Dois novos romancistas e o cinema
Capítulo 3: Alain Robbe-Grillet: a instabilidade como nova ordem
3.1. Uma polêmica cinematografia: “precioso fermento crítico”
A filmografia de Alain Robbe-Grillet é relativamente curta, restringindo-se a dez
filmes propriamente dirigidos por ele – onze, se contarmos a coautoria com Alain Resnais, para L’Année dernière à Marienbad73. Sabe-se que sua estreia no cinema acontece com o roteiro deste filme, que recebe o Leão de Ouro em Veneza, em 1961.
A direção do primeiro longa acontece logo em seguida, em 1963, com L’Immortelle, que recebe o prêmio Louis-Delluc. A exemplo de Marieband, a trama escapa aos esquemas clássicos da narrativa, construindo-se em torno de imagens mentais
que mesclam realidade e fantasia. Ambientada em Istambul, gira em torno da
perplexidade de um homem diante do súbito desaparecimento da mulher por quem se
encantara. O duplo, a intriga fragmentada, a imprecisão reaparecem em Trans-Europ-
Express (1966), de teor metatextual – como mencionado, na trama, um diretor decide fazer um filme a partir do que vê em uma viagem de trem – e em L’homme qui ment, de 1968, cuja intriga se relaciona ao hóspede de um albergue, que se faz passar por outro, de
nome Jean. O filme é premiado no Festival de Berlim, dois anos depois.
L’Éden et après, de 1971, seu primeiro filme em cores, seria um cruzamento de Justine, do Marquês de Sade, e Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. No
enredo, um grupo de jovens se diverte em um café – “Éden” –, com “jogos” que envolvem roleta-russa e envenenamento. Tais “jogos” tornam-se mais perigosos e alucinantes com a chegada de um estrangeiro que lhes oferece uma substância chamada “pó do medo”. N a pris les dès, do mesmo ano, integra um projeto robbe-grilletiano de realizar outro filme
73 Robbe-Grillet também escreveu, em parceria com Franck Daniel e Raoul Servais, o roteiro para
a partir do material de L’Éden et après, apenas trocando-se o nome dos personagens e alterando-se a ordem da montagem. É uma experiência sobretudo teórica, acerca de temas
que lhe são caros – como o duplo e o espelhamento – e também sobre o próprio fazer cinematográfico.
Nas produções seguintes, o erotismo, que já se insinuava nos trabalhos anteriores,
ganha cada vez mais espaço, direcionando-se, muitas vezes, a uma vertente
sadomasoquista. Em Glissements progressifs du plaisir, de 1973, que teria sido inspirado
em La Sorcière, de Michelet, uma jovem acusada de assassinato, espécie de feiticeira,
seduz os responsáveis por investigá-la e puni-la – incluindo um padre e uma freira –, envolvendo-os com sua fértil imaginação. Le jeu avec le feu, de 1974, narra a história de
um banqueiro que, no intuito de proteger sua filha de uma ameaça de sequestro, contrata
um detetive que sugere confiná-la em uma casa de prazeres.
Em La Belle Captive, de 1983, os quadros de René Magritte articulam-se com a
atmosfera surreal e enigmática da trajetória do rapaz encarregado de entregar uma carta
ao conde Henri de Corinthe. A narrativa detetivesca se faz presente, nesse e em outros
trabalhos, muitas vezes em tom de paródia.
Após mais de uma década de silêncio, Robbe-Grillet retoma a cinematografia em
1995, com Un bruit qui rend fou. Inspirado em O Navio Fantasma, de Richard Wagner,
ambienta-se em uma ilha do mar Mediterrâneo e um prostíbulo assombrado pelo retorno
de um homem que desaparecera após o assassinato de uma jovem euroasiática.
C’est Gradiva qui vous appelle, de 2006, com Arielle Domsbale no papel principal, é o último filme do diretor, realizado a partir de seu cine-romance homônimo,
de 2002. O romance Gradiva, de Wilhelm Jensen, A interpretação dos sonhos, de
permeiam a vertiginosa passagem de um escritor – biógrafo do pintor francês – por Marrakech.
De acordo com René Prédal, em “Une oeuvre gênante aux marges de la critique”, ao estudar a obra cinematográfica de Robbe-Grillet, podem-se listar os numerosos elogios
publicados em veículos como Le Temps modernes, Le Monde, L’Express, Le Nouvel Observateur, La Quinzaine Littéraire, Les Lettres françaises ou Le Figaro. Ou pode-se
optar pela via das críticas mordazes e do desprezo, conforme acontece, em relação a L’Immortelle, em Positif e Cahiers du Cinéma. Contudo, separadamente, nenhuma das escolhas faria jus à natureza complexa das reações provocadas por seu trabalho
(PRÉDAL, 2005, p. 91).
A hostilidade, segundo Prédal, estaria edificada na incompreensão, que se
utilizaria ora do silêncio ora do ataque para não assumir a incapacidade de lidar com a
perturbação gerada pela obra. Também se daria pela calcificação de posicionamentos, como a dos “Surrealistas de esquerda” – sobretudo colaboradores de Positif, nos anos 1960 – que pretendiam evitar a concorrência, refutando todo um bloco de novas criações, como o Cinema Direto, a Nouvelle Vague e de diretores como Pier Paolo Pasolini
(PRÉDAL, 2005, p. 96).
Outro grande responsável pelo repúdio à obra cinematográfica robbe-grilletiana
seria o imaginário erótico sadomasoquista que o diretor coloca em cena. Entretanto, a
rejeição seria fruto de uma leitura simplista, que não considera a estrutura de suas produções. Claude Murcia, em “L’image de la femme dans les films d’Alain Robbe- Grillet”, cita o próprio autor para lembrar que suas obras são trabalhadas a partir de duas forças opostas: as organizadoras da ordem – conservadoras ou reacionárias – e as organizadoras da subversão – inovadoras ou revolucionárias. Tais forças seriam
assumidas pelos personagens, sendo a ordem estabelecida geralmente representada por
um homem branco e a desordem por uma presença feminina. Como ocorre em
Glissements progressifs du plaisir – paradoxalmente, o filme que mais suscitou uma reação negativa por parte das feministas –, a mulher assume a inteligência e a força, sendo superior ao homem, que ela manipula segundo lhe convém (MURCIA, 2005, p. 48-49).
Murcia atenta também para o fato de que o lado escandaloso dos filmes de Robbe-
Grillet procede de um ato de liberdade raro no que concerne à sexualidade. Expondo a
parte mais obscura e perturbadora do ser, que é a das pulsões sexuais, o autor desencadeia
um processo catártico, que torna possível domesticar tais pulsões, fruindo e, ao mesmo
tempo, jogando com elas (MURCIA, 2005, p. 55).
A polêmica, portanto, acaba se tornando inerente ao estudo da cinematografia
robbe-grilletiana, a qual Prédal considera “um precioso fermento crítico” (PRÉDAL, 2005, p. 104). Outros elementos que particularizam sua obra são a construção
cinematográfica do imaginário dos personagens, o emprego descontínuo da trilha sonora,
a fragmentação temporal, a imagem provocada pelos sons, a presença intrigante do duplo,
o diálogo com o espaço de ambientação das tramas. Porém, sobretudo, o componente
essencial de seu cinema é a destreza na orquestração da desordem.
Cabe ressaltar que as controvérsias geradas pela filmografia do autor, bem como
sua engenhosidade em relação à escrita atraem a atenção da crítica, mas também do
público, para a prática literária relacionada ao cinema. Resultado semelhante é o
produzido pela obra de Marguerite Germaine Marie Donnadieu – ou, simplesmente, Marguerite Duras.