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As origens da Matemática Moderna

No documento APARECIDA RODRIGUES SILVA DUARTE (páginas 50-55)

Não é possível assinalar com precisão o nascimento da Matemática Moderna, observa Patras, pois o método identificado por moderno pode ser percebido em trabalhos de matemáticos do século XVII e XVIII, embora essas idéias ainda estivessem germinando, apresentando-se de forma pontual, a fim de serem explicitadas, identificadas e organizadas. Somente a partir de 1930, a teorização do método aflorou em sua totalidade, decorrente dos trabalhos do Grupo Bourbaki.

Patras inicia o capítulo III, “As origens da matemática moderna”, caracterizando a Matemática Moderna como aquela dominada, em toda sua

universalidade, pelo método transcendental, o qual, por sua vez, é definido pelo autor como aquele que permite “ir diretamente às noções mais gerais, obtidas de uma classe de problemas de estruturas típicas e regulares” (2001, p. 58). A Álgebra foi o elemento motor para a tomada de consciência da necessidade de se extrair os conceitos universais que emanam dos problemas matemáticos, com o maior grau de generalização possível.

É o método transcendental que permite extrair conceitos matemáticos universais os quais “organizam a percepção e a compreensão que um matemático tem de sua ciência” (PATRAS, 2001, p. 58). O método transcendental contribui para o alargamento do campo de investigação matemática, uma vez que as estruturas universais, conceito que fundamenta esse método, consistem em identificar padrões análogos ocultos em diferentes objetos, operações e métodos matemáticos. Estas emanam a partir de situações diversas e sem ligação aparente, permitindo tratar questões relevantes e de domínios distintos, independentemente da natureza dos objetos observados.

Com o advento das estruturas amplia-se o leque de significados associados aos objetos matemáticos:

Assim, números, grandezas e figuras, por exemplo, passam a dividir as atenções com vetores, matrizes, permutações e proposições, constituindo sistemas caracterizados por propriedades, por relações.

Posteriormente, os próprios sistemas multiplicam-se, transfiguram-se, sem perder suas características básicas, suas propriedades fundamentais. Ocorre, assim, um deslocamento das atenções, dos objetos, para as relações (PIRES, 2000, p. 99).

Patras (2001) enfatiza ainda que, hoje em dia, para a cultura matemática é necessário o controle de um número importante de conceitos estruturantes11, embora requeiram uma extensão do conceito de estrutura.

11 O grupo Bourbaki afirma em “Les fondements de la mathématique pour le mathématicien”, artigo publicado

em 1949, que a matemática inteira pode ser construída a partir do conceito de estrutura. Exemplificando, pode-se descrever as propriedades das relações soma e produto para os números reais, os quais estão inseridas em um estudo geral das estruturas algébricas; pode-se ainda, descrever as propriedades de ordem dos números reais, como por exemplo, entre dois números reais sempre existe um terceiro; pode-se ainda descrever as propriedades não dos números reais individuais, mas de sua vizinhança, propriedades essas que se inserem no estudo geral das estruturas topológicas (ODIFREDDI, 2004, p. 24).

Para dar início à sua narrativa, Patras elege o matemático Leibniz, dentre o extenso rol de matemáticos cujos trabalhos possuem, ainda que pouco explícitos, características do método transcendental. As obras matemáticas de Leibniz estão repletas de conceitos originais, os quais trazem toda a universalidade e abstração desejada, assevera Patras. Leibniz teve a genialidade de compreender o método transcendental, indo diretamente às noções mais gerais, obtidas de estruturas típicas e regulares. A esse respeito, Edwards Jr. em sua obra “The historical development of the Calculus”, comenta que “Leibniz tinha como objetivo constante a formulação geral dos métodos e algoritmos que poderiam servir para unificar o tratamento de diversos problemas. Enfatizava as técnicas em geral, que pudessem ser aplicadas a problemas específicos” (1982, p. 265).

No entanto, Patras (2001) não se aprofunda no estudo da obra de Leibniz, por avaliar suas idéias como muito avançadas em relação ao nível técnico e conceitual de sua época, para que pudessem fazer escola.

Assim, Patras debruça-se sobre o trabalho de Carl Friedrich Gauss (1777- 1855), por reconhecer nele o embrião da Matemática Moderna. Apesar disso, esclarece, é um exemplo longe de ser isolado. Toma esse exemplo por constatar que há em sua obra “a marca do método estrutural-transcendental”, sendo que suas idéias sobre o trabalho matemático são próximas daquelas que viria a defender o grupo Bourbaki.

Os trabalhos de Gauss testemunham sua capacidade de estabelecer paralelos e ligações entre fenômenos aparentemente distintos. Patras exemplifica essa aptidão de Gauss de analisar o mesmo problema sob diferentes ângulos e recorrer, para uma mesma demonstração, a uma variedade de ordens de intuição (geométrica, analítica, topológica, etc...), em suas provas do Teorema Fundamental da Álgebra, ocasião em que Gauss apresenta quatro demonstrações “substancialmente diferentes em sua natureza”12 (PATRAS, 2001, p. 59).

12 Teorema Fundamental da Álgebra: “toda equação algébrica de grau n possui pelo menos uma raiz no

corpo dos complexos”. A tese de doutorado de Gauss versou sobre esse teorema, tendo como título “Demonstratio nova theorematis omnem functionem algebraicam rationalem integram unius variabilis in

factores reales primi vel secundi gradus resolvi posse”. Em 1815 apresentou nova demonstração dele e ainda em 1816 e 1849 mais duas demonstrações (SILVA, 2005).

Gauss realizou grande parte do trabalho sobre Teoria dos Números Complexos. Em carta escrita para um de seus discípulos, Friedrich Bessel (1784- 1846), em 1811, Gauss reivindicou aos números complexos o mesmo direito de existência que os números reais:

Antes de tudo, a quem deseje introduzir uma nova função em análise, rogaria uma explicação sobre se lhe interessa sua aplicação somente a magnitudes reais (valores reais dos argumentos da função) e contempla os valores imaginários do argumento só como um estorvo ou se adota o meu princípio básico de que no domínio das magnitudes, os imaginários

bi a 1 b

a   hão de ser considerados com os mesmos direitos que os reais. Não se trata de uma questão de utilidade prática, senão de que a análise é uma ciência independente que perderia extraordinariamente em beleza e redondeza se deixasse de lado as quantidades fictícias, além de que seria necessário, a cada instante, estabelecer limitações sumamente modestas a verdades que em outro caso são geralmente válidas (GAUSS, 1900, p. 11, apud SILVA, 2005).

Gauss foi um dos primeiros matemáticos a representar os números complexos como pontos de um plano, não hesitando em identificar os objetos matemáticos totalmente distintos de um ponto de vista intuitivo. Esse caso, observa Patras, exemplifica quando o matemático faz a abstração da natureza dos objetos e do significado das relações que eles mantêm, enfatizando a forma de certas relações, sua estrutura, lembrando que a forma das relações entre objetos é ela própria um objeto de ordem superior.

Um outro traço característico de Gauss era sua preocupação com o rigor demonstrativo. A preocupação com o rigor vai percorrer todo o século XIX, conhecendo uma evolução impressionante no decorrer do século XX. Gauss antecipou notadamente os esforços de Cauchy e de Abel nesse aspecto, ao desconfiar dos recursos da intuição que não estão apoiados em regras precisas.

No entanto, corre-se o risco de atribuir a Gauss resultados que ele não conservou em toda sua generalidade:

Há nele, a essência da teoria. Mas, como avaliar o que está errado: uma linguagem convenientemente desenvolvida para perceber a natureza exata dos objetos considerados? Sob a perspectiva transcendental, a identificação precisa dos conceitos

tem um papel decisivo, pois ela delimita o terreno sob o qual diversas teorias poderão ser unificadas. Ela sozinha permite ressaltar, à partir de elementos específicos os problemas considerados sobre uma situação matemática dada, o universal suscetível de ser utilizado em outras situações (PATRAS, 2001, p. 61).

Atendo-se ao processo de nascimento da Álgebra Moderna, Patras (2001) detém-se em Évariste Galois (1811-1832), indicando-o como o representante exemplar da entrada da Matemática na era moderna, devido à sua grande contribuição, sua situação histórica e também por seu papel de iniciador das renovações dos métodos algébricos do século XIX.

Sua obra traz, pela primeira vez, de modo explícito, as propriedades mais importantes da Teoria dos Grupos. No final do século XVIII, pensava-se que para resolver a equação algébrica de grau n fosse necessário apenas a operação de extrair suas raízes. Galois determinou com toda generalidade as condições para que uma equação algébrica seja solúvel por radicais13. Para estabelecer sua teoria, introduziu o conceito de grupo das permutações das soluções, onde, para permutar elementos de um conjunto basta simplesmente combinar um modo de lhes dispor. Por exemplo, com três elementos distintos a,b,c é possível efetuar 6 permutações (PEREIRA DA SILVA, 1984). Na teoria de Galois estuda-se o que acontece a certas expressões formadas a partir das raízes da equação quando as raízes são permutadas. Galois encontrou, na teoria das permutações, a solução para o problema da resolução de equações. Dessa forma, deduziu todo um conjunto de propriedades que definem a percepção do conceito de grupo14, cuja estrutura é a que fundamenta a Álgebra, revelando assim, generalidade e fecundidade extraordinárias.

Da efêmera vida de Galois, há que se destacar, que antes mesmo de ingressar para o ensino superior, o mesmo já apresentava produção matemática,

13 A raiz da equação é qualquer número que a satisfaça e, conforme foi demonstrado por Gauss, o número

de raízes de uma equação algébrica é igual ao grau da equação (PEREIRA DA SILVA, 1984).

14 Seja G um conjunto munido de uma operação *. Diz-se que a operação * define uma estrutura de grupo

sobre o conjunto G ou que o conjunto G é um grupo em relação à operação * se, e somente se, são válidos os seguintes axiomas:

G1: quaisquer que sejam x, y, e z em G, tem-se (x*y) * z = x * (y * z) (propriedade associativa da operação *); G2: existe em G um elemento e tal que e*x = x = x * e (G2 nos garante a existência do elemento neutro); G3: para todo x em G existe um elemento x’ em G tal que x’ * x = e = x * x’ (G3 estabelece a existência do simétrico de cada elemento de G) (MONTEIRO, 1973, p. 154).

inclusive com publicação de artigo nos “Annales de Mathématiques Pures et Appliquées”. Longe de se tratar de um acontecimento isolado, esse episódio ilustra a existência de produção matemática à margem daquela produzida no ensino superior, no caso, concretizada por um aluno do Liceu Louis-le-Grand, candidato à École Polytéchnique. Vê-se dessa forma, como defende Belhoste, “as práticas de ensino agir sobre e interferir nas práticas de pesquisa” (1998, p. 298).

Para Patras, depois da divulgação das idéias de Galois, a Álgebra tomou um impulso formidável. Em suas obras já se encontra implícito o conceito de corpo, que viria a ser definido por Dedekind (1831-1916). Embora a noção de grupo comutativo15 estivesse implícita em certos trabalhos de Gauss, Lagrange ou Abel, Galois foi o primeiro a entrever o alcance do conceito de grupo, abrindo perspectivas e um novo horizonte de aplicabilidade, concebendo uma organização dos conceitos algébricos gerais, obtido por abstração a partir de situações familiares.

Depois de Galois, os matemáticos Grassmann (1809-1877), Cayley (1821- 1895) e Hamilton (1805-1865), destacaram-se por suas contribuições para o desenvolvimento da Álgebra, posto que, dentre outros, estes matemáticos foram fundadores da Álgebra Linear e Multilinear Moderna. Entretanto, Patras não se deteve nesses matemáticos e em suas contribuições, voltando seu olhar para a obra de Dedekind, justificando que a produção deste matemático marcou o início da escola algébrica alemã, cujo estudo, sob o ponto de vista Patras, revestiu-se de maior importância.

Contudo, em que pese o posicionamento de Patras, esta pesquisa, dedicou espaço para algumas considerações sobre a gênese dessas novas álgebras.

No documento APARECIDA RODRIGUES SILVA DUARTE (páginas 50-55)