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2. Classificação e Saúde Global: a Família de Classificação da Organização Mundial da Saúde em foco

2.1 As primeiras formas de classificar: breve histórico

As primeiras tentativas de classificar doenças e causas de mortes remontam ao século 17, uma vez que as paróquias inglesas já realizavam registros de atos religiosos como batismos, casamentos e enterros. Segundo Laurenti e Buchalla (1999), em 1597 por ato da Rainha Elizabeth I, as descrições desses registros deveriam ser enviadas anualmente a um órgão central, uma vez que esse período foi marcado pela ocorrência de uma série de pestes e uma das determinações da Coroa foi acrescentar aos registros a causa da morte, a fim de identificar se a morte havia sido decorrente ou não das pestes que assolavam a sociedade naquele período. Podemos notar aqui um dos primeiros usos da estatística para fins de vigilância e demarcar que classificações somente com causas de morte foram utilizadas durante muito tempo até chegar a classificações de doença e incluir fatores que influenciam o estado de saúde (OMS, 2022).

Percorrendo um pouco a história, o inglês John Graunt13 tentou estimar, em estudo publicado em 1662, a proporção de nascidos vivos que morreram antes de completar seis anos de idade, utilizando os dados das paróquias. Ele reuniu todas as mortes classificadas usando termos da época, como sapinhos, convulsões, raquitismo, dentes e vermes, abortivos, crescimento do fígado e acrescentou a eles metade das mortes classificadas como varíola, varíola suína, sarampo e vermes sem convulsões. Apesar da crueza dessa classificação, sua estimativa de 36% de mortalidade antes dos seis anos parece, a partir de evidências posteriores, ter sido boa (OMS, 2022).

Na esteira do tempo, William Farr, médico estatístico contratado para lidar com dados de registro vital do Censo do Reino Unido de 1841, problematizou sobre a importância da nomenclatura estatística uniforme e defendeu o princípio de classificação de doenças por etiologia14 seguida da localização anatômica. Seus

13 John Graunt era um cidadão londrino que trabalhava em uma loja como camiseiro e sua obra é citada em todos os livros de epidemiologia e de estatísticas de saúde, pois é considerado o "pai da epidemiologia" (LAURENTI; BUCHALLA, 1999).

14 Ramo do conhecimento cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e origens de um determinado fenômeno.

estudos foram base para debates e orientações do Congresso Internacional de Estatística, sendo o primeiro realizado em Bruxelas em 1853 (OMS, 2021).

William Farr teve um importante papel na análise estatística de mortalidade e sua contribuição foi determinante na criação de uma classificação de doenças de uso internacional. Laurenti e Buchalla (1999) fazem menção a uma carta em que ele sugere que as doenças são mais facilmente preveníveis do que curadas, que o primeiro passo para sua prevenção é a descoberta de suas causas e que as causas de morte são fatos científicos admissíveis a partir de análises numéricas.

Os autores chamam atenção para a observação que persiste até os dias de hoje:

causas de mortes são registradas pela manifestação ou complicação das causas básicas e a causa principal é omitida ou registrada em local errado, ou seja, as complicações têm sido registradas em lugar da doença primária.

As análises e debates com relação à padronização de uma lista de causas de mortes seguiram nos Congressos de Estatísticas dos anos seguintes. A organização do Congresso solicitou à William Farr e Genevan Marc d'Espine a preparação de uma classificação uniforme de aplicação internacional das causas de morte. Assim, eles apresentaram duas listas separadas que se baseavam em princípios muito distintos. A classificação de Farr foi organizada em cinco grupos:

doenças epidêmicas, doenças constitucionais (gerais), doenças locais organizadas de acordo com a localização anatômica, doenças do desenvolvimento e doenças que são o resultado direto da violência. D'Espine classificou as doenças de acordo com a sua natureza (gotosas, herpéticas, hemáticas, etc.). O Congresso adotou uma lista de compromisso de 139 rubricas e no congresso seguinte (1864) essa lista foi revisada com base no modelo de Farr. Pela primeira vez, houve recomendação internacional para que cada país solicitasse informações sobre as causas das mortes ao médico que realizou o atendimento e que se garantisse que essas informações fossem devidamente verificadas. Essa lista foi revisada em 1874, 1880 e 1886 (OMS, 2022).

Em 1891, em Viena, o recém-criado Instituto Internacional de Estatística, que se tornou o sucessor dos Congressos Internacionais de Estatísticas, encarregou Jacques Bertillon de presidir uma comissão que ficaria responsável por apresentar

uma nova lista de classificação de causas de mortes. Após discussões e revisões, chegou-se, em 1893, à chamada "Lista Internacional de causas de mortes de Bertillon”, apresentada em Chicago.

No ano de 1900 aconteceu, em Paris, a primeira Conferência Internacional para a Revisão de Bertillon ou Lista Internacional de Causas de Morte. Delegados de 26 países participaram desta Conferência. Uma classificação detalhada das causas de morte, consistindo de 179 grupos, e uma classificação abreviada de 35 grupos foi adotada. A segunda revisão ocorreu em 1909, com sugestão de revisão a cada dez anos.

O governo da França convocou conferências sucessivas em 1920 (3ª revisão), 1929 (4ª revisão) e 1938 (5ª revisão) e a partir da sexta revisão a Organização Mundial de Saúde (OMS) passou a ser responsável pela elaboração, publicação e divulgação dos relatórios contendo as devidas revisões, bem como das revisões da classificação de doenças e causas de mortes devidamente atualizadas (LAURENTI; BUCHALLA, 1999).

Foi a partir da sexta revisão que a classificação passou a conter estatísticas de doenças e motivos de consultas por problemas de saúde, pois até então havia somente a classificação de causas de mortes. Assim, a Sexta Conferência Decenal de Revisão marcou o início de uma nova era nas estatísticas vitais e de saúde internacionais: além de aprovar uma lista abrangente de mortalidade e morbidade e concordar com as regras internacionais para a seleção da causa básica de morte, recomendou a adoção de um programa abrangente de cooperação internacional no campo das estatísticas vitais e de saúde. Um item importante desse programa foi a recomendação de os governos estabelecerem comitês nacionais de estatísticas vitais e de saúde para coordenar as atividades estatísticas no país e servir de elo entre as instituições estatísticas nacionais e a Organização Mundial da Saúde (OMS-GUIA, 2022).

A sétima revisão da CID, já sob a organização da OMS, ocorreu em fevereiro de 1955 em Paris e foi limitada a mudanças essenciais e emendas de erros e inconsistências. Já a oitava revisão, que ocorreu em Genebra em 1965, alterou pontos, mas manteve a estrutura básica da classificação e a filosofia geral de

classificação das doenças, sempre que possível, de acordo com sua etiologia e não com uma manifestação particular. A nona revisão se deu novamente em Genebra em 1975 e, de acordo com as discussões que antecederam a conferência, a intenção original era que houvesse poucas mudanças além da atualização da classificação, uma vez que havia custos e despesas de adaptação dos sistemas de processamento de dados cada vez que a classificação era revisada. Houve o crescimento do interesse pela CID e foi necessário encontrar maneiras de responder a essa demanda, em parte modificando a própria classificação e em parte introduzindo disposições especiais de codificação (OMS-GUIA, 2022).

Ao chegar à décima revisão, segundo a OMS (2022), notou-se que o intervalo de dez anos estabelecido entre as revisões não seria suficiente, assim o trabalho de revisão precisou iniciar antes que a versão atual da CID estivesse em uso por tempo suficiente para ser avaliada, principalmente porque a necessidade de consultar tantos países e organizações tornava o processo muito demorado.

Dessa forma, a Décima Conferência de Revisão foi adiada de 1985 para 1989.

As análises e pesquisas para essa revisão foram extensas, pois o desafio era buscar atender a uma ampla variedade de necessidades de mortalidade e dados de saúde e, ainda, estabilizar o sistema de codificação para minimizar interrupções em revisões sucessivas, bem como a possibilidade de proporcionar um melhor equilíbrio entre o conteúdo dos diferentes capítulos da CID. A principal inovação foi o uso de um esquema de codificação alfanumérico de uma letra seguida por três números no nível de quatro caracteres, o que levou a aumentar consideravelmente (mais que dobrar) o tamanho do quadro de codificação em comparação à nona revisão e permitiu que a grande maioria dos capítulos recebesse uma única letra ou grupo de letras, cada um capaz de fornecer 100 categorias de três caracteres.

Podemos notar no Quadro 1 a evolução:

Quadro 1. Evolução cronológica CID - Linha do Tempo

Ano Documento Observação

1891 Classificação de Bertillon das Causas de

Morte Elaborado pelo International

Statistical Institute 1900 Bertillon / Lista Internacional de Causas

de Morte Primeira Conferência Internacional

para Revisão da Lista de Causas de Morte

1910 Lista Internacional de Causas de Morte 179 títulos, chamada para revisão a cada 10 anos

1920 Lista Internacional de Causas de Morte

1929 Lista Internacional de Causas de Morte Elaborado em conjunto pelo

Instituto Internacional de Estatística e organização de Saúde da Liga das Nações

1938 Lista Internacional de Causas de Morte 200 títulos, acréscimos a infecciosos e parasitários

1948 Classificação Internacional de Doenças,

Lesões e Causas de Morte Reconhecimento de classificação de doença e lesão, além de causas de morte

1955 Classificação Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Morte

1965 Classificação Internacional de Doenças, Lesões e Causas de Morte

1975 Classificação Internacional de Doenças,

Lesões e Causas de Morte Julgamento do suplemento sobre Deficiências e Deficiências e Procedimentos em Medicina 1989 Classificação Estatística Internacional de

Doenças e Problemas Relacionados à Saúde

Introdução do esquema de

codificação alfanumérica, distúrbios pós-procedimento; atualizações provisórias regulares

2018 Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde

Pós-coordenação (codificação de cluster); adição de Medicina

Tradicional, codificação de eventos adversos

Fonte: OMS

Na transição da nona para a décima revisão, mesmo com uma nova estrutura, estava claro que uma classificação não poderia lidar com tantas requisições, por consequência foi desenvolvido o conceito de “família” de classificações, que incluiria a CID para estatísticas tradicionais de mortalidade e morbidade, enquanto as necessidades de estatísticas mais detalhadas, classificações menos detalhadas ou diferentes e questões associadas seriam tratadas por outros membros da família, que veremos nos próximos itens. Para tanto, é necessário entender um pouco mais sobre a organização que desenvolve as classificações e sua atuação na saúde global.