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1. A contradição capital trabalho: análise da questão social e das determinações sociais da saúde

1.3 Determinantes x determinação social da saúde

os projetos societários que vão de encontro aos “interesses das classes trabalhadoras e subalternas que sempre dispõem de condições menos favoráveis para enfrentar os projetos das classes proprietárias e politicamente dominantes”

(NETTO, 2006, p. 143).

Com o movimento de ruptura do Serviço Social foi possível repercutir projetos societários que defendiam o interesse da classe trabalhadora, algo inédito na categoria, mas que envolveu e, ainda envolve, disputas no campo ideológico da profissão. Dessa forma, a profissão, por meio de seu projeto profissional, elegeu os valores que a legitimam socialmente e a sua autoimagem, estabelecendo a liberdade como valor central e incorporando outros projetos societários que comungam com seus ideais, como é o caso do movimento de Reforma Sanitária.

O movimento de Reforma Sanitária não tratou apenas da implantação do Sistema Único de Saúde, mas de um projeto societário centrado na democratização da saúde, na democratização do Estado e na democratização da sociedade, o que pode ser analisado a partir de momentos distintos, como um ciclo: ideia - proposta - projeto - movimento - processo (ESCOREL, 2014).

Suas ideias se encontram com a proposição do enfrentamento ao “Dilema Preventivista”9, tese defendida por Sérgio Arouca, bem como pela criação do

9 Sérgio Arouca, em sua tese em 1975, examinou como foram produzidas as regras da formação

discursiva da medicina preventiva e as relações com instâncias não discursivas, estudando as articulações com o modo de produção capitalista, a fim de compreender a simultaneidade e a contradição medicina preventiva x medicina curativa. “Sobretudo, partiu do princípio de que o modo de exercer a medicina decorre de uma determinação histórico-social e, se a medicina preventiva tinha por projeto uma nova determinação, o estudo desse projeto corresponderia a conhecer as contradições da própria sociedade expressas em um campo específico de sua análise, a medicina. Para tanto, Arouca estudou o discurso preventivista através da metodologia arqueológica proposta por Foucault, para uma aproximação com o materialismo histórico e a teoria do valor em Marx. Para o entendimento dessas contradições, Arouca abordou a estrutura social de emergência da medicina preventiva, defendendo que ela não se constituiu em um novo conhecimento a partir da higiene, mas como crítica à prática médica centrada na medicina curativa, correspondendo à singularidade de um determinado contexto histórico. Articulando cuidado médico e modo de produção capitalista, Arouca chegou à centralidade de sua tese, evidenciando a contradição fundamental da medicina: ter como objeto valores vitais - que, para os seres humanos, são valores de uso - transformados em valores de troca pela dinâmica do modo de produção capitalista. Essa apreensão possibilitou ao autor a construção da categoria ‘dilema preventivista’, evidenciando que a medicina preventiva não escapou à contradição da própria medicina. Portanto, mesmo apresentando-se como um projeto de mudança da prática médica, a introdução das medidas preventivistas ao cuidado médico ficou limitada a uma leitura liberal da

Centro Brasileiro de Estudos em Saúde (Cebes) e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em 1976 e 1979 respectivamente. Lembrando que a emergência do movimento de democratização da saúde, ou “movimento sanitário” ou “movimento da Reforma Sanitária” ocorreu no período da ditadura no país e sua proposta foi resultante de um longo movimento da sociedade civil brasileira em defesa da democracia, dos direitos sociais e de um novo sistema de saúde, transformando-se em projeto a partir da 8ª Conferência Nacional de Saúde (PAIM, 2010).

De acordo com Paim (2010), que possui importantes estudos sobre a temática, a Reforma Sanitária Brasileira (RSB) pode ser definida como uma reforma social centrada nos seguintes elementos constituintes:

a) democratização da saúde: implica a elevação da consciência sanitária10 sobre saúde e seus determinantes e o reconhecimento do direito à saúde, inerente à cidadania, garantindo o acesso universal e igualitário ao Sistema Único de Saúde e participação social no estabelecimento de políticas e na gestão

b) democratização do Estado e seus aparelhos, respeitando o pacto federativo, assegurando a descentralização do processo decisório e o controle social, bem como fomentando a ética e a transparência nos governos;

c) democratização da sociedade alcançando os espaços da organização econômica e da cultura, seja na produção e distribuição justa da riqueza e do saber, seja na adoção de uma “totalidade de mudanças”, em torno de um conjunto de políticas públicas e práticas de saúde, seja mediante uma reforma intelectual e moral (PAIM, 2010, p. 173).

Em sua análise, Paim (2010) destaca a influência do pensamento marxista no balizamento teórico e programático da Reforma Sanitária e aponta a crítica do movimento ao modelo biomédico, a partir do conceito de determinação, destacando a importância da concepção gramsciana do Estado ampliado como fundamento para a intervenção social organizada.

medicina, constituindo-se, então, em um espaço conservador e funcional ao capitalismo” (COSTA;

MISOCZKY; ABDALA, 2018, p. 991).

10 Consciência sanitária é conceito formulado por Giovanni Berlinguer (1978): a ação individual e coletiva para alcançar a saúde como um direito da pessoa e um interesse da comunidade (ESCOREL, 2014).

Com a crítica ao modelo tradicional de medicina (que não era capaz de formular respostas adequadas aos dilemas da população, em especial à classe trabalhadora) e com o entendimento de que a saúde e a doença na coletividade não podem ser explicadas exclusivamente pelas dimensões biológica e ecológica, as análises e intervenções sobre a realidade e a forma de entender o processo saúde-doença passaram a ser questionados. Nesse sentido, a produção teórica desenvolvida pela medicina social latino-americana passou a ser uma corrente de pensamento de contestação crítica ao pensamento de saúde pública dominante, colocando em xeque a “velha Saúde Pública” (PAIM, 2010).

Para Laurell (1982), o estudo do processo saúde-doença como um processo social não se refere somente a uma exploração de seu caráter, mas coloca, de imediato, o problema de sua articulação com outros processos sociais, o que nos remete inevitavelmente ao problema de suas determinações. Laurell (1982) dialoga com Breilh (1977) ao elegerem a classe social e o processo de trabalho como categorias sociais, adotadas do materialismo histórico, que permitem desenvolver, aprofundar e enriquecer a compreensão da problemática da essência do processo doença e sua determinação. Pois o processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem se apropria da natureza e, em dado momento, a apropriação se realiza por meio de processo de trabalho baseado em determinado desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção.

Segundo Breilh (1977), os processos de saúde-doença têm sua determinação na dialética da totalidade, assim, a causalidade constitui uma das possibilidades da determinação, mas não a única e específica, já que as mediações são processos necessários para que a determinação se especifique, dessa forma o autor critica as investigações epidemiológicas tradicionais,

[...] que buscam conexões entre variáveis isoladas sob o princípio da causalidade, atuando ao nível dos processos singulares, portanto, operando apenas no âmbito do aparente, da realidade fenomênica e reconhecendo apenas as leis causais. É possível compreender que a determinação social se explica através da inter-relação entre as distintas dimensões constitutivas do processo, e que para entendê-lo é preciso uma forma de estudo que considere o todo presente nas partes que, por sua vez, ainda que tenham sua própria história, esta somente se dá dentro do

movimento do todo. O contrário – ou seja, as análises restritas ao âmbito fenomênico, como é o caso da epidemiologia convencional que utiliza em seus estudos apenas o nível empírico-descritivo dos aspectos observáveis e quantificáveis – resulta em formas parciais de conhecimento da realidade (MOREIRA, 2013, p. 73).

Mesmo após a medicina social latino-americana introduzir novos conceitos e novas formas de intervenção para além do tripé prevenir/diagnosticar/curar e subsidiar no Brasil o debate em torno do conceito de Saúde Coletiva, a ênfase no componente sistema de serviços de saúde deixou em segundo plano a intervenção sobre o estado de saúde da população e a teoria da determinação ou da produção social do fenômeno saúde/doença. Foi somente a partir da criação da Comissão Nacional de Determinantes Sociais de Saúde (CNDSS), em março de 2006, que as investigações sobre essa temática retornaram (PAIM, 2010).

É possível observar que até o momento trabalhamos com a concepção de determinação social da saúde, contudo, há um debate sobre a diferença entre determinação social da saúde e determinantes sociais da saúde, sendo este último o conceito adotado pela Comissão de Determinantes Sociais (CDSS) da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2005.

O Brasil foi o primeiro país a lançar sua própria comissão após a criação da CDSS, todavia o país utilizou como referência para o debate sobre as iniquidades em saúde o modelo de Dahlgren e Whitehead (1991), sob a justificativa de simplicidade e visualização gráfica. Os determinantes sociais em saúde (DSS) ficam dispostos em diferentes camadas, segundo seu nível de abrangência, desde uma camada mais próxima aos determinantes individuais até uma camada distal onde se situam os macros determinantes, conforme figura a seguir (CNDSS, 2008).

Figura 1. Modelo de determinantes sociais da saúde proposto por Dahlgren e Whitehead (1991)

Fonte: CNDSS (2008).

O modelo apresenta uma forma de “hierarquização social” ou de influência em camadas, partindo das características individuais como idade, sexo e fatores hereditários, passando para a camada seguinte representada pelo estilo de vida dos indivíduos, seguindo para a camada de redes sociais e comunitárias e chegando na última camada de condições socioeconômicas, culturais e ambientais gerais. Nessa proposta distal a posição que a pessoa ocupa é determinante para sua condição de saúde e se aproxima da noção de determinantes estruturais11 das iniquidades em saúde proposta pela CDSS da OMS.

Posteriormente, em 2010, esse modelo foi reformulado por Solar e Irwin e sua nova proposta foi adotada pela OMS na Conferência Mundial sobre os Determinantes Sociais da Saúde em 2011. Solar e Irwin propõem um conjunto de

11 Para a CDSS existem dois tipos de Determinantes Sociais da Saúde: os determinantes estruturais e os determinantes intermediários. Os determinantes estruturais terão impacto na equidade em saúde e no bem-estar através da sua ação sobre os determinantes intermediários. Daí a diferenciação entre ‘determinantes estruturais das iniquidades em saúde’ e ‘determinantes intermediários da saúde’, que em conjunto constituem os ‘Determinantes Sociais da Saúde’ na proposta da CDSS, que veio a se consolidar principalmente no marco conceitual e no relatório final (BORDE, HERNÁNDEZ-ÁLVAREZ PORTO, 2015).

determinantes intermediários como operadores dos determinantes estruturais, conforme modelo abaixo.

Figura 2. Determinantes Sociais da Saúde segundo a CDSS da OMS

Fonte: Solar; Irwin (2010).

Entendemos que o modelo proposto por Solar e Irwin (2010) constituiu um avanço se comparado com o modelo de Dahlgren e Whitehead e que os autores assumem as dimensões do geral, do particular e do singular, contudo, converte-se em níveis de variáveis ou fatores causais, montando um modelo para trabalhar uma governança limitada e funcional, que recai sobre os vícios e limitações interpretativas do causalismo (BREILH, 2013).

A proposta da CDSS, neste sentido, se concentra no que produz a sociedade em termos de desigualdades e reduz a margem de compreensão e de denúncia aos fatores mensuráveis e claramente visíveis, esperando que isso, por si só, seja suficiente para reverter o problema. Ou seja, não propõe uma análise compreensiva das relações de poder e dos padrões de exploração, dominação e marginalização que subjazem as hierarquias sociais. Classe social, etnia e gênero não aparecem como categorias analíticas da matriz de dominação que tem sustentado a consolidação e expansão do sistema-mundo capitalista moderno/ colonial (GARBOIS; SODRÉ; DALBELLO-ARAÚJO, 2017, p. 846).

O conceito de determinantes sociais da saúde não é capaz de superar a noção de causalidade e apresenta a ideia de eventos relacionados a fatores, reduzindo a realidade social, dessa forma, camufla as relações de produção e reprodução social e, nesse movimento, acaba por ocultar a raiz comum dos processos, que é a acumulação capitalista e sua contradição no modo de produção pautado na exploração e na manutenção da sociedade de classes.

Portanto, há importantes diferenças de conceitos entre determinantes sociais da saúde e o conceito de determinação social da saúde, que vão para além da grafia.

Assim, ao evidenciar essa distinção seguimos com a concepção de determinação social da saúde.

Os descritores12 do Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde (BIREME) descreve o conceito de determinação social da saúde como:

Esquema teórico que permanece como uma constante de identificação paradigmática associada à noção de que os fenômenos da saúde e da doença são biológicos e sociais, além do fato de que, para compreender as condições de saúde das populações, é necessário compreender as dinâmicas e os processos que estruturam as sociedades humanas. A ideia de determinação social da saúde pressupõe, portanto, a discussão sobre as relações entre o indivíduo e a sociedade (e a própria natureza da sociedade), mas, de certa forma, a transcende ao colocar como central a questão da história dos processos e da forma como os fenômenos se desenrolam (BIREME, 2022, s/p).

Destacamos que a fundamentação da determinação social da saúde partilha dos mesmos pressupostos da teoria da questão social, pois ambas partem do materialismo histórico-dialético e buscam entender a sociedade a partir da concepção de totalidade e de seu caráter não linear e contraditório. Para Leal e Castro e Castro (2021) a noção de determinação social do processo

12 O vocabulário estruturado e multilíngue DeCS – Descritores em Ciências da Saúde foi criado pela BIREME para servir como uma linguagem única na indexação de artigos de revistas científicas, livros, anais de congressos, relatórios técnicos, e outros tipos de materiais, assim como para ser usado na pesquisa e recuperação de assuntos da literatura científica nas fontes de informação disponíveis na Biblioteca Virtual em Saúde (BVS) como LILACS, MEDLINE e outras. Os conceitos que compõem o DeCS são organizados em uma estrutura hierárquica permitindo a execução de pesquisa em termos mais amplos ou mais específicos ou todos os termos que pertençam a uma mesma estrutura hierárquica (BIREME, 2022).

saúde/doença, explicita a relação entre o modo de produção capitalista e a configuração da sociedade, entre a objetividade e a subjetividade. Dessa forma trouxemos nos itens anteriores a base de sustentação dessa forma de produzir, o cerne da questão social, bem como seus rebatimentos na vida dos sujeitos sociais.

Assim, avaliamos que trabalhar com ambas as categorias não é eclético, mas que se trata de movimentos de projetos profissionais e societários que se comungam.

2. Classificação e Saúde Global: a Família de Classificação da Organização