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As paixões e o cogito

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 116-119)

2 O TRATADO DAS PAIXÕES DE DESCARTES

2.2 As paixões e o cogito

Ao considerarmos a maneira como o Filósofo irrompe no mundo da filosofia e ao examinarmos as obras por ele publicadas antes do Tratado das Paixões, somos levados a julgar que um estudo sobre as paixões situava-se fora de suas cogitações.

12 Cf. DESCARTES, 1955, p. 134. (Carta a Elisabeth, maio de 1646). Ver ainda p. 67-68, desta pesquisa. 13

Cf. DESCARTES, 1955, p. 87, 101-103, 115, 134, 140.

A erupção do cogito, ergo sum, na obra cartesiana,15 guarda uma semelhança com o

que será narrado, exatamente trezentos anos depois, nos escritos de Teilhard de Chardin, quando ele descreve o início da Noosfera que se dá com o despontar do homem na escala evolutiva:

[...] Alguma coisa, em algum lugar, certamente se acumula, prestes a surgir por um outro salto à frente. O quê? E onde? [...] Aqui e acolá a tensão

psíquica aumenta [...]. Nos primatas, a evolução trabalhou diretamente no cérebro [...]. Depois de haver subido, durante milhares de anos, por sob o

horizonte, num ponto estritamente localizado, vai agora romper uma chama – O pensamento está aí!16

O trecho de Chardin, transcrito acima, mostra o surgimento do homem, como ser

pensante, ponto culminante da cadeia evolutiva. Em Discours, na intuição súbita do cogito, ergo sum, temos o pensar e o ser constituindo uma identidade e princípio que continua

valendo no presente.17

O interesse tardio de Descartes pelas paixões, revelado com a publicação do Tratado, algumas semanas antes de sua morte, à primeira vista, parece destoar do conjunto de sua obra. Michel Meyer, na introdução em uma edição de Les Passions de l’Âme, lança a seguinte indagação: “O que levou o pai do racionalismo moderno, o fundador da geometria analítica, o homem do Discours de la Méthode, a se interessar por algo que parece ser o irracional por excelência, as paixões”?No mesmo texto,ele responderá sem hesitar: “Longe de ser fruto do acaso ou de um capricho, o tratado é verdadeiramente uma peça fundamental do edifício cartesiano, ainda que esta afirmação possa surpreender a mais de um.” 18

Em Méditations II, Descartes define o cogito como uma coisa pensante (res

cogitans), ou seja, consciência que reflete sobre si mesma, desvinculada de qualquer

sensibilidade, pura intelectualidade. “Eu sou, precisamente falando, uma coisa que pensa, isto é, um espírito um entendimento ou uma razão.”19 Explicando esta afirmação de Descartes,

15 “Pensei que era necessário [...] rejeitar como absolutamente falso tudo aquilo em que pudesse

imaginar [...]. Resolvi fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito, não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. [...]. Enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade; eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa [...] julguei que podia aceitá-la, como o primeiro princípio da Filosofia que procurava. (DESCARTES. Discours de la Méthode. AT, VI, 31-32.

16 CHARDIN, Pierre Teilhard de. O Fenômeno Humano. Apresentação de Dom Paulo Evaristo Arns.

Introdução, tradução e notas de José Luiz Archanjo. São Paulo: Cultrix, 1995. p. 167 e 172. (Grifos nossos).

17

Cf. HEGEL, G. W. F. Lecciones sobre la filosofia de la historia universal. Prólogo de José Ortega y Gasset. Advertencia de José Gaos. Traducido del alemán por José Goes. Madrid: Alianza Editorial, 1989. p. 684.

18

MEYER, 1990, p. 5.

Meyer acrescenta: “Eu me penso enquanto estou pensando e me penso portanto como ser pensante [...]. O Cogito não é somente um pensamento, mas também, por sua natureza mesma, pensamento do pensamento, consciência ou reflexão.”20

A dúvida foi o ponto de partida para o cogito. Todavia, Descartes poderia também ter dito: “eu sinto” ou “eu quero”. Podemos nos enganar quanto ao que sentimos, mas o pensar

que sentimos não deixa de ser um pensamento verdadeiro, pois sentir ou pensar são formas de

consciência e de reflexão. A consciência de si é também um pensar que pode assumir modalidades diversas.21

O impacto do mundo sensível sobre a res cogitans dá-se de tal forma que o autor de

Méditations não tardará a redefinir a realidade pensante; e o faz na página seguinte da mesma

Meditação: “[...] o que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que não quer, que também imagina e que sente”.22 Ainda em Méditations II, acrescenta: “[...] isto que em mim se chama sentir [...] não é outra coisa senão

pensar”.23

Observemos que, nessa nova forma de conceber as atividades do pensar, Descartes inclui as sensações que, nessa etapa de seu caminho meditativo, constituem uma mera aparência, não implicando ainda o reconhecimento da realidade material, inclusive do próprio corpo. “Se as coisas que vejo não existem, é, portanto, falso que as vejo, mas é verdade que acredito vê-las, ou me parece que as vejo.”24

Em Méditation VI, vai surgir em Descartes a convicção da existência das coisas corpóreas e da estreita relação entre a alma e o corpo, a ponto de formarem um único todo. A partir de agora, o sentir e o imaginar, antes restritos ao domínio do pensamento, deixam de ser uma simples aparência para se tornarem representações de uma realidade exterior corporal. Em lugar de: “é muito certo que me parece que vejo, que ouço e que me aqueço”,25 Descartes

poderá agora afirmar: eu vejo, eu ouço e me aqueço.

Deparamo-nos, portanto, com um problema. Antes, a consciência tinha só a si, como objeto. Agora, ela passa a ter também como objeto a realidade externa ou realidade corpórea. Descartes reconhece que além dos conhecimentos voluntários próprios do espírito, existem representações involuntárias provindas do exterior que se insinuam na alma por intermédio do

20

MEYER, 2007, p. 188.

21 Cf. MEYER, 2007, p. 189.

22 DESCARTES, Méditations. AT, IX-1, p. 22. 23

Ibid., p. 23.

24

SCRIBANO, Emanuela, La Nature du Sujet. In: ONG-VAN-CUNG, King Sang. (Org.). Descartes et la

Question du Sujet. Paris: PUF, 1999. p. 50.

corpo a que está ligada. O mundo exterior exerce, portanto, um impacto sobre o espírito mediante o corpo. Nem tudo que está em meu interior é fruto de uma consciência que reflete. Eis o dilema a ser enfrentado por Descartes: Se, por um lado, ele aceita uma consciência que se apoia numa realidade exterior e corpórea, o cogito, que é afirmado como uma imanência da consciência em si mesma, é posto por terra. Por outro, se rejeita esta nova forma de consciência provinda do exterior mediante os sentidos, cairá na incoerência de um inatismo radical e insustentável.26

Meyer levanta a questão: como explicar esta parte não consciente de nosso espírito? Para não falar de consciência inconsciente, Descartes encontrará a resposta nas paixões. A paixão é uma consciência voltada para o exterior, indo buscar nos impulsos sensíveis a matéria de seus pensamentos. Preferirá usar a denominação “paixões da alma” e não o nome consciência.27 A paixão é uma espécie de “consciência sensível” ou “corporal”, se é que

podemos assim nos expressar. É o contingente, o possível, o inesperado; isto que não pensávamos que acontecesse. A alma se sente invadida, é tomada de surpresa. Para Descartes, a alma em suas paixões é totalmente passiva.28 Elas não têm a alma como sede, mas chegam à

alma, tendo o corpo como origem. São “percepções que se referem somente à alma [...] cujos efeitos sentimos como na alma mesma”.29 As paixões são ações do corpo sobre a alma e não o

contrário, como queria toda a tradição que o antecede. Enfim, Descartes toma consciência da importância fundamental das paixões para o equilíbrio de seu sistema.

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 116-119)