que permite mostrar o termo latino

encyclopoedia (encyclopédie, em francês) relacionado ao encadeamento das ciências. (Cf. AT, X, p. 182; Cf.

RODIS-LEWIS, 1995, p. 67 e nota n° 35, p. 329. “Não há dúvida, que todas as ciências se encontram encadeadas; nenhuma delas pode ser tida como completa, sem que as outras resultem espontaneamente, e se possa apreender de uma vez toda a enciclopédia”. (AT, X, p. 255).

71

Michel Adam afirma que estes elementos do sonho (pequenos retratos) correspondem à maneira como Charron apresenta De la Sagesse metaforicamente. (Cf. ADAM, Michel. Plaidoyer por Charron. In: Études

sur Pierre Charron. Bordeaux: Presses universitaires de Bordeaux, 1995. p. 193). Nesta mesma página, em

nota de n. 41, Adam nos remete à nota de n. 18 de GOUHIER, 1979, p. 50. Na nota, GOUHIER relata e comenta a interpretação de Descartes sobre o Corpus Poetarum do terceiro sonho e a compara com a gravura que aparece na folha de rosto da segunda edição (1604) de De la Sagesse, cuja descrição foi feita pelo próprio Charron. Na gravura, uma das mulheres está com um livro aberto em que se pode ler: oui, non.

72 Cf. AT, X, p. 182-184. (O sonho foi narrado em um manuscrito de 12 páginas, deixado por Descartes,

intitulado Olympica, que teve seu registro iniciado em novembro de 1619 e que chegou até nós através de BAILLET em sua obra Vie de Monsieur Descartes - 1691 e que se encontra transcrito em Oeuvres de

Baillet observa a singularidade desse acontecimento. Descartes levanta a dúvida: fora um sonho ou uma visão? Não só decidiu, ainda dormindo, que se tratava de um sonho, como também fez sua interpretação antes de despertar.73

Vejamos como Descartes interpreta seu terceiro sonho. A Enciclopédia representa todas as ciências tomadas em sua totalidade. O Corpus poetarum significa, em particular e de maneira especial, a Filosofia e a Sabedoria,74conjuntamente. Porque ele acredita que não é de

causar espanto o fato de os poetas poderem ter sentenças mais sensatas e que exprimam melhor do que as existentes nos escritos dos filósofos.75

Ele atribui esta maravilha à divindade do Entusiasmo, e à força da Imaginação, que faz surgir as sementes da sabedoria (que se encontram no espírito de todos os homens, como as centelhas de fogo nas pederneiras) com bastante mais facilidade e mesmo bastante mais brilho que a Razão dos Filósofos não pode fazer.76

Continuando a interpretar seu sonho durante o sono, julga que o verso quod vitae

sectabor iter (sobre a incerteza do gênero de vida que se deva escolher), poderia tanto

representar o conselho de um personagem sábio, como a Teologia moral. Desperta sem emoção e continua de olhos abertos a sua interpretação, seguindo a mesma ideia: o Est et Non, o Sim e Não de Pitágoras representa a “Verdade e a Falsidade nos conhecimentos humanos e as ciências profanas”. Descartes estava persuadido de que “era o Espírito da Verdade que tinha querido lhe abrir os tesouros de todas as ciências por este sonho.”77

A noite de 10 de novembro de 1619 passa a ser um marco decisivo na vida intelectual do filósofo.78 Se, após seus estudos em La Flèche e Poitiers, suas preocupações

intelectuais concentravam-se no campo da matemática (sobretudo na geometria), e na nova física que descobrira no ano anterior, com o auxílio de Beeckman; a partir de 10 de novembro

73 Cf . AT, X, p. 184.

74 É possível, (consideração nossa) que o emprego da palavra sabedoria associada à filosofia seja uma

influência da leitura de De la Sagesse de Charron, ainda no tempo de La Flèche, ou após sua saída do Colégio. Além das edições sucessivas de De la Sagesse, a partir de 1601, como já mencionamos anteriormente, sabe-se que, no final de 1619 ele recebeu de presente, do Padre Jean B. Molitor, um exemplar da obra de Charron. (Cf. RODIS-LEWIS, 1995, p. 71. Todavia, em 1998, Rodis-Lewis assegura de maneira mais precisa, que Descartes recebeu a doação de De la Sagesse em 31 de dezembro ou em 1° de janeiro. (Cf. FAYE, 2005, p. 9).

75 Cf. AT, X, p. 184. 76

AT, X, p. 184. (ADAM & TANNERY, em nota de rodapé afirmam que dispõem do texto latino, no qual esta citação é a tradução quase letra por letra).

77 Cf. DESCARTES. Olympica. AT, X, 182-185. Trata-se de um manuscrito deixado por Descartes, mas que se

encontra hoje perdido. No entanto, foi transcrito por Baillet, em La Vie de Monsieur Descartes. Cf. também GOUHIER, 1979, p. 32-35.

de 1619, voltar-se-ão para a totalidade do saber.79 O que lhe interessa agora é a sistematização

das ciências. Esta foi sua grande descoberta.80

Nosso próximo passo, seguindo o itinerário do método genético-histórico a que nos propusemos, será investigar as primeiras ideias ou primeiras manifestações de Descartes no campo da moral.

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 30-35)