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As noções de culpa e responsabilidade, na legislação de responsabilidade civil e previdenciária

1 INTRODUÇÃO 1 1.1 Trajetória da noção de acidentes do trabalho e de sua

1.7 As noções de culpa e responsabilidade, na legislação de responsabilidade civil e previdenciária

A noção de responsabilidade civil refere-se à de reparação de danos e, segundo Lima (1998a), sob influência inicial do Direito Romano e, logo em seguida, do Código Civil francês, proclamou como seu “fundamento [...] a culpa efetiva e provada” (pág 28).

Após discorrer sobre as diversas definições de culpa, na literatura jurídica, Lima a define nos seguintes termos:

Culpa é um erro de conduta, moralmente imputável ao agente e que não seria cometido por uma pessoa avisada, em iguais circunstâncias de fato.

Ela apresenta dois elementos: um, objetivo, que consiste na omissão da diligência comum do homem prudente, avisado, cuidadoso (“bonus pater familias”) e outro, subjetivo, que consistiria na consciência do ato, no poder querê-lo livremente, podendo ou devendo prever as suas conseqüências.

Historicamente, essa concepção clássica tem sido criticada por sua estreiteza, e as possibilidades de reparação de danos foram sendo ampliadas, via diferentes formas de extensão do conceito de culpa e, particularmente, sob influência da teoria do risco ou fato criado.

De acordo com Lima (1998a), no campo jurídico, há predomínio de apreciação de culpa relativizada, seja pela “fixação da conduta normal do homem adaptado à vida social, ao ambiente em que vive”, seja pela avaliação da capacidade delitual ou imputabilidade moral do acusado como elemento primacial da culpa. Trata-se de determinar se o agente poderia agir, em virtude do estado de sua razão e de sua inteligência, como age o “bonus pater familias”.

Para fins de comparação, pela sua semelhança, vale registrar as seguintes referências de caracterização do ato inseguro, apontado como uma das causas de acidentes do trabalho, na Norma Brasileira 18, Cadastro de acidentes (Associação Brasileira de Normas Técnicas 1975):

e) O ato inseguro não significa, necessariamente, desobediência a normas ou regras constantes de regulamentos formalmente adotados, mas também se caracteriza pela não observância de práticas de segurança tacitamente aceitas. Na sua caracterização cabe a seguinte pergunta: nas mesmas circunstâncias, teria agido de mesmo modo uma pessoa prudente e experiente? (p. 19)

Considera-se que, de acordo com a voluntariedade da ação, ocorre dolo ou

culpa. No primeiro caso, dito de culpa in re, a situação em que ocorre o dano é pretendida e, no segundo, dito de culpa in causa, o perigo não é desejado, e até se desejaria que não ocorresse, embora pudesse ser previsto. A necessidade de provar a existência dessa voluntariedade imputável ao agente do dano é primacial na concepção clássica de culpa e enseja a defesa de existência de componente subjetivo nessa concepção.

Segundo Lima (1998b), para o entendimento da responsabilidade em caso de acidentes, é importante distinguir se a lesão ou dano “resulta do fato imediato de outra pessoa ou decorre do fato da coisa” (p. 46). Um dos exemplos dessa última é a culpa na guarda, que decorre do fato de o homem ser “obrigado à guarda das coisas, de modo a ter o controle absoluto das mesmas [...]”, impedindo que provoquem dano a outrem. No direito francês, a responsabilidade do fato da coisa foi aplicada a grande número de acidentes, incluindo aqueles de automóveis, de caça, de esportes, de explosões de máquinas, causando danos a terceiros (p. 85). Ficam excetuadas as hipóteses de força maior, caso fortuito ou culpa da vítima (p.87).

Na opinião de Lima (1998c), essas aplicações mostram, “de modo inequívoco, o deslocamento da aplicação da culpa cometida por fatos incontestavelmente pessoais para a culpa decorrente do fato das coisas [...] como resultado inelutável das grandes e profundas transformações de ordem econômica e social [...]. É uma reação à insuficiência da teoria da culpa clássica [...]”. A culpa é considerada “resquício da confusão primitiva entre responsabilidade civil e penal”, e sua identificação associa-se não à noção de reparação do dano, e, sim, à de infligir uma pena ao autor do prejuízo causado (p. 116).

Deixando de lado a necessidade de comprovação do elemento moral subjetivo e da imputabilidade moral, característica da noção de culpa, cresce a aceitação da

teoria objetiva da responsabilidade, que parte do reconhecimento de que o progresso econômico-social cria insegurança material da vítima em situação de “desigualdade [...] entre os criadores do risco e aqueles que suportam os efeitos nocivos destes perigos” (Lima 1998d). Acresce “a criação cada vez mais acentuada da impossibilidade de provar a causa” dos acidentes ou a culpa de seus responsáveis (p. 331).

De acordo com Carvalho e Segre (1977), no Brasil, a legislação acidentária baseia-se na doutrina do risco profissional, ou seja, na aceitação da idéia de que o “trabalho estabelece [...] um risco próprio que lhe é imanente”. A noção de risco

profissional difere do risco criado ou da culpa objetiva porque torna desnecessário o ônus da prova ao empregado.

Segundo Cohn e col. (1985), a Lei Brasileira de Acidentes do Trabalho, de 1976, sustentava-se na doutrina do risco social, que “garante a assistência social mínima ao acidentado, qualquer que seja a causa, mas ela se torna perversa à medida que dissolve o dever do empregador em reparar os danos resultantes da violação do direito [...] do indivíduo”.

Brandimiller (1996, p. 262) especifica: “A responsabilidade do empregador pelo acidente do trabalho ou doença profissional é subjetiva, decorrente de culpa no sentido que lhe confere [... o ...] artigo 159 do código civil (”Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano”)”.

Por sua vez, o Seguro Obrigatório de Acidentes do trabalho, cujo custeio cabe apenas ao empregador, baseia-se em situação análoga à responsabilidade objetiva, mas não nesta. De acordo com a culpa objetiva, “quem tira proveito de uma situação em contrapartida responde pelos riscos ou desvantagens dela decorrentes”. No caso desse Seguro, o acidente do trabalho foi considerado “como risco profissional e mais modernamente como risco social: o dano pessoal (dele) decorrente [...] gera um estado de necessidade que deve ser compensado de forma imediata,

independentemente da capacidade de pagar do empregador e da distribuição de culpa” (Brandimiller 1996, p 262-263).

Lima (1998d) destaca que, em nosso país, historicamente, as leis de acidentes do trabalho consagraram o princípio da responsabilidade objetiva do patrão, “excetuando o dolo da vítima, ou de terceiros ou os casos de força maior, por fatos estranhos ao trabalho”.

Em síntese, a “doutrina do risco criado [...] faz derivar a responsabilidade do fato humano, como produto das atividades em choque, criadoras de riscos, a fim de restabelecer o equilíbrio dos patrimônios” (Lima 1998d. p. 332).

Em publicação patrocinada pela Association des Industriels de France, François e col. (1985) reconhecem que a palavra responsabilidade se associa a conotação negativa de culpa e de punição, mas defendem sua fixação. Os autores lembram que, na legislação francesa, até 1976, a responsabilidade era do chefe da empresa, exceto se este pudesse provar que havia delegado sua autoridade a um de seus subordinados. A partir de 1976 a legislação passa a considerar mais nitidamente a falta pessoal do empregador, que deveria ser identificada de modo mais preciso ao descumprimento de regras.

Kouabenan (1999a) destaca que, enquanto na inferência causal “trata-se de provar a existência de uma ligação entre uma causa suposta e um efeito”, na atribuição de responsabilidade “trata-se de ir além da simples ligação para designar o autor presumido de um evento. [...] trata-se de identificar um culpado”.

A noção de responsabilidade supõe uma intervenção causal interna (humana) e controlável pelo agente em questão. Tentando definir as relações entre causalidade, intencionalidade e responsabilidade, Heider5 propôs 5 níveis de responsabilidade: 1) a associação – em que medida o ator está associado ao evento? 2) a comissão – em que medida o ator teria papel instrumental ou causal, mesmo que sem poder tê-lo previsto? 3) a previsibilidade – em que medida poderia prever o efeito, mesmo sem

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ter a intenção de produzi-lo? 4) a intencionalidade – até que ponto o ator teria procurado intencionalmente os efeitos que ele poderia prever? 5) a justificativa – em que medida o comportamento visado, incluídas suas motivações, seria justificável pelas mudanças do ambiente? (Kouabenan 1999a, p. 37).

Procurando contornar a ambigüidade e imprecisão da noção de responsabilidade, Fishbein e Ajzen6 apoiam-se na proposição de Heider e afirmam que “perguntar-se acerca da responsabilidade de um indivíduo em um acidente, é colocar-se diante de uma variedade de questões tais quais: o indivíduo está associado ao acidente? Teve qualquer papel instrumental no acidente, no sentido de que poderia tê-lo causado? Poderia ter previsto sua ocorrência? Teve a intenção de causá-lo? Em que medida seu comportamento seria ou não passível de justificativa?” (Kouabenan 1999a). A responsabilidade aumenta com a passagem dos níveis 1 a 5.

A caracterização de responsabilidade é mais complexa que a de causa. Os fatores causais considerados não controláveis, moralmente condenáveis ou socialmente indesejáveis parecem determinantes na atribuição de responsabilidade.

Se o objetivo do observador for determinar responsabilidades, a explicação causal dirige-se às pessoas direta e ativamente implicadas no desencadeamento dos eventos “anormais”, na persistência de fatores que representem descumprimento de regras, etc. A “regra de parada” da análise vai consistir na identificação de uma pessoa que tenha cometido um erro em situação em que tenha controle de seus atos. Nesse caso, a contigüidade temporal entre o ato e os danos causados também parece influenciar as atribuições de causa, de negligência do ator e de responsabilidade. Nas palavras de Kouabenan (1999 a),

Quando a análise é orientada para a atribuição de responsabilidade, a imputação é interrompida com a descoberta e a sanção de um responsável”.

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A familiaridade do investigador com os eventos e atos identificados na rede explicativa do acidente também é apontada como associada com a interrupção da investigação causal.

Quanto maior a cadeia causal, quanto mais se investiguem as “causas das causas”, maior a chance de se encontrarem causas externas do acidente e de que este seja concebido como complexo.

Sendo a regra de parada da investigação a identificação das “causas fundamentais” do acidente ou de “elementos sobre os quais se possa agir para melhorar a confiabilidade do sistema”, torna-se importante traduzir esses fatores causais em alvos operacionais para a intervenção preventiva. Wagenaar e Reason (1990) estão entre os autores que preconizam como mais eficaz, na prevenção de acidentes, a supressão das “type causes”, causas profundas, remotas ou tardias, que aparecem mais à esquerda, numa árvore de causas, ou em esquemas do acidente, do que a ação sobre as “token causes”, causas diretas que precedem mais diretamente as conseqüências do acidente.

Remédios podem ser propostos em cada estágio na seqüência causal mas é nossa opinião que eles serão mais efetivos quando nós os propusermos nos estágios mais precoces.”

Almeida e col. (2000) também afirmam que, ao suprimir a busca dessas causas, a investigação volta-se para identificação de responsáveis, inibindo a prevenção de acidentes.

Do exposto, verifica-se a conformação de problema de estudo relativo às formas de escolha, conscientes ou não, explícitas ou não, de uma “regra de parada” da investigação causal de acidentes e à introdução ou não de busca de definição de responsável por essa ocorrência. O desenvolvimento de estudos acerca de investigações de acidentes, no âmbito de empresas, pode identificar aspectos que esclareçam formas de escolha de “regras de parada” da investigação e de definição de responsável pelo acidente.

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