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1. A contradição capital trabalho: análise da questão social e das determinações sociais da saúde

1.1 Gênese da questão social

Os processos que influenciam o estado de saúde, que fazem parte deste estudo, estão ligados diretamente à ausência de condições dignas de sobrevivência, que tem sua raiz no processo de acumulação capitalista, expressa na contradição capital x trabalho. Acompanhar a relação entre o estágio da acumulação de capital e as formas de exploração do trabalho é imprescindível para compreendermos e identificarmos as diversas formas com que a desigualdade social se apresenta.

Segundo Iamamoto (2021), o processo de acumulação capitalista produz uma população relativamente dispensável (exército industrial de reserva ou superpopulação relativa) e subsidiária às necessidades médias de seu aproveitamento pelo capital. Com a acumulação, há maior extração da quantidade de trabalho de uma parcela menor de trabalhadores, via ampliação da jornada e intensificação do trabalho, fazendo com que o trabalho excedente dos segmentos ocupados (produção de mais-valia) condene à ociosidade, socialmente forçada, amplos contingentes de trabalhadores aptos ao trabalho, porém impedidos de trabalhar. Esse mecanismo acirra a concorrência entre os trabalhadores, com evidente interferência na regulação dos salários e condições de vida.

O impedimento ao trabalho, de acordo com Iamamoto (2021), diz respeito à distribuição dos meios de produção, portanto a pobreza não é apenas compreendida como resultado da distribuição de renda, mas referida à própria produção, ou seja, o não acesso aos meios de produção centraliza o poder nas mãos de quem o detém. Como a capacidade de trabalho é mera potência, o indivíduo só pode realizá-la se encontra lugar no mercado de trabalho, quando demandado pelos empregadores capitalistas. Assim, o trabalhador é dotado de capacidade de trabalho, mas é alijado das condições necessárias à sua realização objetiva na criação de seus meios de sobrevivência.

Desse modo, o trabalhador se aliena do trabalho que, diante das relações de produção capitalistas, se esvazia de sua essência de satisfação imediata das

necessidades materiais para aparecer como meio gerador de valores de troca (dinheiro) a fim de garantir a reprodução da força de trabalho. Sendo assim, não somente os produtos do trabalho, mas o próprio trabalho se converte em mercadoria sob a égide do capitalismo. De acordo com Marx (2011), em Os Grundrisse:

O materialismo tosco dos economistas, de considerar como qualidades naturais das coisas as relações sociais de produção dos seres humanos e as determinações que as coisas recebem, enquanto subsumidas a tais relações, é um idealismo igualmente tosco, um fetichismo que atribui às coisas relações sociais como determinações que lhes são imanentes e, assim, as mistifica (MARX, 2011, p. 575).

Para além da produção de mercadoria, cabe mencionar que o processo de acumulação necessita de trabalho não pago, pois o trabalhador não deixa de trabalhar quando produz o valor correspondente ao pagamento da sua força de trabalho, pelo contrário. Marx (2013) em O Capital, observa:

A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, mas essencialmente produção de mais-valor. O trabalhador produz não para si, mas para o capital. Não basta, por isso, que ele produza em geral. Ele tem que produzir mais-valor. Só é produtivo o trabalhador que produz mais-valor para o capitalista ou serve a autovalorização do capital (MARX, 2013, p. 578).

Temos como resultado do processo de acumulação do capital a subsunção do trabalho pelo capital e, por conseguinte, a desigualdade social, o crescimento da pauperização absoluta e relativa do proletariado e a luta de classes, resultando nas expressões da questão social. A questão social, nessa perspectiva, é expressão das contradições inerentes ao capitalismo (BEHRING; SANTOS, 2009).

Dessa forma, a questão social tem sua gênese no caráter coletivo da produção, contraposta à apropriação privada da própria atividade humana, ou seja o trabalho, das suas condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. A questão social expressa disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade civil e o poder estatal (IAMAMOTO, 2021).

Suas manifestações não são estanques e, por isso, devemos estar atentos ao movimento societário, uma vez que a dinâmica societária capitalista não apenas repõe suas formas de exploração, como instaura expressões humanas diferenciadas e mais complexas, o que intensifica a exploração. Isso não quer dizer que exista uma “nova questão social”, mas que para além das tradicionais questões da questão social, emergem novas formas de manifestações da “velha”

questão social fundamentada essencialmente na contradição entre capital e trabalho, o que, por sua vez, produz mazelas sociais inexoráveis ao modo de produção capitalista (NETTO, 1992; PASTORINI, 2010).

Para Netto (1992), dado o caráter universal e globalizado da Lei Geral da Acumulação Capitalista3, cabe considerar a complexa totalidade dos sistemas de mediações em que ela se realiza, observando as particularidades culturais, geopolíticas e nacionais que requerem determinação concreta. Ou seja, a caracterização da questão social, em suas manifestações já conhecidas e em suas novas expressões, tem de considerar as particularidades histórico-culturais e nacionais.

Outro elemento importante a ser observado e que compõe o cenário é a atuação do Estado. À medida que o capitalismo vai se desenvolvendo, muda a empresa, muda o mercado, muda o processo de produção, a gestão do trabalho

3 Segundo Marx (2013), em O capital: “A lei segundo a qual uma massa cada vez maior de meios de produção, graças ao progresso da produtividade do trabalho social, pode ser posta em movimento com um dispêndio progressivamente decrescente de força humana, é expressa no terreno capitalista [...] da seguinte maneira: quanto maior a força produtiva do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre seus meios de ocupação, e tanto mais precária, portanto, a condição de existência do assalariado, que consiste na venda da própria força com vistas ao aumento da riqueza alheia ou à autovalorização do capital. Em sentido capitalista, portanto, o crescimento dos meios de produção e da produtividade do trabalho num ritmo mais acelerado do que o da população produtiva se expressa invertidamente no fato de que a população trabalhadora sempre cresce mais rapidamente do que a necessidade de valorização do capital”

(MARX, 2013, p. 720). Essa relação, portanto, forma uma unidade de contrários que expressa a dualidade entre o desenvolvimento do capital ao mesmo passo que edifica mazelas e catalisadores das crises econômicas. De acordo com Iasi (2017, p. 65): “Como o valor é determinado pela quantidade de trabalho humano abstrato socialmente necessário, o valor só pode ser produzido pelo consumo da força de trabalho. O aumento permanente dos investimentos em capital constante (máquinas, matérias-primas, instalações etc.), proporcionalmente maior do que o capital invertido em capital variável (força de trabalho), leva a uma queda tendencial da taxa de lucro. [...] O resultado dessa tendência não é apenas a persistente polarização entre miséria e riqueza resultante da acumulação privada da riqueza socialmente produzida, mas também a base para explicação marxiana da crise” (IASI, 2017, p. 65).

e, principalmente, os mecanismos mediante os quais o Estado cumpre o seu papel de “comitê para gerir os negócios comuns de interesse da burguesia”. Não muda a função do Estado, mas as formas usadas por esse também são históricas. São estruturas distintas, com roupagens distintas de toda a superestrutura jurídico-política, contudo, em essência, a finalidade do Estado em suas mais diferentes formas sob a estrutura capitalista é sempre a de mantenedor das condições econômicas propícias à acumulação e centralização de capitais (MARX; ENGELS, 2014; TAVARES, 2009). De acordo com Alcantara Filho (2018, p. 201-220):

O Estado moderno, como órgão superestrutural derivado das relações de produção capitalistas, não pode apresentar-se de outro modo à sociedade senão como expressão da sociedade civil, pois, caso fosse evidenciada a farsa quanto essa suposta neutralidade, seria desfeito todo o caráter fetichista e ideológico capaz de anuviar sua essência de classe.

É justamente essa forma aparente do Estado que possibilita analisá-lo como relativamente autônomo em relação às classes dominantes. [...] O Estado precisa ser caracterizado pela duplicidade pela qual se manifesta e, ao contrário, a autonomização de sua forma em relação ao seu conteúdo, sua essência, conduz a análise justamente ao caráter especulativo, ilusório, fetichista do Estado do qual Marx parece criticar.

Com o Estado atuando a favor das classes dominantes, temos atualmente um processo de desmonte das políticas sociais públicas e dos serviços a elas atinentes, destituindo a responsabilidade do Estado na preservação do direito à vida de amplos segmentos sociais, transferida à eventual solidariedade dos cidadãos.

Por fim, cabe destacar a tendência de reduzir a questão social às situações de exclusões/inclusões, bem como as consequências dessa visão. Essa situação, de acordo com Iamamoto (2011, p. 166) cria uma “sociedade paralela, [...] separa materialmente, mas unifica ideologicamente no imaginário da sociedade de consumo e nas fantasias pasteurizadas e inócuas do mercado”.

O discurso da exclusão não advém de um projeto anticapitalista, pois não está centrada nas contradições centrais da produção capitalista, mas em suas mazelas, a citar, a má distribuição da renda, miséria, entre outras causas determinadas pelo capital. Essa ideologia supõe a insuficiência da teoria das classes e, consequentemente, dilui a figura da classe trabalhadora na do excluído,

destituído da possibilidade de fazer história. Ela contribui para que a consciência proletária apareça de forma invertida na sociedade, ocultando as determinações reais do modo de produção capitalista.

Essa consciência se manifesta, segundo Coutinho (2010, p. 177) “no nível da espontaneidade – reproduz os conteúdos imediatistas e fetichistas que são próprios da ideologia burguesa, das soluções burguesas aos problemas colocados em cada período”.

Em suma, a sociedade do consumo, bem como todas as visões de mundo provenientes de interpretações que não estejam calcadas nas contradições reais contidas nas relações de produção e reprodução capitalistas, mas no consumo, distribuição, mudanças na forma jurídico-política ou nos rebatimentos sociais produzidos pelo sistema, produzem, como efeito, distorções na forma de compreender a realidade tal como ela é. Isto significa que se trata de uma ideologia, cujo objetivo central é velar a realidade de modo a reproduzir interesses particulares das classes dominantes como se fossem interesses universais.