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2.3 O Monologion: o esforço da ascese do Deus uno ao Deus trino

2.3.2 As propriedades da essência soberana (cc XIII – XXVIII)

Anselmo, neste conjunto de capítulos do Monologion, trata das propriedades da substância suprema. Primeiramente, nos capítulos XIII e XIV mostra que tudo o que foi criado por ela jamais irá dissociar-se da mesma, a qual dá força e vida às criaturas. Anselmo quer mostrar que a essência suprema não apenas fez todas as coisas, mas, através dela, as coisas permanecem, pois há uma presença conservadora (servatricem praesentiam)160. A essência suprema se encontra, pois, em todas as coisas. Tudo existe dela, por ela e nela. Desta forma o autor quer mostrar, através de argumentos racionais, a

pertinência da sentença paulina de Rm 11,36161. O esforço racional não encontra tréguas na análise de Anselmo, por isso ele, argumentando sola ratione, estabelece o que vamos chamar de regras que devem guiar o procedimento de quem deseja falar adequadamente acerca da essência suprema162. Trata-se da regra da perfeição, da identidade e da unidade.

160

Cf. Mon. XIII, 27,15.

161

“Porque tudo é dele, por ele e para ele. A ele a glória pelos séculos! Amém.” Rm. 11,36.

162

A regra da perfeição163 estabelece que devem ser atribuídos à substância suprema todos os predicados em que a afirmação é melhor, em modo absoluto, do que sua negação. De acordo com este princípio pode dizer-se que a essência suprema e só ela é viva, sábia, onipotente, verdadeira, justa, feliz, eterna e tudo o mais que seja melhor ser do que não ser. Tal princípio, quer parecer-nos, será uma das bases para a posterior formulação do argumento único do Proslogion. Outra regra é a da identidade164 e estabelece que tudo o que é atribuído à natureza suprema é expressão do seu ser mesmo e não, apenas uma qualidade sua. Sendo assim, se pode, com acerto, dizer que ela é a bondade suprema, a grandeza suprema, a justiça suprema etc, pois se está tratando do ser supremo. Por fim, a regra da unidade165 e, conforme ela, os predicados que se atribuem à essência suprema são todos eles idênticos entre si, não só pela identidade perfeita deles na essência suprema, mas também pelo fato de que cada um deles é a expressão da totalidade igual e una de todos os seus atributos. Por exemplo, em referência à natureza suprema, quando se fala de justiça ou de essência, na verdade, se está falando da mesma coisa e o mesmo se dá com cada uma das designações a ela atribuíveis.

Uma outra questão é colocada logo por Anselmo: esta natureza teve início ou terá um fim? Sua resposta é de que ela não tem início, já que não começou a ser. Igualmente, não terá fim, pois é incorruptível. Fundamenta a resposta, a partir de um dos atributos da

163

“sicut nefas est putare quod substantia supremae naturae sit aliquid, quo melius sit aliquomodo non ipsum, sic necesse est ut sit quidquid omnino melius est quam non ipsum”.Mon. XV, 29, 17- 19.

164

“Quapropter cum quaeritur de illa quid est, non minus congrue respondetur:iusta, quam: iustitia” Mon.XVI, 30, 30 – 31.

165

“Quemadmodum itaque unum est quidquid essentialiter de summa substantia dictur, ita ipsa uno modo, una consideratione est quid quid est essentialiter”. Mon. XVII, 31, 25 – 27.

substância suprema: ser a verdade166. Do mesmo modo que a verdade não tem início ou fim, também a essência suprema, a qual é a verdade mesma, não pode ter início ou fim167. Mas, sendo assim, o que havia antes dela? O que haverá depois dela? A resposta é: nada168. Volta, pois, à tona, o problema do nada, já tratado no capítulo VIII. Este problema, de resto, muito próprio da língua latina, diz respeito ao sentido do termo nada169.O que Anselmo quer dizer é que antes da essência suprema nada havia e, após ela, nada há. O nada é compreendido no sentido de que coisa alguma precede ou sucede a

suma natureza. Muito provavelmente Anselmo, ao ocupar-se deste problema, tem intenção de refutar a opinião de Fredegiso de Tours170 (+ 834), o qual afirma em seu De nihilo et tenebris que nihil é uma vox significativa.171Talvez se possa dizer que o pano de fundo da cuidadosa análise lingüística, levada a cabo por Anselmo, nestes capítulos, seja a sua intenção de advertir contra os erros de uma dialética que se funda em si mesma. Para ele, a dialética tem sentido e seu esforço é compensatório, mas ele nunca perde de vista que seu fim está sempre além da limitada linguagem humana, embora, isto não deva ser motivo para impedir a continuidade da empreitada172.

166

Anselmo retomará esta idéia em seu tratado sobre a Verdade. Cf. De Veritate X

167

Cf. Monologion XVIII.

168

Cf. Monologion XIX.

169

Um estudo aprofundado sobre a questão do nada em Anselmo encontra-se no artigo de Italo Sciuto La Semantica del nulla in Anselmo d’Aosta in Medioevo vl. XV, pp. 39 –66 (1989), onde o autor não apenas analisa o problema no Monologion, mas também no De Casu Diaboli e nos fragmentos do tratado inconcluso De potestate et impotentia .

170

Cf. C. Gennaro. Fridugiso di Tours e il “De substantia nihili et tenebrarum” ediz critica e studio introduttivo, Cedam, Padova, 1963.

171

Cf. Mariateresa Fumagalli Brochieri e Massimo Parodi. Storia della filosofia medievale – da Boezio a Wyclif, pp. 77 – 80. Cf. também G. Colombo. Invito al pensiero di Sant’Anselmo, p. 38.

172

“... la dialectique a ainsi à s’ouvrir à ce qui fonde sés objets au-delà d’eux-mêmes, et qui s’y donne intelligiblement”. (Paul Gilbert. Dire l’ineffable – lecture du Monologio de S.Anselme”, p.150.

É este espírito de perseverança no esforço sola ratione que guia Anselmo nos densos capítulos XX a XXVII. Inicialmente, nos capítulos XX a XXIV, ele se ocupa das propriedades da essência soberana na sua presença espaço-temporal. Mostra que a natureza suprema deve estar em todo o lugar e sempre, pois só assim ela pode dar força e vida a tudo o que criou, uma vez que, sem ela, nada subsiste. Sendo ela eterna, não está constrita às leis do tempo, razão pela qual está presente contemporânea e simultaneamente em todo o lugar e tempo. Isto não quer dizer que ela tenha algum lugar ou tempo, pois, dada sua natureza própria, não acolhe em si as distinções de tempo e lugar. Anselmo explica, a partir da idéia de eternidade (retomada no conceito de Boécio, segundo a qual a eternidade é a “posse inteira e perfeita de uma vida ilimitada”173), de que forma a essência suprema exerce sua presença não só criadora, mas também conservadora de tudo o que foi por ela criado. Nestes difíceis capítulos do Monologion vemos com mais nitidez, aquela que é uma marca do opúsculo anselmiano: a argumentação dialética é utilizada, tendo em vista um fim metafísico. Anselmo mostra que é a substância soberana, com sua presença, que mantém todo o mundo criado no ser. Esta presença conservadora transcende o plano espaço- temporal, trata-se de uma presença total174, a presença do ser mesmo.

Os capítulos XXV a XXVII esclarecem de que modo as categorias de substância e acidente podem ser atribuídas à suma natureza. Anselmo exclui a predicação acidental, uma vez que toda predicação, quando referida à essência suprema, não comporta acidentes.

173

“Aeternitas igitur est interminabilis vitae tota sumul et perfecta possessio”.De Consolatione Philosophiae, V,6.

174

Toda a argumentação está fundamentada nas categorias aristotélicas175. Ora, Aristóteles distingue a substância primeira das demais substâncias176 e isto leva Anselmo a um esclarecimento dos termos: se até aqui usou substância, natureza e essência como sinônimos, agora o esforço dialético conduz à necessidade de uma melhor elucidação, razão pela qual entende ser mais adequado a atribuição de substância para o objeto de seu estudo. Explica, contudo, que se trata de uma substância primeira e única, razão pela qual quando é designada substância, este termo possui uma conotação diferente do modo como é empregado referindo-se a outras substâncias que não àquela primeira e única que é por si, sendo individual e indivisível e a razão de ser das substâncias segundas: “portanto, se ela alguma vez recebe o mesmo nome que se atribui à criatura, não resta dúvida de que este deve ser entendido num sentido diferente”177. A conclusão desta segunda parte do Monologion explicita o escopo metafísico da argumentação dialética que vem sendo

conduzida. Mostra, no capítulo XXVIII, que, de um certo modo, apenas a substância suprema é, enquanto tudo o mais, quando comparado a ela, não é, já que apenas o espírito supremo é de modo simples, absoluto e perfeito. Anselmo tem o cuidado de acrescentar, no entanto, que as coisas criadas não devem ser entendidas como totalmente não- ser, já que, em virtude da substância suprema (a qual é em modo absoluto), as coisas criadas, do nada se tornam alguma coisa. Nesta conclusão da segunda grande parte do Monologion, está presente uma mudança de perspectiva interessante. Michel Corbin, em sua edição das obras completas de Anselmo, anota neste momento do opúsculo, o que chama de um

175

Cf. Aristóteles. Categorias, livro V.

176

Cf. Aristóteles. Categorias 2a11-19.

177

“Unde si quando illi est cum aliis nominis alicuius communio, valde procul dubio intelligenda est diversa significatio.” Mon.XXVI, 44, 17 –19.

“renversement”178 que faz a força do livro: o ser de Deus, que era o problema nos capítulos iniciais, já está fortemente demonstrado. O que agora aparece como problemático é justamente o ser das coisas criadas. Parece-nos interessante a observação do editor, mas é preciso ter clareza que o que Anselmo quer destacar não é que haja uma carência de ser nas criaturas. Seu objetivo é mostrar que há uma diferença de grau ontológico. Só a substância suprema é plena de ser, enquanto o ser das criaturas é um ser derivado.