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Roteiros literários em primeiro plano

Capítulo 1: Hiroshima mon amour: a calamidade, uma experiência intermidiática

1.3. Subjetividade e poeticidade

No roteiro em questão, a autora revela a todo momento que sua preocupação

central é com o interlocutor, o possível espectador, e com os ecos que seriam deixados nele pela obra. “Seria preciso que o espectador tivesse o sentimento, ao mesmo tempo, de rever e de ver esse ‘cogumelo’ pela primeira vez”112 (DURAS, 1960, p. 21), escreve Duras no início da Parte I do roteiro. A preocupação com as sensações a serem

despertadas destaca-se em todo o texto, repete-se em expressões como “on devrait ressentir” (“deveríamos sentir”, p. 74) ou “on sent” (sentimos), como grifado abaixo:

ELE Sente-se

Ela não se senta. Ambos ficam de pé. Sentimos que entre eles o erotismo faz o amor fracassar, por enquanto113 (DURAS, 1960, p. 75).

112“Il faudrait que le spectateur ait le sentiment, à la fois, de revoir et de voir ce ‘champignon’ pour la

première fois.”

113“LUI/Assieds-toi/Elle ne s’assied pas. Ils restent debout tous les deux. On sent qu’entre eux l’érotisme est tenu en échec par l’amour, pour l’instant.”

Todos esses elementos – a abstração, os paratextos, os comentários da autora, o espaço atribuído ao leitor/espectador, a estrutura do texto – fazem de Hiroshima mon amour um roteiro peculiar, que associa, à linguagem cinematográfica, particularidades

narrativas e também poéticas, constituindo uma obra, além de intermidiática,

intergenérica.

No tocante à linguagem poética, ela se distribui ao longo do roteiro, estando

presente ora nas didascálias, ora nos paratextos, ora na fala dos personagens. Uma leitura

atenta permite que se identifique uma série de figuras de linguagem – a começar pela antítese, uma das mais assíduas, que abre o diálogo entre a francesa e o japonês:

ELE Você não viu nada em Hiroshima. Nada. [...]

ELA Eu vi tudo. Tudo114 (DURAS, 1960, p. 22).

Note-se que uma frase é paralelamente o inverso da outra. Os termos antitéticos “tudo” e “nada” são destacados em itálico pela autora, marcando não apenas a entonação, mas também a intensidade da oposição dos personagens quanto ao que consideram “ver” e “conhecer” sobre Hiroshima.

A protagonista, em seguida, ao esclarecer o que teria acontecido na cidade

japonesa, utiliza-se de um jogo de palavras em que termos como “chuva”/ “águas”/ “Pacífico”/ “comida” são repetidos, porém com sentido ligeiramente distinto, devido às palavras que as acompanham ou ao lugar que ocupam nas orações:

[...]

A chuva dá medo.

Chuvas de cinzas sobre as águas do Pacífico. As águas do Pacífico matam.

Pescadores do Pacífico são mortos.

A comida dá medo.

Joga-se fora a comida de uma cidade inteira. Enterra-se a comida de cidades inteiras. Uma cidade inteira se encoleriza.

Cidades inteiras se encolerizam115(DURAS, 1960, p. 30-31).

A repetição é um recurso poético recorrente em Duras, como demonstraremos no

terceiro capítulo desta Parte. Há de se destacar também a rima nos termos repetidos: “entière/enterre/colère”.

Mais adiante, no texto, ao se referir à outra cidade em destaque na trama, Nevers,

a protagonista emprega a anáfora, nesta fala que Duras define como “facultativa”: ELA

Jamais.

Facultativo.

[Nevers é uma cidade que me faz mal. Nevers é uma cidade que eu não amo mais.

Nevers é uma cidade que me causa medo.]116 (DURAS, 1960, p. 57).

Um pouco adiante, a relação com a terra natal é apresentada por meio de uma antítese, entre sono e vigília, sonho e pensamento, “mais” e “menos”:

Nevers, veja bem, é a cidade do mundo, é mesmo a coisa do mundo, com a qual, à noite, eu sonho mais. Ao mesmo tempo é a coisa do mundo na qual eu penso menos117 (DURAS, 1960,

p. 58).

115“La pluie fait peur./Des pluies de cendres sur les eaux du Pacifique./Les eaux du Pacifique tuent./Des

pêcheurs du Pacifique sont morts./La nourriture fait peur./On jette la nourriture d’une ville entière./On enterre la nourriture de villes entières. /Une ville entière se met en colère./Des villes entières se mettent en colère.”

116“ELLE/Jamais./Facultatif./[Nevers est une ville qui me fait mal./Nevers est une ville que je n’aime

plus./Nevers est une ville qui me fait peur].

117 “Nevers, tu vois, c’est la ville du monde, même c’est la chose du monde à laquelle, la nuit, je rêve le

A mesma figura de linguagem surge outra vez, contrastando novamente o homem

e a mulher, a memória e o esquecimento. Ao mesmo tempo, tem-se a repetição de “como você”, que estabelece uma conexão com interlocutor, reforçando a humanidade de ambos:

ELA, baixo ...Ouça-me.

Como você, eu conheço o esquecimento. ELE Não, você não conhece o esquecimento.

ELA

Como você, eu sou dotada de memória. Eu conheço o esquecimento118 (DURAS, 1960,

p. 31).

A antítese que associa a memória ao esquecimento é extrapolada, desliza para o “matar” e “fazer bem” do paradoxo – figura de estilo que assinala a irrupção da loucura, que pertence à linguagem das paixões (MARITCHIK, 2007, p. 121) – e mistura-se à anáfora insistente, na declaração da personagem feminina:

[...]

Você não pode saber. Você me mata. Você me faz bem. Você me mata. Você me faz bem. Tenho tempo. Eu imploro.

Devore-me119(DURAS, 1960, p. 35).

A oposição pode ser entendida como uma versão mais intensa de “bem-me-quer, mal-me-quer”, alusão ao próprio movimento antitético amoroso. Ressalta-se também a estrutura de excertos como o anterior, que justapõe frases curtas, semelhante à disposição

de versos em estrofes. Além disso, identificam-se também rimas internas, como na repetição do som “ẽ” (sublinhado) e “u”/ “y” (em itálico) nesta passagem: “Oui, ce soir

118“ELLE, bas/... Écoute-moi./Comme toi, je connais l’oubli./LUI/Non, tu ne connais pas

l’oubli./ELLE/Comme toi, je suis douée de mémoire. Je connais l’oubli.”

119“Tu ne peux pas savoir./Tu me tues./Tu me fait du bien./Tu me tues./Tu me fait du bien./J’ai le temps./Je

je m’en souviens. Mais un jour, je ne m’en souviendrai plus. Du tout. De rien”/(“Sim, esta noite eu me lembro disso. Mas um dia eu não me lembrarei mais. De tudo. De nada”)120 (DURAS, 1960, p. 102).

A rima, a estrutura, somadas à musicalidade resultante das repetições e de figuras

sonoras de linguagem, geram o ritmo, que é característica imprescindível do poema,

segundo Octavio Paz, em Signos em rotação: “Como distinguir [...] prosa e poesia? Deste modo: o ritmo se dá espontaneamente em toda forma verbal, mas só no poema se manifesta plenamente. Sem ritmo, não há poema; só com o mesmo, não há prosa” (PAZ, 1976, p. 11).

Vale recordar que, conforme descrito no capítulo anterior, Alain Resnais pediu a

Marguerite Duras que gravasse todos os diálogos de Hiroshima, no intuito de orientar a

interpretação dos atores, buscando deles uma entonação semelhante à da escritora. O fato

ressalta a importância, identificada pelo cineasta, do ritmo, da sonoridade, no roteiro

durassiano. A mídia musical não é, entretanto, a única em destaque no texto de Duras.