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Roteiros literários em primeiro plano

Capítulo 1: Hiroshima mon amour: a calamidade, uma experiência intermidiática

1.4. O diálogo das mídias em Hiroshima

1.4.1. As obras de arte no museu

A partir do resumo de Hiroshima mon amour apresentado neste capítulo, percebe-

se que os dois eixos da trama, o coletivo e o pessoal, estão alinhavados à memória, que

vai sendo reconstruída ao longo da conversa entre o japonês e a francesa. A mídia

empregada, portanto, é a verbal: seja ao se pensar em sua versão escrita, por Duras, seja

ao se considerar a interpretação oral para a qual se destina o gênero roteiro. Entretanto,

ver-se-á que outras mídias são evocadas para atestar aquilo que ocorrera em Hiroshima e

em Nevers, e para garantir a permanência, no presente, de algo que acontecera no passado.

Nesse sentido, o protagonista masculino questiona o conhecimento da mulher

acerca do que acontecera em seu país. Logo no princípio, ele nega que ela tenha visto

127 Disponível em: <http://www.cahiersducinema.com/Hiroshima-mon-amour.html> Acesso em: 02 jul.

alguma coisa em Hiroshima. A personagem, porém, insiste: “Eu vi tudo. Tudo” (1960, p. 22). Conta que, após ter ido ao hospital e ter visitado quatro vezes o museu, é impossível

evitar a visão. Fala das obras contempladas, de cifras oficiais, dos filmes realizados a respeito, das fotografias e reconstituições nos museus que, na “falta de outra coisa” (1960, p. 24), apresentam-se como pretensas verdades, diante das quais nada restava aos turistas

além de chorar. Ela faz referência aos jornais, evocando, ao mesmo tempo, o Gênesis

bíblico:

Eu vi as notícias.

O segundo dia, diz a História, eu não inventei, desde o segundo dia, determinadas espécies animais ressurgiram das profundezas da terra e das cinzas.

Cães foram fotografados. Para sempre. Eu os vi. Eu vi as notícias. Eu as vi. Do primeiro dia. Do segundo dia.

Do terceiro dia. (DURAS, 1960, p. 27)128

É, portanto, por meio das outras mídias que a protagonista “vê” o que aconteceu em Hiroshima. Integrando o texto na categoria de “referências intermidiáticas”, as mídias participam essencialmente da ação, pois movimentam a trama, ressignificam-na ao

promoverem a interação das diferentes instâncias narrativas. Como se percebe no excerto

anterior, a veracidade da tragédia, aos olhos da protagonista, é garantida pela fotografia

que se fez dela, por aquilo que possibilitou enquanto visualidade. Ainda que a “atualidade” seja passageira, assim como as notícias do jornal, diariamente renovadas, o cão fotografado permanece por todo o tempo que durar a fotografia. Os museus e os

128“J’ai vu les actualités./Le deuxième jour, dit l’Histoire, je ne l’ai pas inventé, dès le deuxième jour, des

espèces animales précises ont ressurgi des profondeurs de la terre et des cendres./Des chiens ont été photographiés./Pour toujours./Je les ai vus./J’ai vu les actualités./Je les ai vues./Du premier jour./Du deuxième jour./Du troisième jour.”

filmes, em suas reconstituições cuidadosas, o delicado processo de maquiagem, as

atuações dos atores vivificam e atualizam a dor de Hiroshima, os duzentos mil mortos, os

oitenta mil feridos.

Influenciada pela lembrança da catástrofe histórica, a protagonista evoca aquela

da perda de seu amor de juventude e emprega uma comparação com a mídia musical para – dirigindo-se à lembrança de si mesma na terceira pessoa – definir o que o soldado se tornaria, com o passar do tempo e sob o efeito gradual do esquecimento;

Como para ele, o esquecimento começará por teus olhos. Igual.

Depois, como para ele, o esquecimento ganhará sua voz. Igual.

Depois, como para ele, ele triunfará sobre você inteiramente, pouco a pouco. Você se tornará uma canção129 (DURAS, 1960, p. 118, 119).

Ao afirmar que um dia seu amor de juventude se tornaria uma canção, a

protagonista não o reveste integralmente do triunfo do esquecimento, como sugere, mas

lhe atribuiu uma nova forma. Pois a canção – assim como a fotografia, a obra no museu, o filme, sendo todas elas, aqui, mídias evocadas pela verbal – cristaliza a transformação da dor, graças ao artifício que a afasta de seu estado primevo, situando-a em outra esfera

de memória: enquanto homenagem, expurgação, obstáculo ao esquecimento total. A arte

é, nesse sentido, um gesto de amor pela lembrança, tentativa ilusória de jamais perdê-la.

Assim, numa espécie de mise en abyme, o texto de Duras se utiliza de outras

mídias para se compor em tema e texto: pela referência às artes que eternizam a guerra e

seu desfecho perturbador e que, ao mesmo tempo, garantem a permanência do amor e da

memória. Enquanto isso, no entanto, constrói-se a outra obra sobre esse tema, o próprio

129“Comme pour lui, l’oubli commencera par tes yeux./Pareil./Puis, comme pour lui, l’oubli gagnera ta

filme, no qual uma mulher, em uma conversa com seu amante, verbaliza o que viu em

sua visita àquela cidade japonesa e ao que remeteram essas reconstituições artísticas.

A principal relação intermidiática de Hiroshima mon amour está, portanto, na

metalinguagem do roteiro que, naturalmente, remete a um filme potencial (sobre

Hiroshima), dentro do qual a protagonista atua em outro filme (também sobre Hiroshima).

Ademais, evoca-se, de maneira intertextual, toda uma linhagem cinematográfica que teria

abordado a mesma temática:

ELA

As reconstituições foram feitas com a maior seriedade possível. Os filmes foram feitos com a maior seriedade possível.

A ilusão, é bastante simples, é tão perfeita que os turistas choram130 (DURAS, 1960, p.

25).

Observa-se que, embora afirme ter visto a tragédia por meio das diversas obras a

ela relacionadas, a protagonista tem consciência de que elas criam uma ilusão que tende

a emocionar os turistas. O ponto de vista é crítico e reflete o da própria autora, que, na Sinopse, afirma: “Acabam de realizar um filme edificante sobre a Paz. Não um filme ridículo, mas um filme A MAIS, é tudo”131 (DURAS, 1960, p.14).

As palavras da autora se referem ao filme em que a protagonista de Hiroshima

meu amor atua como enfermeira. Ao mesmo tempo, pode-se ler nessa declaração uma

insinuação de que o filme que se produzirá com seu roteiro não será simplesmente um filme “a mais”.

130“ELLE/Les reconstitutions ont été faites le plus sérieusement possible./Les films ont été faits le plus

sérieusement possible./L’illusion, c’est bien simple, est tellement parfaite que les touristes pleurent.”

131 “On vient de tourner un film édifiant sur la Paix. Pas un film ridicule du tout, mais un film DE PLUS,