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O papel do ensino na organização do meio matemático

No documento APARECIDA RODRIGUES SILVA DUARTE (páginas 35-40)

Os posicionamentos defendidos por Pestre (1996; 1998), Valente (2001a; 2003b) e Miguel (2004), explicitados neste estudo encontram-se, em boa medida, alinhados com as reflexões do historiador da matemática Bruno Belhoste manifestadas no artigo “Pour une réévaluation du role de l’enseignement dans l’histoire des mathématiques”, publicado na “Revue d’histoire des mathématiques”, 4, 1998; e reproduzido na revista Educação Matemática Pesquisa nº 1, vol. 4, 2002, do Programa de Estudos Pós-graduados em Educação Matemática da PUC/SP.

Para Belhoste, o ensino da matemática não se constitui somente numa fonte em que o historiador de matemática extrai uma documentação ou um cenário, e sim, também, num elemento por inteiro de sua problemática. Sob essa perspectiva, propõe uma nova reavaliação do papel do ensino na história da Matemática, abandonando o posicionamento simplista da maioria dos historiadores em considerar a comunicação, a transmissão e a vulgarização do saber matemático como uma atividade secundária e periférica, limitando-se a uma abordagem do ensino restrita a estudos institucionais, análises de cursos e de tratados didáticos, biografias de matemáticos, etc.

No entanto, para esse pesquisador francês, raramente os historiadores de matemática tratam este assunto dando toda a importância que lhe é merecida. Sob esta indiferença, esconde-se a falsa idéia de que a produção matemática é inteiramente independente das circunstâncias sociais de uma determinada época. A rigor, o desenvolvimento da ciência matemática está intimamente ligado ao próprio ensino da matemática.

Nessa linha de entendimento, defende o ponto de vista segundo o qual, de maneira geral, a maioria das atividades intelectuais encontra-se engajada em contextos específicos que determinam as condições de seu desenvolvimento. Conseqüentemente, o estudo da circulação dos textos e das atividades matemáticas no tempo e no espaço social e geográfico parece-lhe o centro do trabalho do historiador. Inclui assim, o ensino, pois este se caracteriza como parte integrante da atividade de produção/invenção do saber matemático. O ensino tem um papel decisivo não somente na difusão do saber e sua transmissão generalizada, mas também na constituição da matemática enquanto ciência. Os historiadores incorreriam em erro se ignorassem a influência do ensino da matemática na construção dessa ciência.

Na busca da origem da profissionalização do professor de matemática, Belhoste salienta que nas universidades medievais, o quadrivium, (aritmética, geometria, música e astronomia) ocupava lugar marginal, desconhecendo-se quem eram os profissionais que o ensinava aos alunos. Apesar de, no século XIV, os algarismos e o ábaco serem ensinados por uma comunidade de matemáticos e professores e de se constatar a existência de escolas onde a aritmética comercial era ensinada a futuros mercadores, é sobretudo no século XVI, que o ensino matemático desenvolve-se na Europa. Com a aparição de novas técnicas militares, em particular a artilharia, a fortificação e a cartografia, também com o desenvolvimento da marinha de guerra, suscitou-se uma forte demanda na formação de matemáticos. A necessidade de dominar e transmitir os conhecimentos matemáticos levou à criação de cadeiras de matemática nas universidades e nos colégios, muito embora a contribuição desses professores ao desenvolvimento da matemática tenha sido, em geral, modesta.

Belhoste ressalta que, os matemáticos criadores, aqueles a quem a história da matemática doou seu nome, foram em sua maioria, homens da corte ou de gabinete, a serviço de príncipes e depois integraram as instituições acadêmicas. A grande virada na emergência do estatuto do matemático profissional ocorre no período entre 1770 e 1820, época em que a pesquisa matemática foi implantada nas instituições de ensino. Então, uma nova figura emergiu, aquela do matemático professor, surgindo primeiramente na França e depois em toda a Europa. Duas razões fundamentais explicam, segundo Belhoste, esta

modificação: de um lado os Estados assumem a formação dos especialistas, em particular os especialistas militares, consagrando a Matemática como disciplina por excelência, promovendo gradativamente a integração dos mestres de matemática no sistema de formação de elites administrativas8; de outra parte, a introdução da matemática como elemento fundamental na formação intelectual e moral no ensino de nível secundário.

No século XVIII, na França, os candidatos à administração do corpo de artilharia, da engenharia e da marinha militar eram examinados por matemáticos membros da Academia de Ciências, o que propiciou a criação de preparatórios nos colégios de elite, abrindo carreiras para os professores de matemática. Em seguida, as escolas de engenheiros foram abertas, dando o primeiro lugar aos estudos da matemática. A mais ilustre era a l’École Militaire de Mézière, onde Gaspard Monge começou ao mesmo tempo sua carreira de professor e matemático. A l’École Polytechnique, fundada durante a revolução francesa, herdou a experiência acumulada nestas escolas. O ensino da matemática era assegurado por grandes matemáticos do momento: Lagrange, Monge, mais tarde Fourier, Poisson, Cauchy, Liouville e muitos outros. Desse modo, a maioria dos matemáticos franceses do século XIX foi formada na Escola Politécnica. Os engenheiros politécnicos eram predominantes (hegemônicos) na Academia de Ciências e nos altos estabelecimentos parisienses de ensino e de pesquisa, cabendo à escola normal formar os professores de liceus, ignorando as atividades de pesquisas, que ficavam a cargo dos politécnicos.

A dominação de politécnicos traduzia-se pelo controle que exerciam sobre o ensino da matemática no nível secundário e superior, tanto pela intermediação do exame de admissão da Escola Politécnica quanto diretamente pelo Conselho de Instrução Publica e a Inspeção Geral. Foi preciso esperar o desenvolvimento do ensino superior a partir do final do ano de 1870, para que a situação se transformasse progressivamente: os professores das novas universidades, formados na maior parte pela escola normal superior, se impõem progressivamente como os novos líderes do meio matemático, tanto no ensino como na pesquisa, enquanto recua a influência dos politécnicos (BELHOSTE, 1998, p. 294).

Prosseguindo em seus comentários sobre o papel dos estabelecimentos de ensino na organização do meio matemático, o autor observa que não somente as relações institucionais entre ensino e pesquisa evoluíram consideravelmente entre o início do século XIX até hoje, como também esta situação se diferencia, conforme os países e os estabelecimentos. Nos primeiros anos de fundação da Escola Politécnica, o ensino e a pesquisa encontravam-se associados organicamente. Lagrange e Monge ao mesmo tempo em que davam suas lições aos alunos mais avançados, apresentaram trabalhos e resultados inéditos, o primeiro sobre a teoria das funções analíticas, o segundo sobre a geometria infinitesimal. Além disso, os próprios alunos eram convidados a fazer pesquisas originais, produzindo estudos avançados.

A princípio, a Escola Politécnica era um centro de ensino e pesquisa, porém, aos poucos, perde essa característica, deixando de lado a preocupação com a pesquisa, priorizando um ensino técnico. As lições passaram a obedecer estritamente os programas definidos com antecedência.

Nas universidades alemãs, em compensação, a pesquisa era considerada como uma atividade normal de professores e estudantes mais avançados, engajados na preparação de um doutorado. Também se desenvolveram no século XIX as tradições de pesquisa em cada universidade, onde apareceram matemáticos notáveis: Jacobi em Konigsberg; Weierstrass, Kummer e Kronecker em Berlim; Gauss, Dirichlet, Riemman e Clebsch em Gottingen. Felix Klein, no final do século, leva o modelo ao seu apogeu fazendo de Gottingen um centro de ensino e pesquisa de renome internacional.

Discutindo sobre a contribuição que as atividades didático-pedagógicas oferecem ao desenvolvimento das práticas matemáticas, Belhoste cita como exemplo, as práticas relativas à preparação das aulas. O ponto que interessa a esse historiador diz respeito principalmente à especificidade da aula magistral como atividade matemática e o que ela implica para o trabalho de pesquisa.

Segundo Belhoste, em geral, o objetivo de um curso é apresentar, do ponto de vista didático, os resultados já alcançados na teoria, consistindo em colocar em ordem, clarificar e simplificar esses resultados, ao invés de realizar um

trabalho criativo. No entanto, esse trabalho pode chegar, às vezes, à invenção de novos conceitos, de novos métodos, de novas teorias, e sobretudo, contribuir poderosamente com a organização do saber matemático. Isso exige do professor escolher quais os conhecimentos pré-requeridos, quais os essenciais dentre esses resultados, quais aqueles que são acessórios, aqueles que bastam reutilizar em exercícios de aplicação. Estas escolhas implicam, com efeito, não somente numa opinião sobre o valor didático de tal ou qual modo de exposição, mas também, em uma visão da natureza e da estrutura do saber matemático. Não raro, anotações de aulas tornaram-se livros-texto, em que novos elementos foram introduzidos à teoria, a partir do modo de exposição realizada pelo professor, por meio de seu ensino magistral, conclui Belhoste.

A preparação das aulas é em geral uma atividade solitária, mas sua redação é freqüentemente coletiva: não somente os professores podem considerar as observações de seu auditório, mas acontece do professor deixar para um aluno a redação da publicação, segundo uma prática universitária comum admitida. Esta colaboração entre professores e alunos na redação das lições ilustra a dimensão coletiva da atividade didática. Em que medida esta prática de trabalho passou do ensino para a pesquisa? Responder esta pergunta contribui, alega Belhoste, para a melhor compreensão da gênese e do funcionamento das escolas de matemática do séc. XIX e XX. Em sua origem, exemplifica Belhoste, os seminários matemáticos nas universidades alemãs funcionavam como uma preparação ao ensino secundário: sob a direção do professor, os estudantes apresentavam as lições e se criticavam mutuamente. Mas os assuntos não se limitavam às questões ensinadas no secundário. Os estudantes deviam também apresentar trabalhos pessoais. O seminário pedagógico tornou-se dessa maneira, ao mesmo tempo, um seminário de pesquisa. Jacobi, em colaboração com Franz Neumann, criam o primeiro seminário de Matemática e Física na Universidade de Köningsberg em 1835. O modelo se difunde progressivamente para as outras universidades alemãs, como Friburgo, Göttingen, Munique, Breslau, Heidelberg, Tübingen, Giessen, Berlim, etc. São esses seminários que dão corpo as diferentes escolas de pesquisa que caracterizam a atividade matemática na Alemanha no séc. XIX.

Nos temas abordados por Belhoste, o ensino ganha fundamental importância para a História da Matemática delimitando vasto campo de investigação, “que ultrapassa a história da matemática stricto sensu para tocar a história das culturas profissionais e das culturas científicas” (BELHOSTE, 1998, p. 302). Há que se levar em conta, enfatiza ainda Belhoste, que matemáticos de modo geral, são em sua maioria, professores, cujas atividades se dão em nível escolar universitário. Por essa razão, a sociedade atribui à Matemática o status de disciplina do ensino e ao profissional da área, o matemático, como uma figura vinculada ao ensino, muito embora, na visão do próprio matemático, ensinar matemática não é suficiente para ser digno dessa designação. Seria preciso, então, produzir matemática, de modo a contribuir para o avanço da ciência.

As análises realizadas por Belhoste, a nosso ver, revestem-se de fundamental importância para a compreensão do processo de profissionalização do professor de Matemática, posto que permitem refletir sobre o ensino e as práticas do fazer matemático e defendem uma nova reavaliação do papel do ensino na História da Matemática.

No documento APARECIDA RODRIGUES SILVA DUARTE (páginas 35-40)