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Generosidade: a paixão que se torna virtude

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 159-163)

3 A MORAL DE DESCARTES NO TRATADO DAS PAIXÕES

3.5 A moral em As Paixões da Alma

3.5.2 Generosidade: a paixão que se torna virtude

A generosidade,130 dizendo melhor, a magnanimidade131 já existia, como virtude,

desde a filosofia grega. Vamos encontrá-la em Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco. Para o Estagirita, o homem que possui a virtude da magnanimidade (µεγαλοψυχια) é aquele que reivindica muito por merecer muito. Quem reivindica muito sem ter merecimento seria um tolo. Ninguém que seja considerado moralmente virtuoso, acrescenta Aristóteles, poderá ser comparado com um tolo ou insensato. A alma magnânima exibe qualidades grandiosas.132

Tomás de Aquino considera também a magnanimidade (magnanimitas) como uma virtude moral que, comparada com as demais, põe-se como o ornamento de todas elas.133

Descartes, inicialmente, hesita entre usar as denominações generosidade e

magnanimidade para designar esta paixão que é derivada de outras duas paixões: admiração e

estima. Essa indecisão pode ser percebida no art. 54 de Les Passions de l’Âme. No título que encabeça o artigo aparece a palavra generosidade, que na parte final do artigo é substituída por magnanimidade. Depois, decide-se pelo nome generosidade. O próprio Filósofo mostra- nos a razão de haver escolhido a denominação generosidade. Como nos diz, a palavra magnanimidade é de uso da Escola e pouco conhecida; enquanto o termo generosidade

127

AT, IV, p. 119. (Carta a Mesland, de 2 de maio de 1644).

128 Cf. LAPORTE, 1937, p. 164. 129 Ibid., p. 164.

130

O adjetivo latino generosus refere-se ao homem de boa estirpe. Generosa virtus significa uma nobre virtude. (Cf. GAFFIOT, 2000). Os representantes latinos do estoicismo empregavam correntemente o vocábulo

generosus em expressões como: espírito generoso, alma forte e generosa. (KAMBOUCHNER, 1995b, p.

409).

131 O vocábulo magnanimidade já era usado por Aristóteles e pelos escolásticos não no sentido de paixão, mas

como virtude. (Cf. nota de RODIS-LEWIS, 1999, na p. 185).

132

Cf. ARISTÓTELES, 2007, IV, 1123a34-1123b5.

(generosité) é mais popular e condizente com o uso da língua francesa.134 Outra vantagem é

que o nome generosidade é menos carregado de conotações ou implicações doutrinais.135

A doutrina da generosidade é uma construção tardia na obra de Descartes. Antes do

Tratado de 1649,136 em nenhum texto de Descartes, nem mesmo em suas cartas, a

generosidade aparece como virtude.137 Diz-nos Rodis-Lewis que os desenvolvimentos sobre a

generosidade, nomeada desde a Segunda Parte de Les Passions de l’Âme e aprofundada na Terceira Parte, constituem-se “o derradeiro fruto da reflexão cartesiana,” juntado ao primeiro manuscrito desse tratado, redigido no inverno de 1645-1646, e que foi aumentado em 1649 em quase um terço, pelo autor, no momento de sua revisão final com destino à publicação.138

A generosidade é uma paixão derivada da paixão estima, que é uma das duas “espécies de admiração” (estima e desprezo) na teoria cartesiana das paixões.139 No entanto,

sendo a admiração,140para Descartes, a primeira de todas as paixões, sua primazia reflete-se

sobre a generosidade, que dela provém em linha direta. A generosidade se caracteriza como uma autoafeição da alma: “[...] podemos assim nos estimar ou nos desprezar a nós mesmos [...].”141 É nosso próprio mérito que estimamos ou desprezamos.

A generosidade encontra em sua definição a arquitetura do cogito, ergo sum (penso, logo existo), tendo aí seu princípio, sua existência.142 Não se trata de uma paixão que nasce de

um objeto externo. Como nos diz Descartes, procede de uma satisfação de si mesmo,143 de um

efeito sobre a alma cuja “causa depende apenas de nós mesmos.”144

Sabemos que a admiração surge da novidade que o objeto apresenta. Entretanto, seu objeto não é, propriamente, o objeto em si, mas a modalidade de sua presença, aquilo que é extraordinário nele, ou aquilo que é diferente do que conhecíamos anteriormente.145A estima,

primeira derivação da admiração, acentua esse distanciamento do objeto. Como dissemos, não se trata do objeto, mas da “grandeza de um objeto ou de sua pequenez que admiramos.”146 134

Cf. DESCARTES, 1999b, Art. CLXI.

135

Cf. KAMBOUCHNER, 1995b. p. 231.

136 Estamos distinguindo Les Passions de l’Âme do pequeno tratado, em sua primeira versão manuscrita, que

circulou a partir de 1646 entre poucos discípulos do Filósofo.

137 BUZON, Frédéric de.; KAMBOUCHNER, Denis. Générosité. In: Le vocabulaire de Descartes.

______;______. Paris: Ellipses, 2005. p. 29.

138

RODIS-LEVIS, 1997, p. 191-192.

139 Cf. DESCARTES, 1999b, Art. CL e LIV. 140

Sobre a paixão admiração ver p. 130-133 desta nossa pesquisa.

141 Cf. DESCARTES, 1999b, Art. LIV. Ver também Art. CLI. 142

Cf. MARION, Jean-Luc. Questions cartésiennes – Méthode et Métaphysique. Paris: Presses Universitaires de France, 1991. ( Collection Philosophie d’Aujourd’hui). p. 178-179.

143 Cf. Ibid., Art. LIV.

144 DESCARTES, 1999b, Art. CXC. 145

DESCARTES, 1999b, Art. LIII.

A generosidade não tem na alma outro objeto a não ser a própria alma. É sempre a alma, e somente ela que causa e sofre, volta-se para si mesma e se sente sob a forma de estima.147 Quando a alma se percebe como vontade e se autoafeta de seu “bom uso,” pensa

conforme a estima, como modalidade absolutamente não intencional do cogitatio; ou seja, estimando-se, pensa-se não intencionalmente, “sente-se” ela mesma, em resumo, autoafeta- se. A estima aparece assim como modalidade do cogitatio (pensamento), e mais expressivamente na generosidade, entendida como uma formulação originária do cogito.148

Perguntemo-nos: como uma paixão poderá se transformar em virtude?A resposta nos é dada pelo próprio Descartes:

Pode-se duvidar se a Generosidade e a Humildade, que são virtudes, podem também ser Paixões, porque seus movimentos transparecem menos, e que parece que a virtude não se aproxima tanto da Paixão como o vício. Contudo, não vejo razão que impeça que o mesmo movimento dos espíritos, que serve para fortalecer um pensamento, quando ele tem um fundamento que é mau, não o possa também fortalecer, quando seu fundamento é justo; e como o Orgulho e a Generosidade, consistem apenas na boa opinião que temos de nós mesmos, e só diferem no que essa opinião é injusta num e justa na outra, parece-me que os podemos relacionar a uma mesma Paixão [...].149

Comentando essa passagem extraída do art. 160 do Tratado, Guenancia afirma “que com os mesmos ‘materiais’ os homens fazem coisas belas e coisas feias que, no fundo, a beleza de suas vidas como a de suas obras dependem principalmente da competência e da habilidade das quais eles sabem dar prova.150

A paixão da generosidade predispõe o homem a atingir a virtude do mesmo nome, ou seja, o impulso espontâneo dessa paixão transforma-se em hábito que constituirá a virtude da generosidade.151Como dirá Descartes: “pode-se excitar em si a Paixão, e em seguida adquirir a

virtude da Generosidade, que sendo como que a chave de todas as outras virtudes, e um remédio geral contra todos os desregramentos das Paixões, parece-me que essa consideração bem merece ser observada”.152

Descartes não teve a preocupação de apresentar um quadro de virtudes, à semelhança do que ocorre com a classificação das paixões. Para ele, todas as nossas virtudes gravitam em torno da generosidade. A verdadeira generosidade manifesta-se quando o homem além

147

Cf. MARION, 1991, p. 181. (Grifos do autor).

148 Ibid., p. 184. 149 Ibid., Art. CLX. 150 GUENANCIA, 2000, p. 234. 151 Cf. RODIS-LEWIS, 1998a, p. 88-89.

reconhecer na livre disposição de suas vontades o que há de mais importante para ele, sentir também em si uma firme e constante resolução de bem usá-la. Fazendo isto, estará seguindo perfeitamente o caminho da virtude.153Esta é, portanto, a definição de virtude para Descartes.

Ele já havia dito assim para Elisabeth: “[...] uma firme e constante resolução de executar tudo o que a razão lhe aconselha, sem que suas paixões ou seus apetites o desviem; é a firmeza dessa resolução que creio dever ser tomada como virtude [...].”154 Em sua essência, temos

também aí a segunda máxima da moral par provision.155 Podemos concluir que, para

Descartes, absolutamente falando, só há uma virtude que corresponde ao exercício máximo da vontade;156e a virtude da generosidade é a forma mais autêntica e universal da virtude.157

A generosidade consiste no fato de o homem estimar-se no mais alto grau em que ele pode legitimamente estimar-se.158 O único objeto do qual ele poderá lançar mão para a estima

de si é o bom uso do livre-arbítrio e o domínio que ele tem sobre suas vontades.159 Para

Descartes, o homem generoso é aquele que faz o bom uso, com firmeza, de seu entendimento e de sua vontade, ou seja, do livre-arbítrio na ordem prática, com a mais perfeita regularidade, executando todas as coisas que julgue ser as melhores. Agindo assim, seguiremos perfeitamente a virtude.160 Cada um deverá ver em si e nos outros o mesmo poder, supondo

também existir nos outros homens, ou, pelo menos, poder existir a boa vontade.161

Os generosos costumam também ser os mais humildes. Essa humildade virtuosa consiste em reconhecerem que as faltas que houverem cometido, ou que puderem cometer no futuro, não são menores do que as que podem ser cometidas por outros.162 Entretanto, existe

também o que Descartes denomina humildade viciosa que consiste, principalmente, em nos sentirmos fracos ou pouco resolutos e impotentes para fazer o bem, como se não contássemos com o livre-arbítrio, nossa maior perfeição, que nos foi dado por Quem nos criou. Essa humildade é o extremo oposto da generosidade.163Opõe-se também à virtude da generosidade

o orgulho que consiste em se estimar a si mesmo de forma injusta e ilegítima, ou seja, por motivos indevidos, inconvenientes e mesmo fúteis. Para Descartes, a forma mais injusta de estimar-se é quando se é orgulhoso sem nenhum motivo.164 Os generosos são levados a fazer 153

Cf. DESCARTES, 1999b, Art. CLIII.

154

DESCARTES, 1955, p. 62. (Carta a Elisabeth, de 4 de agosto de 1645).

155 Ver p. 41 de nossa pesquisa.

156 Cf. KAMBOUCHNER, 1995b, p. 226. 157

Cf. BUZON; KAMBOUCHNER. Morale (Ethica). In: ______;______, 2005, p. 50.

158 Cf. DESCARTES, 1999b, Art. CLIII. 159

Cf. Ibid., 1999b, Art. CLII.

160

Cf. 1999b, Art. CLIII.

161 Cf. Ibid., 1999b, Art. CLIV. 162 Cf. Ibid., 1999b, Art. CLV. 163

Cf. Ibid., 199b, Art. CLIX.

grandes coisas; e nada mais estimam do que fazer bem aos outros homens. Por isso são corteses, afáveis e prestativos para com todos.165Nunca desprezam ninguém; e ao perceberem

as fraquezas dos outros, inclinam-se mais a desculpá-los do que censurá-los.166

A doutrina da generosidade em Descartes constitui uma extraordinária síntese de vários modelos éticos de diversas épocas. Inicia-se com a magnanimidade aristotélica preocupada com a verdadeira grandeza de espírito, passando pelos estoicos que enfatizam a retidão nos julgamentos e a firmeza nas ações, estendendo-se aos epicuristas que buscam o prazer num objeto mais refinado, como o contentamento do espírito, e encerrando-se com as virtudes cristãs da humildade e caridade.167

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 159-163)