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Livre-arbítrio e vontade

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 155-159)

3 A MORAL DE DESCARTES NO TRATADO DAS PAIXÕES

3.5 A moral em As Paixões da Alma

3.5.1 Livre-arbítrio e vontade

Somente o homem age voluntariamente. A liberdade é um atributo exclusivo do ser racional, condição indispensável à moralidade. É na vontade, e somente nela, que se situa a faculdade de escolher ou o livre-arbítrio. Para Descartes, “a principal perfeição do homem é ter um livre-arbítrio, e é isso que o torna digno de louvor ou de censura.”109A liberdade, para

ele, está tão intrinsecamente ligada ao nosso ser, que não necessita de provas. Cada um de nós

103

Cf. GUENANCIA, 2000, p. 208-209 e 211. (Grifos nossos).

104

DESCARTES. Discourd de la Méthode. AT, VI, p. 1.

105 GUENANCIA, 2000, p. 209. 106

“Literalmente”, temos como exemplos os relatos no Discours; “coloquialmente”, temos sobretudo as cartas denominadas “cartas morais” trocadas entre seus discípulos mais íntimos. Há uma passagem, a que já nos referimos, em uma carta a Chanut em que o Filósofo lhe apresenta razões para justificar sua recusa a escrever seus pensamentos sobre a moral. (Ver p. 127, acima incluindo nota n. 33). Todavia, nessa mesma carta ele acrescenta: “Mais ces deux raisons cessent en l’occasion que vous m’avez fait l’honneur de me donner, en m’écrivant, de la part de l’incomparable Reine auprès de laquelle vous êtes, qu’il lui plaît que je lui écrive mon opinion touchant le souverain bien; car ce commandement m’autorise assez, et j’espere que ce que j’ecris ne sera vu que d’elle et de vous.” DESCARTES, 1955, p. 286. (Carta a Chanut de 20 de novembro de 1647). O que queremos confirmar com esta passagem é a forma simples que Descartes escolheu para transmitir sua moral a alguns de seus discípulos.

107

Cf. DESCARTES, 1955, p. 90-91. (Carta a Elisabeth, de 15 de setembro de 1645). Cf. DESCARTES, 1955, p. 284-285. (Carta à rainha Christina da Suécia, de 20 de novembro de 1647). Méditations. AT, IX-1, p. 45. DESCARTES, 1999b, Art. CLII.

108

DESCARTES, 1999b, Art. CXLVI.

a sente e a experimenta todos os dias e a conhecemos pela luz natural.110Vejamos o que ele

afirma em Les Principes: “é tão evidente que temos uma vontade livre, que pode dar seu consentimento ou não o dar, quando bem lhe parecer, que isto pode ser tomado por uma de nossas noções mais comuns.”111 Na passagem acima, temos uma definição simples de nosso

livre-arbítrio, ainda que rica em conteúdo. Em Meditatio IV, numa mesma definição, englobando a vontade e o livre-arbítrio, temos a exaltação de nossa liberdade que nos faz próximos de nosso Criador: “Há somente a vontade que constato ser em mim tão grande, que não concebo a idéia de nenhuma outra [faculdade] mais ampla e mais extensa; de maneira que é ela principalmente que me faz conhecer que possuo a imagem e semelhança de Deus.”112

Descartes estabelece uma comparação entre as nossas duas principais faculdades: “[...] de todas as outras coisas que estão em mim, não há nenhuma tão perfeita e tão extensa, que não reconheça realmente que ela poderia ser ainda maior e mais perfeita. Pois, por exemplo, se considero a faculdade do entendimento que está em mim, acho que ela é de tão pequena extensão e grandemente limitada e, ao mesmo tempo, me represento a idéia de uma outra faculdade bastante mais ampla, e mesmo infinita.”113

Ainda em Méditation IV, encontramos duas definições de livre-arbítrio, aparentemente contraditórias. A primeira mostra que a vontade “consiste somente em que podemos fazer uma coisa, ou não fazer (isto é, afirmar ou negar, procurar ou evitar), ou antes somente em que, para afirmar ou negar, perseguir ou fugir das coisas que o entendimento nos propõe, agimos de tal modo que não sentimos nenhuma força exterior a nos obrigar.”114

A segunda definição aparece um pouco mais adiante, na mesma página:

Para que eu seja livre, não é necessário que seja indiferente quanto à escolha de um ou de outro dos dois contrários, mas antes, quanto mais eu pender para um, seja porque reconheça evidentemente que o bem e a verdade aí se encontrem, seja porque Deus disponha assim o interior de meu pensamento, tanto mais livremente o escolherei e o abraçarei.115

Como para reforçar essa última definição, Descartes completa: “E certamente a graça divina e o conhecimento natural, bem longe de diminuírem minha liberdade, antes a aumentam e a fortalecem.”116

110 Cf. DESCARTES. Méditations. AT, IX-1, p. 148 (Resp. às 3as Objeções – objeção 12 contra a IV

Meditação). Cf. DESCARTES, 1955, p. 116. (Carta a Elisabete, de 6 de novembro de 1645).

111

DESCARTES. Les Principes de la Philosophie. AT, IX-2, p. 41. (Art. 39).

112 DESCARTES, Méditations. AT, IX-1, p. 45. Em DESCARTES. Meditationes de prima philosophiae. AT,

VII, p. 57, encontramos: voluntas, sive arbitrii libertas (vontade ou livre-arbítrio), no lugar de apenas a

vontade como aparece na versão francesa. (acréscimo nosso).

113 Ibid., AT, IX-1, p. 45. 114 Ibid., AT, IX-1, p. 46. 115

DESCARTES. Méditations. AT, IX-1, p. 46.

Para Laporte, em relação a esta última definição de livre-arbítrio, Descartes alinha-se a Santo Tomás e à maior parte dos escolásticos.117Na primeira definição, a vontade encontra-

se indeterminada, sem incidir sobre ela qualquer tipo de constrangimento, podendo seguir uma ou outra direção. Já a segunda parece contradizer a primeira, visto que a indiferença ou indeterminação não aparece como essencial.

Se a verdadeira liberdade humana não consistir em um poder da vontade em escolher entre direções que se opõem como, afirmar ou negar, perseguir ou fugir, mas em uma submissão à luz natural da razão posta por Deus em nós, não está sendo negada a sua autonomia? Uma possível solução para o problema, segundo Cottingham,118 pode ser

encontrada na carta a Mesland:

[...] quando uma razão muito evidente nos conduz ao bem, ainda que, moralmente falando, não possamos escolher o partido contrário, no entanto, absolutamente falando, nós o podemos. Pois, nos é sempre possível nos impedirmos de perseguir um bem claramente conhecido ou de admitir uma verdade evidente, desde que pensemos ser um bem afirmar com essa atitude nosso livre-arbítrio.119

Alquié, comentando essa passagem da carta a Mesland, afirma que Descartes parece lembrar a tese tomista de que só se pode querer algo sob a razão do bem. No entanto, a posição assumida pelo Filósofo, fazendo da liberdade um absoluto, é totalmente nova, visto que o homem, em plena consciência, poderá recusar a Verdade e o Bem. Porém, a consequência disso é que, em certo sentido, usamos de uma liberdade muito grande, quando vendo o melhor, tomamos o partido do pior. Poderemos ver nessa concepção trágica, continua Alquié, o eco de uma reflexão sobre o pecado original: essa liberdade que constitui o ser do homem e aparece como o fundamento de seu mérito, torna-se também a razão de sua perda.120

Laporte, ao comentar a passagem da carta de Descartes a Mesland, acima citada, inicia fazendo a distinção de duas espécies de determinação: a) a determinação absoluta, que só é possível como uma ficção. No caso do livre-arbítrio, seria supor essa determinação reinando sobre a vontade, e nela suprimindo inteiramente toda espécie de indiferença; b) a determinação relativa, saída da concupiscência, das paixões, dos hábitos, enfim, de todas as influências pelas quais a alma é dita “determinada”, mas que não suprime jamais, de todo, o poder de escolher, deixando sempre, à falta do equilíbrio, subsistir a indiferença de eleição.121 117

Cf. LAPORTE, Jean. La Liberté selon Descartes. Revue de Métaphysique et de Morale. Paris, n. 44, p. 101-164, 1937. p. 120.

118 Cf. COTTINGHAM, 1995, p. 99.

119 DESCARTES, 1998b, p. 552. (Carta a Mesland de 9 de fevereiro de 1645). 120

Cf. DESCARTES, 1998b, p. 552, nota n. 1.

Segundo ainda Laporte, o homem encontra-se sempre em estado de recusar seu consentimento, seja à verdade, seja ao bem que se dá a conhecer claramente pela razão. Para suspender nosso julgamento basta um único motivo: a liberdade que tem nossa vontade de fazê-lo; e isto em Descartes é uma novidade.122

Para Laporte, a liberdade é o nervo da moral cartesiana.123 O livre-arbítrio é a

faculdade de julgar. Todo julgamento é o produto de dois fatores que procedem de faculdades distintas: o primeiro deles manifesta-se na faculdade do entendimento, que é o conhecimento ou percepção de um objeto; o outro se apresenta na vontade, mediante o consentimento dado ao objeto oferecido pelo entendimento. A perfeição do conhecimento é de ser verdadeiro; enquanto a perfeição da aprovação é de ser determinada pela visão clara da verdade, pela evidência. Duas condições contribuem para a perfeição do uso do livre-arbítrio: a primeira é a de conhecer, de maneira clara, a bondade disso que se deseja, isto é, o verdadeiro bem; a segunda é aderir firmemente, com vigor e constância, tendo como modelo a liberdade divina.124

À primeira vista, poder-se-ia ter a idéia de que a segunda condição encontra-se na dependência da primeira. Mas, como mostramos anteriormente, essa não é a maneira de pensar de Descartes. Não há uma determinação nessa adesão, “pois o homem podendo não ter sempre uma perfeita atenção às coisas que ele deve fazer [...],”125saberá comofazer uso de seu

livre-arbítrio. Vejamos o que nos diz o próprio Descartes:

Pois, ainda que observe essa fraqueza em minha natureza, de que não posso ligar continuamente meu espírito a um mesmo pensamento, posso, no entanto, por uma meditação atenta e muitas vezes reiterada, me imprimir tão fortemente na memória que eu não deixe jamais de me lembrar, todas as vezes que tiver necessidade, e adquirir assim o hábito de não falhar. E, na medida em que é nisto que consiste a maior e principal perfeição do homem, considero não ter ganhado pouco com esta Meditação, ao haver descoberto a causa das falsidades e dos erros.126

No pensamento de Descartes, nem sempre há essa concordância entre o entendimento e a vontade. Só em Deus, não há nenhuma discordância entre o entender e o

122 Cf. ibid., p. 135-136. 123 Cf. LAPORTE, 1937, p.162.

124

LAPORTE, Jean. Le Rationalisme de Descartes. 4. ed. Paris: Presses Universitaires de France, 2000. p. 428.

125

DESCARTES. Correspondance. AT, IV, p. 117. (Carta a Mesland, de 2 de maio de 1644).

querer.127 O Soberano Bem do homem é o uso do livre-arbítrio, fonte de sua beatitude, e poder

que ele tem, tanto de fazer o mal, como de fazer o bem.

Ainda que a moral cartesiana se inspire na moral tomista, não se identifica com ela, possui significação própria. Em Descartes há a ideia de uma liberdade transcendente (sem ser teologia) que começa por se desdobrar em conhecimento e em vontade, em determinação e em indiferença, em racional e em irracional.128 Laporte conclui: “A originalidade da doutrina

Cartesiana da liberdade é de ser a alma do Cartesianismo. Como, inversamente, a originalidade do Cartesianismo é de ser uma ‘filosofia da liberdade.’”129

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 155-159)