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Roteiros literários em primeiro plano

Capítulo 1: Hiroshima mon amour: a calamidade, uma experiência intermidiática

1.1. Un amour de rencontre ou o reencontro do amor

O livro Hiroshima mon amour – roteiro e diálogos – foi publicado pela Gallimard em 1960, apenas um ano depois do lançamento do filme dirigido por Alain Resnais. Em

um dos primeiros diálogos do roteiro, lê-se:

ELE De que trata o filme em que você atua?

ELA

Um filme sobre a Paz. O que mais você quer que façamos em Hiroshima senão um filme sobre a Paz?97 (DURAS, 1960, p. 53).

Assim, metalinguisticamente, o diálogo de abertura entre os protagonistas de

Hiroshima mon amour corrobora com essa espécie de verdade absoluta: a de que, desde

a bomba atômica, tudo o que remete a Hiroshima tem, como objetivo, militar em favor

da paz.

A obra em questão não escapa totalmente desse horizonte. Entretanto, sua

abordagem resvala antes por outras abstrações, como a memória. Tal tema, caro tanto a

Resnais quanto a Duras, articula-se em dois eixos: um, de caráter coletivo e histórico, é

centrado na tragédia em Hiroshima; o outro, de caráter pessoal e sentimental, centraliza-

se no encontro amoroso vivido pela protagonista durante a Segunda Grande Guerra.

Em seu diálogo, a mulher traz à tona a presença da morte na cidade japonesa, à

medida que reconstrói, em parte, o passado, ao narrar suas recordações. Ela vivera, como aos poucos confessará ao longo da trama, em Nevers: “Em toda a minha vida, foi em Nevers que fui mais jovem... [...] Sim, jovem em Nevers. E depois também, uma vez,

97“LUI: Qu’est-ce que c’est le film dans lequel tu joues?/ELLE: Un film sur la Paix. Qu’est-ce que tu veux

louca em Nevers”98 (DURAS, 1960, p. 57). Conforme prediz a escritora em seu texto, o espectador tem acesso às imagens das lembranças dessa mulher: sabe, então, como, aos

18 anos, ela conhecera um soldado alemão; como se apaixonaram e se encontravam,

eufóricos, pelos bosques; como planejaram fugir e como ele morrera antes disso. Em

consequência, a francesa enlouquecera, enclausurada em um porão, escondida pelos pais,

que buscavam ocultar sua desonra.

O amante japonês, nesse presente a que então se assiste, mostra-se cada vez mais

interessado pela narrativa, que é contada em diferentes momentos e espaços – em seu apartamento, em um bar, à beira de um rio. O personagem masculino chega a colocar-se

na primeira pessoa, fazendo as vezes do soldado alemão, do primeiro amor perdido.

ELE

Quando você está dentro da cave, eu estou morto? ELA Você está morto... e...

Nevers: o Alemão agoniza muito lentamente sobre o cais.

ELA

... como suportar uma dor como essa?99 (DURAS, 1960, p. 87)

O ponto de contato entre os personagens masculinos se realiza não apenas pela

relação amorosa com a francesa, mas também por suas nacionalidades: durante a Segunda

Guerra, Japão e Alemanha estiveram do mesmo lado, compondo, junto à Itália, as

Potências do Eixo – em oposição à França, situada entre os Aliados. Ocorre, dessa maneira, uma duplicação do personagem “amante-inimigo”, cujas personalidades deslizam entre passado e presente, Nevers e Hiroshima.

98“C’est à Nevers que j’ai été le plus jeune de toute ma vie... [...] Oui. Jeune à Nevers. Et puis aussi, une

fois, folle à Nevers.”

99“LUI: Quand tu es dans la cave, je suis mort?/ELLE: Tu es mort... et.../Nevers: l’Allemand agonise très lentement sur le quai./ ELLE: ...comment supporter une telle douleur?”

Nesse jogo de equivalências, a protagonista dá continuidade à representação, do

mesmo modo que, páginas adiante, oscila, em seu discurso, entre pronomes de primeira

e terceira pessoa, ora se aproximando ora se distanciando da jovem apaixonada que fora

em Nevers:

ELA Ela teve em Nevers um amor de juventude alemão... Nós iremos à Baviera, meu amor, e nós nos casaremos. Ela nunca foi à Baviera. (Ela se olha no espelho.)

Que aqueles que jamais foram à Baviera ousem lhe falar do amor. Você não estava completamente morto.

Eu contei nossa história.

Eu enganei você esta noite com este desconhecido100 (DURAS, 1960, p. 110).

O desconhecido a que a francesa se refere é justamente o japonês que, páginas

antes, representava, apoderando-se do pronome de primeira pessoa, o amante alemão. As

camadas temporais e espaciais se misturam, confundindo-se. Segundo Susan D. Cohen, em “La Présence de Rien”, em Duras, o olhar para algo ausente causa imediatamente o apagamento da distância e do espaço, fazendo com que o objeto se presentifique em

perfeita similitude. É o que ocorreria também em Le Marin de Gibraltar e Le Ravissement

de Lol. V. Stein.

Como se, em Duras, a comunicação, a compreensão, um certo amor, e até o texto nascessem somente quando duas pessoas dirigem o olhar a um fato (ou texto) ausente. Frequentemente trata-se de alguém que, tendo sobrevivido, de alguma maneira, a uma paixão, volta-se, acompanhado por outra pessoa, para o passado. Esse olhar (apaixonado) sobre a memória de um dos dois faz com que se forme um novo casal101 (COHEN, 1983, p.

26).

100“ELLE/ Elle a eu à Nevers un amour de jeunesse allemand.../Nous irons en Bavière, mon amour, et nous

nous marierons./Elle n’est jamais allée en Bavière. (Elle se regarde dans la glace.)/Que ceux qui ne sont jamais allés en Bavière osent lui parler de l’amour./Tu n’étais pas tout à fait mort./J’ai raconté notre histoire./Je t’ai trompé ce soir avec cet inconnu.”

101“Comme si chez Duras la communication, la compréhension, un certain amour, et le texte même ne

naissaient que lorsque deux personnes dirigent leur regard vers un fait (ou texte) absent. Souvent il s’agit de quelqu’un qui, ayant survécu en quelque sorte à une passion, se tourne, en compagnie d’un autre, vers ce passé. Ce regard (passionné) sur la mémoire de l’un des deux fait se former un nouveau couple.”

De fato, o casal, em Hiroshima, forma-se à sombra do casal desfeito há anos, em

Nevers. É no entremeio da narrativa que os dois vão se tornando mais íntimos, a mulher

entregando-se em palavras, sendo levada pela história que ela própria conta.

O confidente japonês quer saber por quanto tempo ela sofrera naquele porão,

depois de sua morte. “A eternidade”, ela responde. (1960, p. 95). Sabe-se, porém, que um dia ela “sai da eternidade” (DURAS, 1960, p. 97), como declara o homem. A mãe, então, pede que vá de bicicleta para Paris, que fuja durante a noite. E ali ela toma conhecimento

da bomba atômica e do fim da guerra. Ela se revolta por pensar que muitas pessoas, no

resto do mundo, gozavam de uma felicidade que contrastava com o sofrimento que sentia

pela morte do amado – ao mesmo tempo em que, para os japoneses, o desfecho da guerra se relacionava à tragédia de Hiroshima.