• Nenhum resultado encontrado

Primeiras manifestações de Descartes sobre a moral

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 35-40)

Examinaremos agora os primeiros escritos81 de Descartes para descobrirmos os traços

iniciais de seu pensamento moral. Dois textos não publicados pelo filósofo merecem, em primeiro lugar, nossa atenção: Studium Bonae Mentis e Cogitationes Privatae.82 O primeiro,

possivelmente um texto inacabado, “que Baillet o teve entre as mãos”, mas que depois se perdeu.83 O que sabemos sobre este escrito deve-se a Baillet, que discorre sobre ele no livro de

sua autoria Vie de Monsieur Descartes, apresentando-nos “extratos que parecem ser traduções.”84

Textos de Baillet sobre Studium, compreendendo um pequeno fragmento em latim do escrito original deixado por Descartes, Cogitationes Privatae e outros fragmentos de manuscritos encontram-se em Oeuvres de Descartes de Charles Adam e Paul Tannery com a denominação Opuscules de 1619-1621.85

Studium Bonae Mentis foi traduzido por Baillet de duas maneiras: por Étude de Bon Sens ou Art de Bien Comprendre.86O escrito Bonae Mentis (Sobre a Boa Mente) trata, em

síntese, de

[...] considerações sobre o desejo que temos de saber sobre as ciências, sobre as disposições do espírito para aprender sobre a ordem que se deve manter para adquirir a sabedoria, isto é, a ciência com a virtude, unindo as funções da vontade com aquelas do entendimento.87

79

Ibid. p. 146.

80

“Cette découverte de l'unité du corps des sciences, dont l'invention s'accompagna d'enthusiasme, est aussi celle qui exprime dans les pages si prudentes et si méticuleusement restrictives du Discours de la Méthode.” (GILSON, 1987, p. 159). Ver também DESCARTES. Discours de la Méthode. AT, VI, p. 11-16.

81

O que ora denominamos primeiros escritos são anotações diversas esboçadas por Descartes entre 1619 e 1623, encontradas sob a forma de manuscritos e fragmentos de manuscritos, após sua morte. Alguns destes escritos encontravam-se encabeçados por título, outros, não. Descartes nunca os publicou.

82

O título Studium Bonae Mentis foi dado pelo próprio Descartes. Provavelmente o texto data de 1623. (Cf. MESNARD, 1936, p. 7). Já o nome Cogitationes Privatae é atribuído ao conde Foucher de Careil, como já nos referimos anteriormente. (Ver nota. n. 38, na p. 24 desta nossa pesquisa).

83 Cf. AT, X, p. 176. Cf. RODIS-LEWIS, 1971, t. I, p. 72. 84 Cf. AT, X, p. 176. 85 Cf. Ibid. p. 171-276. 86 Cf. Ibid. p. 191.

Comparemos o que Baillet nos acaba de dizer sobre o Studium Bonae Mentis e uma passagem de Charron em La Sagesse, onde ele menciona a necessidade de se fazer uma escolha entre as ciências: “Aquelas [ciências] que recomendo sobre todas as demais, e que servem para o fim que acabo de dizer, são as naturais e morais que ensinam a viver e bem viver, a natureza e a virtude; isto que somos e o que devemos ser.”88 Vejamos agora o que nos

diz Sêneca:

De resto, de acordo com todos os estoicos, atenho-me à natureza das coisas; a sabedoria está em não se afastar dela e pautar-se por sua lei e seu exemplo. Uma vida feliz é a que está em conformidade com sua natureza e isso só pode acontecer se, antes de mais nada, a alma está em sã e em perfeito estado de saúde.89

Observemos que Charron, da mesma maneira que Descartes, encontra-se afinado com o pensamento estoico.

A menção do nome virtude, em Bonae Mentis, assinala a primeira idéia de moral de Descartes em seus escritos. Para Gilson, Studium Bonae Mentis revela as preocupações metodológicas e morais de Descartes naquela época.90 Ao unir a ciência com a virtude,

encontra-se também em sintonia com o discurso socrático nos diálogos platônicos. No

Protágoras, a virtude é declarada como ciência.91

A tradução francesa “bon sens” da expressão latina bona mens significa também sabedoria no sentido estoico.92 Sêneca emprega bona mens no sentido de sabedoria. Em Regulae, Descartes emprega a expressão latina ora com o significado de bom senso: “[...]

bona mente, sive de hac universali Sapentia [...]”,93 ora significando sabedoria: “[...] ab ijs

88 CHARRON, 1986, p. 694. (Grifos e acréscimo nossos). 89

SÊNECA, 2005, p. 27.

90

Cf. GILSON. Notes et Commentaires. In: DESCARTES, René. Discours de la Méthode. Texte et commentaires par Étienne Gilson. 6. ed. Paris: Vrin, 1987. p. 180.

91

Em Protágoras, a exposição de Platão sobre a virtude manifesta-se de maneira mais ambiciosa do que em outros diálogos socráticos. No texto, o Filósofo enfoca a questão de sua unidade, sua relação com as diferentes partes como a justiça, a sabedoria, a coragem e sua relação com o saber. (Cf. ILDEFONSE, Frédérique. Introduction. In: PLATON. Protagoras. Présentation et traduction inédite par Frédérique Ildefonse. Paris: Flammarion, 1997. p. 9. No Texto, Sócrates, em seu diálogo com Protágoras, assim se coloca: “Em teu discurso, em contrapartida, tu falas, por várias vezes, como se a justiça, a sabedoria, a piedade e todas as qualidades do gênero fossem uma única coisa, em uma palavra, a virtude; eu gostaria que me desses uma explicação precisa sobre este assunto: que a virtude é uma coisa única, e que a justiça, a sabedoria e a piedade são suas partes”. (PLATON. 1997, 329c). Na nota n. 171, referente a este trecho, temos: “Sócrates, sem tocar no resto da exposição, fixa-se em alguns pontos que Protágoras deixou indeterminados. [...] os termos seguintes operam a passagem entre as preocupações de Protágoras e o ponto onde Sócrates quer chegar, ou seja, a unidade das virtudes morais no saber (Sophia).” ( Ibid. p. 179). Grifos nossos.

92

Cf. GILSON, 1987, p. 81-82.

omnibus, qui serio student ad bonam mentem pervenire”.94 Em uma carta a Elisabeth,

Descartes emprega a expressão bon sens (bom senso) em dois sentidos: “E creio que, como não há nenhum bem no mundo, exceto o bom senso, que se possa absolutamente nomear bem, não há também nenhum mal, do qual não se possa tirar alguma vantagem, tendo o bom

senso.”95 Na citação, o primeiro uso da expressão bon sens refere-se à sabedoria (sagesse); o

outro, ao bom senso como faculdade de distinguir o verdadeiro do falso.96 Gilson opina que

Baillet deveria ter traduzido o título deixado por Descartes, Studium Bonae Mentis por Étude

de la Sagesse ou por Étude de la Philosophie.97 Descartes, na Carta-Princípio, nos diz: “esta

palavra Filosofia significa o estudo da Sabedoria”; e ainda: “a Sabedoria, de que a Filosofia é o estudo”.98

Mesnard também discorda do título Étude de Bon Sens, dado por Baillet, por julgar o texto como um estudo “muito especial”. Duas sugestões de título são por ele apresentadas:

Étude de la Sagesse (o mesmo de Gilson) ou Réforme de l'Entendement. Para ele, o título

dado por Descartes é um convite à purificação ou regulamentação do espírito, para facilitar “o desejo que temos de saber”, para definir “as disposições do espírito para aprender.”99 Quanto

ao título Réforme de l’Entendement, preferido por Mesnard para a tradução de Studium Bonae

Mentis, Rodis-Lewis o vê, a princípio, como muito intelectualista, mas reconhece o apelo

dinâmico ao empenho contido no escrito, assemelhando-se ao que está expresso em Regulae

ad Directionem Ingenii: “aqueles que se empenham seriamente em alcançar a sabedoria.”100

A boa mente (bona mens) é o espírito capaz de buscar a verdade, despojando-se do ônus de uma erudição enganosa para avançar corajosamente na trilha da boa via. Esta

360). (Regulae é um manuscrito inacabado deixado por Descartes. As primeiras regras provavelmente foram redigidas entre 1619-1620. A maior parte, das vinte e uma regras, teve sua redação entre 1626 e 1628. Cf. GAUKROGER, 1999, p. 152 e 551 e RODIS-LEWIS, 1995, p. 88 e 94).

94 DESCARTES. Regulae ad Directionem Ingenii. AT, X, p. 395. Vejamos a tradução no texto em francês

realizada por J. Sirven: “[...] par tous ceux qui s’efforcent sérieusement de parvenir à la sagesse.” (DESCARTES. 1996a. Règle VIII, p. 50. Nota: nas citações textuais de Descartes de textos em francês, ou em latim, respeitamos a grafia original do autor, tal como aparece em determinadas edições de suas obras, sobretudo na edição de suas obras completas, publicadas por ADAM e TANNERY. Não se trata apenas de grafias de palavras mas até tempos de verbos com formas arcaicas. Exemplos em francês: j’ ay (ai), iamais (jamais), oster (ôter), sçauroit (saura), vn (un), siecle (siècle), conseruer (conserver), pust (put), mesme (même), informez (informés), etc. No latim: ijs (iis), ejus (eius), vt (ut) e outras palavras. Procedimento semelhante adotaremos para outros escritores, como é o caso de Charron em sua obra De la Sagesse.

95 DESCARTES, R. Lettres sur la Morale: correspondance avec la princesse Élisabeth, Chanut et la reine

Christine. Texte revu et présenté par Jacques Chevalier. Paris: Hatier-Boivin, 1955. p. 55). (grifos nossos).

96

Cf. GILSON, 1987, p. 81-82.

97 Cf. GILSON, 1987, p. 82. 98

DESCARTES, Lettre-Préface des Principes de la Philosophie. Notes et commentaires de J. Danton. Paris: Nathan, 1998a p. 24 e 26, respectivamente.

99 MESNARD, 1936, p. 8.

100 Cf. RODIS-LEWIS, 1961, t. 1, p. 73-74; DESCARTES. Regulae ad Directionem Ingenii. AT, X, p. 395 e

DESCARTES, 1996a, p. 50. Todas as citações de Regulae em português são traduções do texto francês, salvo quando necessitarmos recorrer ao texto latino, sendo essa circunstância mencionada.

disposição não é outra coisa que um método para adquirir a sabedoria, também mencionado por Descartes em Cogitationes Privatae,101 onde revela que, em seus estudos em La Flèche,

adotava por método a tentativa de encontrar por si mesmo as respostas às questões colocadas por um autor, antes de verificar a solução apresentada no livro.102

A sabedoria, no presente contexto, contempla ao mesmo tempo a moral e a ciência. Todavia não é ainda a ciência cartesiana como o nosso Filósofo definirá mais tarde, mas o que ele denomina, em Cogitationes Privatae: as sementes da ciência que todo homem traz dentro de si.103

A boa mente é “aquela que nos integra na ordem da natureza”. Sobre esta unidade do homem com o mundo, Mesnard chama-nos a atenção para a influência do estoicismo que se traduz em fórmulas semipanteístas, ou seja, o conhecimento da realidade sensível pela semelhança com as coisas espirituais.104

Regulae aponta na mesma direção que os dois manuscritos anteriores: Cogitationes

Privatae e Studium Bonae Mentis. Em Regulae, o pensamento do Filósofo encontra-se mais

bem elaborado, aproximando-se de uma cientificidade. Observemos que há uma preocupação com a sistematização dos conhecimentos, com a unidade na diversidade das ciências. A esta unificação, ou elementos primeiros de uma síntese, o jovem Filósofo denomina sabedoria humana ou simplesmente sabedoria (sagesse).

No trecho abaixo, extraído de Regulae, não há a preocupação de o entendimento buscar um método de ordenamento. A sagesse identifica-se com a própria ciência:

Pois, todas as ciências não sendo nada mais que a sabedoria humana que permanece sempre uma e a mesma, qualquer que seja a diferença dos assuntos aos quais se aplique, e que não lhes tira nada, da mesma maneira que a luz do sol não o faz, em relação à variedade das coisas que ele ilumina; não é necessário impor aos espíritos nenhum limite. Com efeito, o conhecimento de uma única verdade, como se tratasse da prática de uma única arte, não nos afasta da descoberta de outra, mas nos ajuda, sobretudo a fazê-lo.105

Para Descartes, nada nos poderá afastar mais do caminho certo da busca da verdade do que a orientação de nossos estudos não para um fim geral, mas para interesses particulares.106 “É preciso acreditar que todas as ciências se encontram de tal maneira ligadas

101 Cf. MESNARD, 1936 p. 7 e 9. 102

Cf. Cogitationes Privatae em AT, X, p. 214. Este método de estudo de Descartes já o mencionamos, na p. 24 deste nosso trabalho, com maiores detalhes.

103 Sunt in nobis semina scientiae. (Cf. DESCARTES. Cogitationes Privatae. AT, X, p. 217). 104 Cf. MESNARD, 1936, p. 7 e 8.

105

DESCARTES, 1996a, Règle I, p. 2.

entre si, que é muito mais fácil aprendê-las todas em conjunto do que separar uma delas das outras.”107 Cada um só deve pensar em aumentar a luz natural da razão, não para resolver

algum problema de escola, mas para que nas diversas situações, seu entendimento mostre à vontade o que é preciso escolher.108

Essa concepção mais abrangente de Descartes sobre a ciência soa como a realização de seu terceiro sonho na noite de 10 de novembro de 1619, na Alemanha, em que ele se deparava com dois livros: um Dicionário, dizendo melhor, uma Enciclopédia e uma

Antologia de Poemas (Corpus Poetarum). Como vimos, segundo a interpretação do próprio

Descartes, a Enciclopédia representaria o conjunto das ciências; e a Coletânea de Poemas, a união da filosofia com a sabedoria, formando um todo.109

A sabedoria, para Descartes, não apenas engloba os mais diversos ramos da ciência, mas extravasa para uma retidão do agir do homem, para seu comportamento moral. É um prenúncio do que ele proclamará bem mais tarde na Carta-Prefácio de Les Principes de la

Philosophie: “Eu entendo a mais alta e a mais perfeita Moral, que, pressupondo um inteiro

conhecimento das outras ciências, é o derradeiro grau da Sabedoria.”110

Nesses primeiros escritos de Descartes, observamos nitidamente uma preocupação do Filósofo não apenas com o assunto moral, mas em relacionar a moral à ciência, ou, dizendo melhor, considerar a moral formando uma unidade com a ciência sob a denominação da palavra sabedoria .

Nosso próximo passo, seguindo o propósito de buscar a genealogia da moral cartesiana, será voltarmo-nos para obras produzidas pelo Filósofo numa fase de maior maturidade, em que o tema moral se faça presente. Nossa atenção se fixará no Discours de la

Méthode, publicado em 1637 e na Lettre-préface des Principes de la Philosophie, de 1647,

textos em que se encontram conteúdos morais que serão objetos de nossa investigação.

107 DESCARTES, 1966a, Règle I, p. 4. 108 Cf. ibid., p 4.

109

DESCARTES. Olympica. AT, X, p. 184.

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 35-40)