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Roteiros literários em primeiro plano

Capítulo 1: Hiroshima mon amour: a calamidade, uma experiência intermidiática

1.2. Um roteiro em partes

A experiência da escrita do roteiro de Hiroshima mon amour foi extremamente

significativa para Marguerite Duras. Além de representar o contato mais efetivo da autora

com o cinema, até então, a convivência com Alain Resnais e as especificidades do gênero

roteiro geraram consequências em sua obra como cineasta e escritora. Segundo

Dominique Noguez, o texto em questão contém características que foram posteriormente

associadas ao estilo durassiano, como a concisão e a sobriedade:

Hiroshima mon amour é muito importante, porque é a partir dele

que nasce o verdadeiro estilo de Duras em sua concisão, e esse estilo se explica talvez pela importância das didascálias no texto. Como é um texto destinado a ser interpretado no cinema, há indicações de cena muito concisas, no presente, com uma espécie de nudez do estilo que se tornará característica da obra de Duras,

uma sobriedade extrema102 (NOGUEZ apud MARITCHIK,

2007, p. 125).

Essa “nudez do estilo” se manifesta pela escassez do detalhamento técnico, contrariamente, por exemplo, a L’Année dernière à Marienbad, de Robbe-Grillet. Duras, por sua vez, deixa espaço maior à intervenção e à criação do diretor. É o que se nota a

seguir:

Nós a reencontramos em pé no centro de um grande cômodo de uma casa japonesa. Cortinas fechadas. Luz suave. Sentimento de frescor após o calor do desfile. A casa é moderna. Há poltronas, etc.

A Francesa está ali como uma convidada. Ela está um pouco intimidada. Ele vem em sua direção do fundo do cômodo (pode-se supor que ele acabou de fechar uma porta, ou vem da garagem, pouco importa)103 (DURAS, 1960, p. 75).

Ainda que apresente a iluminação, o cenário que espera para a personagem, cuja

posição (em pé) também é indicada, Duras não acrescenta pormenores à cena. O trecho “Há poltronas etc” sugere que as marcações são muito mais sugestões do que determinações. Cabe a Resnais definir os outros móveis que estarão presentes na casa moderna, como cumpre a ele resolver de que maneira filmar “o sentimento de frescor depois do calor do desfile”, estabelecer de onde exatamente surge o personagem, decifrar as muitas metáforas e comparações, como a da Francesa em cena “como uma convidada.”

102“Hiroshima mon amour est très important, parce que c’est à partir de là que naît le véritable style de

Duras dans sa concision, et le style de Duras s’explique peut-être par l’importance des didascalies dans ce texte. Il y a, puisque c’est un texte qui est destiné à être joué au cinéma, des indications de scènes très concises, au présent, avec une espèce de nudité du style qui deviendra caractéristique de l’œuvre de Duras, une sobriété extrême.”

103“Nous la retrouvons debout au milieu d´une grande pièce d´une maison japonaise. Stores baissés. Lumière douce. Sentiment de fraîcheur après la chaleur du défilé. La maison est moderne. Il y a des fauteuils, etc./La Française se tient là comme une invitée. Elle est presque intimidée. Il vient vers elle du fond de la pièce (on peut supposer qu´il vient de fermer une porte, ou du garage, peu importe).”

A composição das cenas no roteiro de Duras também se particulariza visualmente,

como se pode verificar nesta página escaneada de Hiroshima mon amour (DURAS, 1960,

Figura 3:

Página 65, escaneada de Hiroshima mon amour, em que se pode notar o uso do itálico e de outros recursos visuais.

Observe-se que a estrutura do texto aproxima-se e distancia-se do roteiro técnico,

analisado na primeira parte deste trabalho. Ambos se assemelham pela espacialização das

informações na página, pelo uso do itálico para as didascálias, pelo modo de atribuição

direta das falas, pela indicação do personagem em caixa alta. No entanto, não há, ao longo

de todo o texto, a numeração das cenas, nem sua separação tradicional pela indicação de “exterior/interior”, “noite/dia”. Não existe, em realidade, a preocupação em delimitar exatamente o fim e o início do que seriam as cenas. Duras opta, como se nota no alto da

página, por dividir seu roteiro em cinco grandes “partes”, em acordo com o que propusera a continuísta. Caberia ao diretor fragmentar essas seções como quisesse. Além disso, os personagens não são nomeados, senão pelos pronomes “ele” (lui) e “ela” (elle).

O que se destaca, em oposição ao roteiro tradicional, é o detalhamento das

didascálias, cujo foco não são as informações técnicas – de enquadramento, iluminação, movimento de câmera –, mas aquelas relativas à ação (“Entre eles passam dois ou quatro trabalhadores que levam uma fotografia muito ampliada representando o plano da mãe morta e do filho que chora, nas ruínas fumegantes de Hiroshima [...]”104); à interpretação (“Eles não olham a foto que passa.”105); ao contexto da cena, como indica a página precedente:

Compreendemos que acabam de realizar, em Hiroshima, um filme edificante sobre a Paz. [...] A multidão passa ao lado da praça onde acabam de realizar o filme. Essa multidão é indiferente. Exceto por algumas crianças, ninguém olha, as pessoas estão habituadas, em Hiroshima, a ver realizarem filmes sobre Hiroshima106 (DURAS, 1960, p. 64).

104“Entre eux passent deux ou quatre ouvriers qui portent une photographie très agrandie qui représente le plan de la mère morte et de l’enfant qui pleure, dans les ruines fumantes de Hiroshima.”

105“Ils ne regardent pas la photo qui passe.”

106“On comprend qu’on vient de tourner à Hiroshima un film édifiant sur la Paix. [...] La foule passe à côté de la place où vient de se tourner le film. Cette foule est indifférente. Sauf quelques enfants, personne ne regarde, on a l’habitude à Hiroshima de voir tourner des films sur Hiroshima.”

Percebe-se que Duras narra, conta uma história, que vai se tornando independente

do filme. Na construção dessa narrativa, os elementos narrativos são dispostos de modo

a aproximar o locutário – ator ou leitor leigo – daquilo que vivem os personagens. É por esse motivo que a escritora insere, no início de cada nova “parte”, uma longa contextualização da ação. Há a descrição da hora e do lugar – “São quatro horas da tarde, praça da Paz em Hiroshima. Ao longe, um grupo de técnicos de cinema se distancia, carregando uma câmera, projetores e refletores”107 (DURAS, 1960, p. 63), um comentário sobre certas escolhas – “Uma observação importante: nós veremos sempre os técnicos de longe e não saberemos jamais qual é o filme que eles realizam sobre Hiroshima”108 (DURAS, 1960, p. 63) –, os sentimentos em cena – “Ela acorda. Seu cansaço se esvai. Caímos subitamente na história pessoal deles”109 (DURAS, 1960, p. 64).

Além disso, há três importantes paratextos que inserem o leitor – seja ele o diretor, o ator, a equipe técnica, o público – nas particularidades da obra, da trama e dos personagens. Trata-se da sinopse, do prefácio e, sobretudo, dos apêndices. Intitulados “Les Évidences nocturnes” (“As evidências noturnas”), “Nevers”, “Portrait du Japonais” (“Retrato do Japonês”) e “Portrait de la Française” (“Retrato da Francesa”), estes contêm uma definição da personalidade dos protagonistas, ditos “o Japonês” e “a Francesa”, além de notas em referência a eles. Tais notas, em certos casos, estão em primeira pessoa, como

fragmentos de um relato ou do diário íntimo da protagonista – como no trecho a seguir: O CASAMENTO DE NEVERS

Eu me torno sua mulher no crepúsculo, a felicidade e a vergonha. Quando isso aconteceu, a noite caiu sobre nós. Nós não percebemos isso. [...]

107“Il est quatre heures de l’après-midi, place de la Paix à Hiroshima. Dans le lointain s’éloigne un groupe

de techniciens de cinéma portant une caméra, des projecteurs et des écrans-réflecteurs.”

108“Une remarque importante: on verra toujours les techniciens de loin et on ne saura jamais quel est le

film qu’ils tournent à Hiroshima.”

OUTRA NOTA SOBRE O JARDIM DO QUAL ATIRARAM NO ALEMÃO

O amor serve para morrer mais comodamente à vida. Esse jardim poderia fazer crer em Deus.

Esse homem, ébrio de liberdade, com sua carabina, esse desconhecido de fim de julho de 44, esse homem de Nevers, meu irmão, como ele poderia saber?110(DURAS, 1960, p. 132).

Em outros momentos, as notas estão na terceira pessoa do discurso, referindo-se

à atriz que interpreta a Francesa (Emmanuelle Riva) – como neste excerto:

SOBRE A FRASE

“E ENTÃO, ELE MORREU”

Riva não fala mais quando essa imagem aparece. Dar um sinal exterior de sua dor seria degradar essa dor.

Ela acaba de descobri-lo, agonizando, sobre o cais, ao sol. É para nós que a imagem é

insuportável. Não para Riva. Riva parou de falar. Ela parou, simplesmente. […]

Vê-la sorrir nesse momento seria até mesmo lógico111 (DURAS, 1960, p. 133).

Destaca-se que a escritora também utiliza os paratextos para sugerir ao diretor interpretações, como nesta transcrição da página 133, em que se lê, sob o título “Sobre a frase: ‘E então, ele morreu’”, que a atriz não deveria falar nada, porque exteriorizar sua dor seria degradá-la. Duras sugere que um sorriso seria mais lógico.

Trechos assim, além de contribuírem para as decisões do diretor e a interpretação

dos atores, apontam para outra característica de roteiros literários como os de Marguerite

Duras: os esclarecimentos a respeito das escolhas do próprio roteirista. Nos roteiros

tradicionais, que primam pela objetividade, dificilmente se encontraria um comentário

110“LE MARIAGE DE NEVERS/Je devins sa femme dans le crépuscule, le bonheur et la honte. Quand ça

a été fait, la nuit était venue sur nous. Nous ne nous en étions pas aperçus. [...] /AUTRE NOTE SUR LE JARDIN/DUQUEL ON A TIRÉ SUR L’ALLEMAND/L’amour sert à mourir plus commodément à la vie./Ce jardin pourrait faire croire en Dieu./Cet homme, ivre de liberté, avec sa carabine, cet inconnu de la fin de juillet 44, cet homme de Nevers, mon frère, comment aurait-il pu savoir?”

111“SUR LA PHRASE:/ ‘ET PUIS, IL EST MORT’/Riva ne parle plus elle-même quand cette image

apparaît./Donner un signe extérieur de sa douleur serait dégrader cette douleur./Elle vient seulement de le découvrir, mourant, sur le quai, dans le soleil. C’est pour nous autres que l’image est insupportable. Pas pour Riva. Riva a cessé de nous parler. Elle a cessé, tout simplement. [...]/La voir sourire à ce moment-là serait même logique.”

dessa natureza. Menos recorrente ainda seria a referência direta à atriz que interpreta a

protagonista (Emmanuelle Riva) e a presença de descrições tão abstratas para o cenário, como a que se lê em “Esse jardim poderia fazer crer em Deus” (p. 132).

Frases abstratas e poéticas, no entanto, como “A dor tem sua obscenidade” (p. 133), pululam nesse roteiro de Duras. Por não resultarem diretamente em qualquer ação

ou gesto, como ocorre com grande parte das frases nos roteiros de cinema, tais colocações fazem pensar na busca do texto pelo contato íntimo de uma leitura “livre”, por parte do interlocutor que não atuará, que não dirigirá o filme, mas que deseja estar próximo da

palavra escrita, da escritura durassiana.