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FAMÍLIA DE CLASSIFICAÇÕES INTERNACIONAIS DA OMS (FCI-OMS)

3. A importância dos dados na saúde do trabalhador: o uso da CID em intervenções por melhores condições de trabalho

3.3 Problematização da Lista de Doenças Relacionadas ao Trabalho (LDRT): a mínima que virou máxima

3.3.1 O caso do amianto

Um exemplo que consta nas listas é do patogênico químico amianto32, também conhecido como asbestos: seu uso é considerado um fator de risco e, de acordo com as listas, as doenças abaixo relacionadas e suas respectivas categorias e subcategorias da CID, se vieram a se manifestar em quem trabalha com amianto, contam com o NTEP presumido:

● Neoplasia maligna do estômago (C16.-)

● Neoplasia maligna da laringe (C32.-)

● Neoplasia maligna dos brônquios e do pulmão (C34.-)

● Mesotelioma da pleura (C45.0)

● Mesotelioma do peritônio (C45.1)

● Mesotelioma do pericárdio (C45.2)

● Placas epicárdicas ou pericárdicas (I34.8)

30 O Brasil está no 4º Ministro da Saúde no governo Bolsonaro. Ficamos sem Ministro da Saúde de 15 de maio de 2020 à 02 de junho de 2020, em plena pandemia.

31 Esta tese conta, em média, com 86 siglas.

32 Também chamado de asbesto, o amianto é uma fibra mineral que no Brasil é usada principalmente misturada ao cimento como matéria-prima de telhas e caixas d’água. Praticamente indestrutível, resistente ao fogo e macia o suficiente para ser tecida, ela reforça a rigidez do cimento, permitindo que telhas e caixas sejam mais finas e leves.

● Asbestose (J60.-)

● Derrame Pleural (J90.-)

● Placas Pleurais (J92.-)

O amianto é altamente cancerígeno e proibido em cerca de 60 países, com indicação da OMS de banimento em todo o mundo. O Brasil impôs a proibição em 2017, mas uma Lei estadual de Goiás, que segue em disputa na Justiça, mantém a segunda maior mina de amianto do mundo em Minaçu/GO em operação (THE INTERCEPT, 2020).

Uma cidadã de Minaçu/GO relata que o processo contra a mineradora, desde o adoecimento do pai, que trabalhou de 1982 a 1994 na SAMA e faleceu 14 anos depois, em decorrência de um câncer de pulmão, ainda não foi julgado:

“Mesmo com um relatório médico dizendo que (o câncer) foi causado pelo amianto, a justiça não foi feita” (OBSERVATÓRIO DA MINERAÇÃO, 2022).

A compreensão do lobby que envolve o amianto no Brasil perpassa sua publicização e a defesa não apenas de sua manutenção nas listas do NTEP, mas seu completo banimento em todo o mundo.

O lobby goiano ou a chamada bancada de crisotila, capitaneada por grupos de cariz conservador e ruralista, alega que o amianto brasileiro é do tipo crisotila puro e que o problema do amianto é meramente ocupacional, ou seja, só há perigo para trabalhadores expostos, defendendo que o “uso controlado” é seguro (MARTIN-CHENUT; SALDANHA, 2016; e OBSERVATÓRIO DA MINERAÇÃO, 2022), o que não remete à verdade, pois já foi comprovado que não há nível seguro de uso e que até mesmo trabalhadores da construção civil podem aspirar o pó ao manusear ou quebrar telhas (OMS, 2017).

A Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (IARC, na sigla em inglês), ligada à OMS, afirma que "todas as formas de amianto são cancerígenas"

e que as demais variações do amianto são tóxicas, sendo sua periculosidade indefinida por falta de estudos científicos.

A Sama doou dinheiro a candidaturas de prefeitos, vereadores e até ao atual governador Ronaldo Caiado (União Brasil), destacando que em 2014, quando foi eleito senador, a Sama doou R$300 mil para sua campanha. Senadores

como Alcolumbre, Chico Rodrigues (do DEM), Vanderlan Cardoso (do PP) e Luis do Carmo (do MDB) vem defendendo a liberação do amianto no Brasil: “Os trabalhos científicos estão aí mostrando que não existe nenhum problema que cause câncer”, argumentou o senador Rodrigues (THE INTERCEPT, 2020). Todavia, os estudos que eles citam são totalmente questionados, pois foram financiados pela própria Sama, mas que, por razões adversas, também tiveram financiamento público envolvido.

Os médicos da Sama são autores de duas pesquisas científicas que, juntas, custaram R$ 4,4 milhões. Na primeira pesquisa, houve verba da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp) e, de início, a participação de um pneumologista da Fundação Jorge Duprat Figueiredo, de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), mas o médico da Fundacentro deixou a pesquisa quando, segundo ele, entendeu o conflito de interesse, relatando, ainda, que somente após início do estudo a Samar propôs as doações. Na segunda etapa do estudo, concluída em 2010, houve financiamento do Instituto Brasileiro de Crisotila e o restante do custeio, em torno de 1,5 milhões, foi pago pela Fundação de Apoio à Pesquisa da Universidade Federal de Goiás e pelo CNPq (THE INTERCEPT, 2020).

A pesquisa “analisou” a mortalidade e a morbidade dos trabalhadores expostos ao amianto de 1946 a 1996, tendo como sujeitos da pesquisa 7 mil funcionários ou ex-funcionários da Sama, que passaram pelo crivo da junta médica.

O relatório do Grupo de Trabalho da Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara dos Deputados destinado à análise das implicações do uso do amianto no Brasil, composto por renomados cientistas da área da saúde do trabalhador, bem como artigo de Wünsch Filho, Neves, e Mocau (2001) questionam os achados da pesquisa, que concluiu que "baixas exposições a crisotila não representam risco perceptível à saúde".

Uma maioria irrefutável de estudos epidemiológicos e experimentais apontaram os múltiplos danos para a saúde decorrentes da exposição ao asbesto. Quando acontece de uma investigação científica revelar resultados antagônicos aos que seriam esperados em consonância com o conhecimento existente, é mais adequado considerar que a origem provável destes achados se encontra nas insuficiências do desenho e da

análise. É, portanto, lastimável que a discussão do que fazer com relação ao amianto no Brasil venha assumindo por parte de alguns estes caráteres simplificadores e com argumentos fundamentados nos resultados de um único estudo (DOSSIÊ AMIANTO BRASIL, 2010, p. 130).

Os autores dos estudos em questão são os mesmos que participaram da junta médica formada pela Sama para acompanhar o estado de saúde dos trabalhadores expostos. A junta se deu em decorrência de portaria, em 1991, que obrigava todas as empresas que exploravam amianto a acompanhar e realizar exames de saúde periódicos em seus funcionários e ex-funcionários por até 30 anos depois que eles deixassem o emprego. As denúncias públicas da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto, a Abrea, sobre os casos de adoecimento dos trabalhadores da Sama, aumentou a pressão sobre a empresa para a criação da junta médica.

A Abrea (2020) também denunciou a política da empresa de propor a todos os seus ex-funcionários acordo extrajudicial em que garantia pagamento de plano de saúde e de indenização caso a junta diagnosticasse alguma doença relacionada ao amianto. Em contrapartida, o ex-funcionário se comprometia a não processar a empresa, mas o diagnóstico, no entanto, quase nunca acontecia.

A comissão da Câmara que elaborou o Dossiê Amianto Brasil solicitou ao Conselho Federal de Medicina que investigasse os possíveis desvios éticos dos médicos responsáveis pelas pesquisas pró-amianto financiadas pela Sama. Ao CNPq, a comissão pediu a instalação de inquérito sobre a liberação dos recursos para o estudo e emitiu reclamações às comissões de ética em pesquisa da Unicamp, da USP e da Unifesp, onde os médicos da Sama atuaram como pesquisadores. Na Unicamp, a denúncia foi arquivada, tanto na USP como na UNIFESP, não há registro do caso, assim ninguém foi punido. Somente a Fapesp informou que, devido à denúncia, todos os pesquisadores que recebem recurso da fundação precisam ter autorização para aceitar outras fontes de financiamento (THE INTERCEPT, 2020).

Dialogando com a arte e com a contemporaneidade, o filme documentário33 “Não Respire – Contém Amianto”, também denuncia a indústria de amianto e como ela se sustenta através de doações para campanhas políticas, financiamentos a pesquisas acadêmicas e investimentos em marketing (REPÓRTER BRASIL).

A esclarecedora reportagem investigativa de Nayara Felizardo, para o The Intercept Brasil (2020), reafirma que médicos pagos pela mineradora Sama, da Eternit, ou seja, médicos da empresa, ocultaram mortes por amianto.

A Sama é um braço do grupo Eternit, que responde a processos milionários por doenças causadas por amianto na Europa. Nas últimas décadas, a empresa bancou mais de R$ 2 milhões em duas pesquisas científicas que defendem que a exposição ao amianto não causa doenças e contratou ao menos cinco médicos cujos diagnósticos curiosamente quase nunca apontavam a existência de doenças relacionadas à fibra. A Sama também financiou dois hospitais que tratavam seus trabalhadores em Minaçu e em Goiânia (THE INTERCEPT, 2020, s/p).

A cooptação da Sama vai além das questões políticas, ela interfere e capta a subjetividade dos moradores da cidade ao ser reconhecida como a “mãe de Minaçu” e por ser a principal fonte de emprego da pequena cidade, o que a deixa muito confortável para culpabilizar o trabalhador por seu adoecimento, com anuência deles.

Amaral (2019), em etnografia desenvolvida em sua tese Com o peito cheio de pó: uma etnografia sobre a negação do adoecimento de trabalhadores do amianto na cidade de Minaçu (GO), narra com maestria não apenas os adoecimentos, mas todo o sofrimento social que ele acarreta pelo não reconhecimento pelos médicos da empresa e, principalmente, por parcela significativa da população da cidade. A população minaçuense tem dificuldade em tecer críticas abertas sobre os riscos do amianto, seja pelo medo de retaliação da empresa, seja por já ter incorporado o seu discurso, ou pela dificuldade de assimilação dos riscos do amianto, considerando a morosidade para visualizar seus efeitos e a falta de oportunidades de emprego.

33 Documentário realizado com recursos destinados pelo Ministério Público do Trabalho à Repórter Brasil através da Ação Civil Pública 0004392-96.2012.5.12.0003.

O caso do amianto é um exemplo que reforça que o capital não tem “a mínima consideração pela saúde e duração da vida do trabalhador, a menos que seja forçado pela sociedade a ter essa consideração” (MARX, 2013, p. 342).

Destarte, a luta de classes na defesa da saúde do trabalhador, pressionando as empresas a implementarem melhores condições de trabalho é imprescindível.