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III- SIGNIFICADO E VALOR DO MONOLOGION

3.1 Algumas interpretações do Monologion

3.1.1 Coloman Viola: o Monologion como obra teológica

Coloman Étienne Viola é autor de inúmeros estudos sobre o pensamento de Anselmo. O comentador situa-se na mesma trajetória de autores como Karl Barth, o próprio editor das obras de Anselmo, Franciscus Salesius Schmitt, Richard Southern e outros que a privilegiam sob o aspecto teológico. Tendo em vista que nosso objetivo é analisar o Monologion, vamos nos deter na interpretação deste opúsculo anselmiano, levada a cabo por Viola em Anselmo d’Aosta – Fede e ricerca dell’inteligenza231. Nesta obra, Viola atem-se ao que entende ser o método teológico de Anselmo, procedendo a uma análise das seguintes obras: Monologion, Proslogion, De Grammatico, De Veritate, De libertate arbitrii e Cur Deus homo. A análise é feita colocando estas obras em íntima

ligação com as Orationes sive Meditationes, pois Viola entende que o procedimento racional de Anselmo tem como ponto de partida e de chegada, a experiência da oração e da meditação. Vamos, evidentemente, nos ater ao que ele diz sobre o Monologion.

Viola salienta, desde o início, que o Monologion trata de questões exclusivamente ligadas à fé, pois surge no âmbito de uma escola monástica, numa época em que os jovens monges, certamente não indiferentes ao debate em torno da aplicação da dialética às questões sacras, demonstravam ávido desejo de conhecer. Esta obra é o fruto não apenas do ensino oral de seu autor, mas também de suas longas meditações. Considera o tratado anselmiano como sendo uma tentativa de síntese do conteúdo da fé cristã que se apresenta

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Cf. C. Viola. Anselmo d’Aosta – Fede e ricerca dell’intelligenza. Milano: Jaca Book, 2000. Infelizmente não tivemos acesso ao original deste estudo de Viola, por isso nos atemos à tradução italiana, feita por Antonio Tombolini para a coleção Eredità Medievale, dirigida por Inos Biffi e Costante Marabelli.

como a dialética do espírito finito, do espírito do homem e do espírito de Deus. Seria uma espécie de fenomenologia do espírito, razão pela qual o comentador não se surpreenderia se Hegel tivesse se inspirado em Anselmo232.

Feita esta apresentação inicial, o comentador enfrenta o problema de como situar o Monologion no campo do conhecimento. Inicialmente, inspirado em Paul Vignaux, atenta

para o perigo de julgar a obra sob os critérios atuais, através dos quais seria difícil defini-la como sendo de natureza filosófica ou teológica. O que Viola ressalta é que o Monologion trata de questões ligadas à fé cristã e que o método adotado, mesmo sendo exclusivamente racional, não pode ser dissociado desta mesma fé, pois esta é o ponto de partida e de chegada de todo o movimento da mente. Para que este método possa ser bem compreendido, Viola pensa ser necessário não esquecer que, para Anselmo, a racionalidade não se restringe ao sola ratio, pois o uso da razão não implica em uma necessária abstração da autoridade das escrituras. É o caso de Agostinho, tão bem conhecido por Anselmo. O bispo de Hipona não abre mão da racionalidade, mesmo fazendo uso das escrituras. O Monologion, contudo, faz uso da razão, prescindindo da autoridade e aí estaria a sua

novidade. Tal novidade pode ser entendida negativa e positivamente: no primeiro caso, por silenciar sobre toda autoridade, de modo particular das Escrituras. No segundo caso, pela aplicação de um método puramente racional233.

Apesar do método sola ratione, Viola percebe no Monologion uma hierarquia, onde a fé está acima da razão. Justifica sua interpretação pelo fato de Anselmo, ao apresentar

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Cf. C. Viola. Anselmo d’Aosta. Fede e ricerca dell’inteligenza, p. 28.

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seu método, utilizar o termo saltem: saltem ratione persuadere234. Viola entende que saltem tem como significado fundamental na falta de outro235. Sendo assim, a via da razão, em Anselmo, como em Agostinho, teria um valor menor que a via da fé. De fato, Viola ressalta o influxo agostiniano sobre o método de Anselmo. Este estaria presente não apenas na declarada influência do De Trinitate, mas também em uma presumível inspiração no De quantitate animae, onde a sola ratio vem identificada com a vera et certa ratio. Em

ambos autores, contudo, a razão não estaria dissociada do credere. Assim sendo, em Anselmo, a fé e a autoridade podem ser entendidas como dons de Deus, enquanto a razão seria esforço puramente humano.

Continuando a ressaltar a proximidade com Agostinho, Viola não duvida que ambos se encontram num campo de racionalidade. A diferença é que, enquanto o bispo de Hipona, procede dialeticamente utilizando a autoridade das Escrituras a fim de tornar mais claro o conteúdo da fé cristã, o prior de Bec, por sua parte, coloca entre parênteses a autoridade das Escrituras. Aliás, Viola vê em Anselmo um precursor de Husserl, no campo da especulação teológica. Comparando Agostino e Anselmo, Viola identifica a presença de uma dúplice simbiose entre autoridade e razão236: um analisa o conteúdo que a autoridade das Escrituras propõe e o outro, mesmo abstraindo das Escrituras, quer chegar, apenas com a razão, às mesmas verdades propostas pela autoridade. Em ambos, a autoridade se faz presente: em Agostinho, em virtude da análise do conteúdo daquilo que a mesma propõe; em Anselmo, pelo fato de o procedimento racional ser condicionado pelo projeto cujo fim é mostrar a conformidade da razão humana com o conteúdo

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Cf. Monologion I, 13,11.

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Todas as traduções do Monologion a que tivemos acesso conferem a este saltem o sentido de

ao menos.

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preliminarmente conhecido pela autoridade. Esta ligação entre a razão e a autoridade desautoriza, consoante Viola, identificar a obra anselmiana como sendo de caráter racionalista.

Assim compreendido, o Monologion é visto como uma ascese metafísica cujo fim é chegar à afirmação da existência de um ser supremo e único. Os temas tratados mostram, conforme o comentador, que sem a revelação cristã, Anselmo não teria podido integrar na sua síntese racional a questão da trindade e sua vida íntima, tema que ocupa grande parte do Monologion. Com esta base, Viola entrevê o que chama de o problema fundamental do método anselmiano: querer delinear, mediante a razão, os contornos de todos os mistérios da fé237. Entende que Anselmo não distingue aquilo que a razão por si só pode alcançar e o que supera a razão mesma, sendo acessível somente pela revelação. Para o comentador, Anselmo, nutrido de uma preocupação apologética, deseja adquirir uma inteligibilidade da totalidade do conteúdo da fé. Assim procedendo, o método anselmiano não deixaria de ser problemático, incorrendo mesmo em ambigüidades e paradoxos, pois desejaria excluir a autoridade para tratar de temas que, sem ela, não teria podido tratar. Anselmo, contudo, não cai no racionalismo, já que, no interior mesmo do Monologion , mostra os limites da especulação racional, pois no capítulo LXV, trata de como dizer o inefável.

Como então caracterizar o Monologion? Viola refuta a idéia de que o tratado seja uma teodicéia. Não se trata, nem mesmo de um tratado filosófico, mas sim, de uma obra teológica, mais precisamente de teologia católica238, já que seu conteúdo é o Deus católico, o Deus inefável do cristianismo e não, dos hebreus ou mulçumanos. Encaminhando-se para

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o final de sua reflexão e querendo ressaltar o caráter teológico da obra, Viola faz uso de uma bonita imagem: recorda o conhecido episódio da infância do autor em que o menino, contemplando as montanhas de Aosta, imaginava encontrar no seu alto o trono divino. Ora, diz Viola, no Monologion, ele concretizou seu sonho de menino e subiu a montanha, pois o opúsculo é uma genuína ascese ao summum que é Deus. Viola conclui seu estudo sobre o primeiro tratado sistemático de Anselmo, dizendo que o autor jamais quis ser filósofo no sentido moderno do termo. O Monologion seria, então, uma obra de teologia puramente especulativa, na qual, apesar da ausência dos Padres e da Escritura, a autoridade tanto daqueles quanto desta, contribuiu, de modo fundamental, para a realização de uma síntese racional.