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Metafísica e física como fundamentos da moral

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 150-152)

3 A MORAL DE DESCARTES NO TRATADO DAS PAIXÕES

3.4 Metafísica e física como fundamentos da moral

Sabemos que, na concepção de nosso filósofo, corpo e alma formam duas substâncias distintas. Considerados separadamente, tanto a alma como o corpo mantêm suas individualidades e indivisibilidades. No entanto, estas duas substâncias, uma física, corporal; e outra espiritual, formam uma unidade que é o composto humano. No dizer de Gouhier, esta união é “uma coexistência que consiste numa interação.”75 Descartes, servindo-se da

terminologia escolástica, denomina-a união substancial.76Ainda que rejeite a física qualitativa

de Aristóteles e contraponha-se à sua teoria hilemórfica, para melhor explicar a união corpo- alma, também lança mão do conceito aristotélico-tomista da forma substancial aplicando-o exclusivamente à alma humana. Esse posicionamento de Descartes pode ser comprovado tanto em sua correspondência como em suas obras.77

73

DESCARTES, 1999b, Art. CLXI.

74 Ver p. 119-123, acima. 75

GOUHIER, 1999. p. 335.

76

“Afferimus enim hominem ex Corpore & Anima componi, non per solam praetentiam, sive appropinquationem, unius ad alterum, sed per veram unionem substantialem;[...]” DESCARTES.

Correspondance. AT, III, p. 508. (Carta a Regius, de janeiro de 1642).

77

Na correspondência: “[...] quae [anima humana] cum agnoscitur sola esse forma substantialis, alias autem ex partium configuratione et motu constare, maxime haec ejus supra alias praerogativa ostendit ipsam ab iis natura differre [...].” (DESCARTES, Correspondance. AT, III, p. 503). “Quod confirmatur exemplo Animae, quae est vera forma substantialis hominis.” (Ibid., p. 505). Ver referência a essas duas passagens da carta de Descartes a Regius, de janeiro de 1642, em RODIS-LEWIS. L’Individualité selon Descartes. Paris: Vrin, 1950. p. 77. Ver também carta ao padre Mesland, de 09 de fevereiro de 1645: “[...] que nous avons les mesmes corps que nous avons eus des notre enfance, bien que leur quantité soit de beaucoup augmentée, [...] em sorte qu’ils ne sont eadem numero, qu’a cause qu’ils sont informez de la mesme ame.” DESCARTES.

Correspondance. AT, IV, p. 166-167. Nas obras: “Sciendum itaque humanam animam, etsi totum corpus

informet [...].” (DESCARTES. Principia Philosophiae. Pars Quarta. AT, VIII-1, p. 315). “Ad primum itaque me convertens, optarem exponere hoc in loco, quid sit mens hominis, quid corpus, quo modo hoc ab illa

A moral cartesiana contempla o composto humano como um todo. Irá nortear as relações da alma e do corpo buscando um equilíbrio. A convivência com as paixões requer habilidade. Essa relação corpo-alma não deve ser entendida como uma hierarquia, ou seja, como uma dominação da alma sobre o corpo. Descartes a vê mais, como a competência de um condutor, do que como o poder de um chefe sobre seu súdito.78 Ao considerar com

benevolência esses complexos psicofísicos que são as paixões, nosso filósofo comprova, de forma indiscutível, a existência da União. Essa moral depende, portanto, da metafísica e da física como seus mais seguros fundamentos. Apoiar-se-á em verdades postas nas Meditações, como a vontade ou livre arbítrio sem limites dado ao homem por Deus, que se constitui sua principal perfeição, e que por isso o torna semelhante a seu Criador.79 Conta ainda com as

Meditações Metafísicas para mostrar a distinção real da alma e do corpo e a união íntima e

essencial destas duas substâncias.80 Em síntese, essa

O princípio exato da União, tal como é concebida por Descartes, é a harmonia fundamental entre o corpo e o espírito. Tudo se passa como se eles fossem dois, – sem o que não haveria mais física nem metafísica, – mas tudo se passa igualmente como se eles fossem apenas um, este UM que a moral estuda.81

Mesnard diz-nos ainda que para essa união se completar é preciso que o corpo se torne verdadeiramente maleável por uma higiene rigorosa, fruto da física positiva, e que, restituído em sua dignidade, possa se tornar elemento de uma síntese superior.82 Isto nos faz

lembrar o destaque dado por Descartes ao “corpo de um homem” ou ao “meu corpo” expressões por ele usadas, repetidas vezes: “Quando falamos do corpo de um homem, não entendemos uma parte determinada da matéria [...] mas entendemos unicamente toda a matéria que está harmoniosamente unida à alma desse homem.”83 A alma, por seu lado,

prosseguirá com a espiritualização progressiva pelo esforço da meditação, pela retificação do desejo, pela ascese da vontade.84 Este esforço conjunto, propiciado pela união harmoniosa do

corpo e do espírito criará o espaço para que se instale o reino da moral cartesiana.

informetur [...].” (DESCARTES. Regulae ad Directionem Ingenii. AT, X, p. 411).

78 Cf. GUENANCIA, 2000, p. 212. 79

Cf. DESCARTES. Méditations. AT, IX-1, p. 45. (Méditation Quatrième).

80

Cf. DESCARTES. Méditations. AT, IX-1, p. 62-64. (Méditation sixième).

81 MESNARD, 1936, p. 224 82 Cf. Ibid., p. 226.

83

DESCARTES. Correspondance. AT, IV, p. 166. (Carta a Mesland, de 9 de fevereiro de 1645).

O mecanismo (física85) contribui também, de forma decisiva para a constituição da

moral cartesiana ao fornecer-nos um conhecimento do corpo, de suas funções, de sua anatomia, que nos permitirá saber por que meios e em que limites podemos agir sobre ele.86É

o próprio Descartes quem o diz: “[...] essas verdades da Física fazem parte dos fundamentos da mais alta e mais perfeita Moral.”87 Vimos que Descartes alimentou o sonho de alcançar um

rápido progresso da medicina que resolveria os problemas do homem em relação à conservação e prolongamento de sua vida. Foi sua grande decepção. A medicina estava intrinsecamente associada à moral em seu projeto das ciências. Enquanto a medicina cuidava da saúde do corpo, a moral cuidaria da saúde da alma. Ele tinha como certa a ajuda da medicina para constituir as bases da moral. Para nosso filósofo, a saúde é um dos bens necessários à nossa felicidade nesta vida. Em carta a Elisabeth, afirma que “[...] muitas vezes a indisposição do corpo impede que a vontade seja livre.”88 Na falta da medicina, volta-se para

a física. Em 1649, na época em que está revisando e aumentando o pequeno tratado para publicação, reafirma a Chanut que as “verdades da Física fazem parte dos fundamentos da mais perfeita moral.”89 Seu projeto para a moral, portanto, não poderia ficar no ar. Em sua

árvore da filosofia consta a medicina, com que tanto contava para o desabrochar de sua moral.

Contudo, não teve o desenvolvimento rápido esperado. Afinal, nessa árvore, a metafísica são suas raízes e a física, o tronco; enquanto a medicina é um ramo, tanto quanto a moral. Necessariamente, a metafísica e a física teriam que ser os fundamentos primeiros da moral cartesiana.

No documento A moral cartesiana em As Paixões da Alma (páginas 150-152)