• Nenhum resultado encontrado

Roteiros literários em primeiro plano

Capítulo 2. Em cena : L’Année dernière à Marienbad

2.1. No labirinto do tempo

O livro L’Année dernière à Marienbad é lançado pelas Éditions de Minuit, em 1961, no mesmo ano da estreia do filme homônimo de Alain Resnais. Na introdução à

obra, Robbe-Grillet esclarece que, no inverno de 1959/1960, fora procurado pelos

produtores Pierre Courau e Raymond Froment, que o interrogaram sobre a possibilidade

de se reunir e, eventualmente, filmar com Resnais. Na semana seguinte ao encontro,

Robbe-Grillet submeteria quatro projetos de filme ao diretor e, dias mais tarde, eles se

decidiriam por L’Année dernière. Como acontece com Duras em Hiroshima mon amour, Resnais também dá grande liberdade a Alain Robbe-Grillet no projeto.

A obra viria a se tornar um inegável marco na carreira do escritor. Em “Vertige fixé ”, Gérard Genette comenta a radical transformação que sofre Robbe-Grillet, para a crítica, com o lançamento de L’Année dernière à Marienbad : de agrimensor exigente, portador de uma “caneta-câmera ”, em Les Gommes e Le Voyeur, o escritor passa a autor fantástico, espeleólogo do imaginário, visionário. Questionando as contraditórias

classificações da obra do novo romancista e os comentários não menos conflituosos do

próprio escritor sobre seu trabalho – objetivo ? subjetivo ? realista-subjetivo ? –, Genette condensa as recorrentes complexidades da obra robbe-grilletiana, sensivelmente

presentes em Marienbad:

Essa interferência constante entre as diversas versões “objetivas” e “subjetivas” da ação tem naturalmente por efeito multiplicar as repetições, as retomadas, os ecos e, por conseguinte, destacar as diferenças sutis e semelhanças desconcertantes não somente entre objetos ou personagens, mas entre os episódios da narrativa. A ação não se desenrola, ela se enrola sobre si mesma e se multiplica por variações simétricas ou paralelas, em um

sistema complexo de espelhos opacos132 (GENETTE, 1978, p.

105).

O tema desse cine-romance já propicia tal sistema complexo de variações e

artifícios, tendo sido comparado à trama nebulosa do romance A invenção de Morel, de

Bioy Casares133. Sabe-se que a anedota gira em torno de um homem (X) que tenta convencer uma mulher (A), comprometida com M, de que eles se conheceram

anteriormente, apaixonaram-se e que se reencontram, naquela mansão barroca, para que

possam desta vez concretizar o amor, fugindo juntos, libertando-se. Porém, nada é muito

preciso na trama. Não se pode determinar se o homem imagina, inventa ou, de fato,

132 “Cette interférence constante entre les diverses versions ‘objectives’ et ‘subjectives’ de l’action a

naturellement pour effet de multiplier les répétitions, les reprises, les échos, et par conséquent de souligner les différences subtiles et les ressemblances troublantes non seulement entre objets ou personnages, mais entre les épisodes mêmes du récit. L’action ne se déroule pas, elle s’enroule sur elle-même et se multiplie par variations symétriques ou parallèles, dans un système complexe de miroirs, de fausses fenêtres et de glaces sans tain.”

133 Publicado cerca de vinte anos antes, o livro de Casares dispõe de diversos elementos que inspiram a

comparação entre as obras, como o triângulo amoroso, a caracterização de alguns personagens e mesmo a descrição do espaço, que o narrador denomina “Teques” ou “Marienbad”: “E, contudo, de um momento para o outro, nesta pesada noite de verão, os capinzais da colina se cobriram de pessoas que dançam, passeiam e nadam na piscina como veranistas instalados, faz tempo, nos Teques ou em Marienbad.”/ “Sin embargo, de un momento a otro, en esta pesada noche de verano, los pajonales de la colina se han cubierto de gente que baila, que pasea y que se baña en la pileta, como veraneantes instalados desde hace tiempo en los Teques o en Marienbad” (CASARES, 1953, p. 19) Entretanto, inúmeras são também as diferenças, o que torna inadequado considerar L’année dernière à Marienbad como uma adaptação de A invenção de

Morel. A postura dos autores a respeito também é imprecisa. Em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo,

em 1995, o escritor argentino afirma: “Li, com gratidão, que Alain Resnais disse que meu livro havia sugerido o tema, mas não reconheço muito o livro no filme.” (http://almanaque.folha.uol.com.br/entrevista_bioy_casares.htm. Acesso em 08 de outubro de 2014.) Afirma-se também que o cineasta apenas concordou com a comparação realizada por um jornalista, na estreia do filme em Veneza, dizendo, porém, não haver lido o livro. (<http://carmattos.com/2009/07/27/o- enigma-morel-marienbad/> Acesso em: 08/10/2014) Quanto a Alain Robbe-Grillet, o autor foi à Argentina em 1997 para participar do júri do “Festival de Cine de Mar del Plata”. Visitou, então, a Villa Ocampo, en San Isidro, em companhia da crítica argentina Elsa Drucaroff. A visita foi documentada em entrevista concedida a Drucaroff, publicada no Diario Perfil (http://www.perfil.com/cultura/Una-charla-inedita-con- Alain-Robbe-Grillet-20080224-0026.html). A entrevista não está reproduzida na íntegra, mas, segundo Pulgarín Hernández, a crítica argentira teria relatado “ […] cómo el francés, luego de descubrir la casa que fue de Bioy Casares y de Silvina Ocampo, aceptó que, aunque en su momento no lo hubiera hecho de manera consciente, una relectura de La invención de Morel lo había llevado a concluir que esa había sido una de las grandes influencias para escribir el guión del El año pasado en Marienbad, reconociendo, incluso, que muchos de los personajes de la película parecen calcados de la novela del argentino” (PULGARÍN HERNÁNDEZ, 2011, p. 87).

recorda. A heroína hesita tanto quanto o espectador, parte de uma história labiríntica como

os corredores do cenário por onde se desloca.134 O maior labirinto, no entanto, é o tempo.

Gilles Deleuze, em L’Image-Temps, cita Santo Agostinho, para quem há um presente do futuro, um presente do presente, um presente do passado, todos implicados

no acontecimento, envolvidos nele, portanto simultâneos e inexplicáveis (DELEUZE,

1985, p. 132). Para Deleuze, a concepção de Robbe-Grillet seria agostiniana, dada a

coexistência de tempos em várias de suas obras, tais como L’Immortelle, L’Homme qui ment, Trans-Europ-Express e, evidentemente, L’Année dernière à Marienbad, em que os três protagonistas representariam os três tempos, mas de maneira a complicar o que já é

incompreensível: X viveria no presente do passado; A, no presente do futuro, sendo que a

diferença secreta que supõe o presente do presente – simbolizada por M – acaba por implicar uma variação dentro da outra. Efetivamente, a presença deste personagem é, em

geral, a mais sensata e segura. É ele quem fornece, por exemplo, os esclarecimentos

aparentemente mais lógicos para a misteriosa estátua que tanto intriga os protagonistas:

[A e X] olham para um terceiro personagem que surgiu entre eles, ligeiramente mais atrás em relação a A (que já se encontra, por sua vez, um pouco mais atrás em relação a X, mais próximo da câmera). Este personagem é M. Está na posição familiar em que já foi visto uma ou duas vezes: os braços cruzados ou algo assim. M começa logo a falar, educado, ligeiramente irônico, com uma voz que, apesar de tudo, pode parecer com a de alguém que deseja ser útil.

M: Perdoe-me, caro senhor. Acho que posso dar uma informação mais precisa: esta

estátua representa Carlos III e sua esposa, mas naturalmente não data dessa época. A cena é a

134 Para Robert Stam, a trama alegoriza a relação do público com o cinema: “De certa forma, o filme

constitui um comentário sarcástico da cumplicidade do espectador na ilusão fílmica. [...] Como um diretor de cinema, X tenta persuadir A que algo aconteceu, em algum outro lugar, no ano anterior.” (STAM, 2008, p. 342-342)

do juramento diante da Dieta, durante o processo por traição. As roupas antigas são pura convenção...135 (ROBBE-GRILLET, 1988, p. 63).136

A própria descrição de como surge na cena, despertando o olhar dos demais para esse “terceiro personagem”, além da tonalidade educada de sua voz e seu caráter obsequioso chamam a atenção para a possibilidade de se obter uma perspectiva lógica,

uma espécie de reconciliação de pontos de vista, graças a esse terceiro elemento.

Efetivamente, é ele quem dá as cartas no jogo – Nim – no qual sempre vence. Não é em todas as situações, no entanto, que ele sai vitorioso.

M (triste, sonhador): Onde está você… meu amor perdido… A (insegura): Aqui… Estou aqui… Com você, neste quarto.

M (docemente): Não, isso já não é verdade137 (ROBBE-GRILLET, 1988, p. 135).

Observa-se, pelo tom “triste, sonhador” de sua voz, não apenas como M prevê a perda da heroína, como também o novo questionamento dos tempos. Ainda que, a

princípio, no então presente, A esteja ao seu lado, fisicamente, naquele quarto, o prenúncio da despedida se manifesta para ele como uma verdade em tempo presente: “Isto não é mais verdade.” E também o passado está implicado nesta declaração pelas vias do

135“[A et X] regardent tous les deux vers un troisième personnage apparu entre eux, un peu en retrait par

rapport à A (qui se trouve déjà elle-même un peu en retrait par rapport à X, le plus rapproché de l’appareil). Ce personnage, c’est M. Il est dans la pose familière où on l’a vu déjà une ou deux fois: les bras croisés ou quelque chose de ce genre. M se met aussitôt à parler, poli, très légèrement ironique, d’une voix qui peut passer malgré tout pour celle de quelqu’un désirant rendre service./M: Pardonnez-moi, cher Monsieur. Je

crois que je peux vous renseigner d’une façon plus précise; cette statue représente Charles III et son épouse, mais elle ne date pas de cette époque, naturellement. La scène est celle du serment devant la Diète, au moment du procès en trahison. Les costumes antiques sont de convention pure…” (ROBBE-GRILLET,

1961, p. 76).

136 Conforme mencionado, para as citações em português de L’Année dernière à Marienbad, utilizaremos

a tradução da Editora Nova Fronteira, de 1988. A publicação é fiel à tipografia do original, empregando, no entanto, o itálico para o nome dos protagonistas A, X e M – exceto em trechos em que o nome introduz a fala do personagem, como no trecho transcrito. Optaremos por repetir a escolha da publicação brasileira, nesse sentido.

137M (triste, rêveur): Où êtes-vous... mon amour perdu...A (incertaine): Ici... Je suis ici... je suis avec vous, dans cette chambre./M (avec douceur): Mais non, ce n’est plus vrai, déjà. (ROBBE-GRILLET, 1961, p.

“mais”: o passado que, para Deleuze, transforma-se em “imagem-memória”, une-se ao presente da “imagem-presságio”. Novamente, os tempos se sobrepõem e nada se esclarece. Permanece o embate das lembranças – ou das “imaginações” – de A e X.

Esse confronto é acentuado pela dupla possibilidade do engodo: da mesma

maneira que não se sabe se X inventa, delira ou recorda, também não é possível determinar

se A, em realidade, não se lembra ou dissimula. A constância de seu riso, sua voz

sorridente, a ironia de seus comentários – elementos reforçados por Robbe-Grillet na composição do cine-romance – levantam a suspeita para a ambiguidade de seu caráter. Neste trecho, a personagem chega a debochar de X, ao perguntar-lhe se era em seus

sonhos que a esperava, ou ao incluir-se cinicamente na primeira pessoa do plural de “nossa” história:

Rosto de A que replica, desta vez com leve sorriso, vazio e mundano, mas bonito. Terminada a curta frase, o sorriso se imobiliza e desaparece:

A: Em seus sonhos?

[...]

X: Se foram sonhos, por que você teria medo?

VOZ DE A: Pois bem, então conte o resto de nossa história! (Tom irônico, X permanece impassível)138(ROBBE-GRILLET, 1961, p.66).

Robbe-Grillet procura também reiterar, no roteiro, a ambivalência da

personalidade de A, a todo momento, pela troca e pela repetição do figurino, em cenas

intercaladas, como no trecho que sublinhamos a seguir:

[…] A não está mais usando a mesma roupa (agora usa, por exemplo, um vestido de saia muito

ampla com saiote inteiriço, também muito comprido, como o antigo new look, a 20cm do chão) (ROBBE-GRILLET, 1988, p. 60)139

138“Visage de A, qui répond, avec cette fois un léger sourire, vide et mondain mais joli. La brève phrase

finie, le sourire se fige et disparaît./A: Dans vos rêves?/[...]/X: Si c’étaient des rêves, pourquoi auriez-vous

peur?/VOIX DE A: Eh bien, racontez-moi donc la suite de notre histoire! (Ton ironique, X reste

impassible.)” (ROBBE-GRILLET, 1961, p. 79-80).

139“[...] A ne porte plus le même costume (elle a maintenant par exemple une robe à très large jupe et à

jupon raide, très longue aussi: comme l’ancien “new looks” à 20 cm du sol) (ROBBE-GRILLET, 1961, p. 72).

Evidentemente, pela incoerência e a constante troca dos figurinos, confundem-se

também os tempos da ação, já que não se pode contar com a regular lógica da vestimenta

para situar um momento na sequência textual ou fílmica. Aparentemente, tal imprecisão

temporal não somente atingiria o leitor/espectador, como diferenciaria também as

perspectivas de Robbe-Grillet e Alain Resnais a propósito da trama.

Segundo Deleuze, para quem Marienbad é uma obra de dois autores140, na percepção de Resnais, algo teria efetivamente acontecido “no ano passado”, enquanto, para Robbe-Grillet, tudo se passaria apenas na mente dos personagens, ou melhor, na

mente do espectador. Essa diferença seria explorada em relação ao tempo, que, para o

diretor – como em outros de seus filmes –, estaria composto por camadas ou regiões do passado, diferentemente da opção do novo romancista e de sua concepção fotográfica,

justaposta, de simultâneos pontos de presente desatualizados (DELEUZE, 1985, p. 135).

O que tornaria esse antagonismo tão fecundo seria o fato de, nos dois casos, haver o

desaparecimento do centro ou do ponto fixo – embora de maneiras opostas.

A recusa dessa lógica temporal se articula também com os espaços. Nos filmes de

Resnais, evoca-se Veneza em um hotel de Guermantes, Nevers em Hiroshima: neles, os

trajetos do tempo, a rememoração, a alucinação ou a invenção se materializam em

percursos ambíguos, labirínticos, repetitivos. O mesmo acontece em romances robbe-

grilletianos, como Les Gommes e Le Voyeur. E é visivelmente o caso de Marienbad, que

representa um espaço fílmico que é sua própria realidade. O tempo não se torna mais

definido graças ao espaço: ao contrário, seu desarranjo é ampliado pelo rebuscamento do

espaço. A própria arquitetura do castelo, em todo o seu exagero barroco, sua profusão de

detalhes tortuosos, evoca a perplexidade. Se, para Blanchot – como escreve em artigo

140“Ce qui semble extraordinaire dans cette collaboration, c’est que deux auteurs (puisque Robbe-Grillet

ne fut pas seulement scénariste) aient produit uneœuvreaussi consistante, tout en la concevant de manière différente, presque opposée.”

sobre Le Voyeur – “o tempo sonhado, o tempo rememorado, o tempo que poderia ter sido, o tempo futuro, enfim, transforma-se incessantemente na presença resplandecente do espaço, lugar do desdobramento da pura visibilidade” (BLANCHOT, 1984, p. 222), para o espectador, de nada serve toda a visibilidade incompreensível de uma obra que se quer

labiríntica.

Toda a imprecisão descrita é construída também pela forma do texto. “É na forma que é preciso buscar seu verdadeiro conteúdo ”, assevera Robbe-Grillet ao refletir sobre a arte cinematográfica no prefácio de Marienbad. (1961, p. 6). A forma desse texto, no

entanto, é baseada na estrutura dinâmica e fugidia do cine-romance.