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IV- O ESFORÇO DIALÉTICO DE ANSELMO

4.2 O caráter inovador de Anselmo

Dar as razões da fé é algo característico do pensamento cristão. Desde os albores da Patrística, o recurso à razão fundamentou e justificou as concepções concernentes à fé. Acabamos de ver como Agostinho não temia recorrer à razão, dispensando mesmo à dialética um caráter importante. Observamos, igualmente, como desde o início da Escolástica, muitos autores valeram-se desse recurso para tratar de problemas que diziam respeito às verdades de sua crença. Percebemos que, quanto ao uso da razão em si, o pensamento de Anselmo não apresenta nenhum ineditismo, pois que está fazendo apelo a seu grande inspirador e também a toda uma tradição intelectual que, passando pelo período carolíngeo, chega ao século XI. No entanto, há um caráter diverso em Anselmo. Sua inovação, sem dúvida, é fruto de seu talento especulativo, mas, além disso, está vinculada

ao seu contexto filosófico mais imediato e esta é uma afirmação que julgamos fundamental em nosso estudo, a qual procuraremos explicitar agora. O que há nele de propriamente novo em relação aos autores que anteriormente citamos? Assumimos a mesma resposta dada por Bertola373 em torno desta indagação, mas vamos além. O estudioso de Anselmo aponta, com pertinência que, até então, nenhum pensador procedera como o Prior de Bec, ou seja, partir da razão a fim de demonstrar a pertinência da fé. O que se encontra naqueles pensadores é, sem dúvida, uma demonstração não apenas de que a discussão em torno das relações entre a fé e a razão, especialmente sobre o papel que a razão pode ou deve exercer, é bem viva na tradição filosófica que se inaugura com a Patrística, chegando ao século XI, com seu característico debate sobre o estatuto da dialética. Bertola, que estudou os precedentes do método anselmiano, examinando os textos de muitos autores, procurando ver como relacionavam fé e razão, conclui seu estudo, declarando que, no que diz respeito às relações entre fé e intelecto, ou seja, no que tange à intelligentia fidei, ele não apresenta propriamente uma novidade. Sua originalidade estaria, como se disse, no fato de que, antes dele, o uso da razão sempre tomou como ponto de partida uma verdade de fé. Ninguém, antes de Anselmo, partiu de uma verdade que não fosse oriunda do campo da fé, a fim de demonstrar ser pertinente a verdade revelada374.

373

Cf. E. Bertola. I Precedenti del Metodo di Anselmo di Canterbury nella Storia Dottrinale Cristiana, pp. 143ss.

374

“Non abbiamo però, nella nostra ricerca, trovato nessun scrittore Cristiano che, prima di Anselmo, sia partito da una verità non di fede per dimonstrare, a modo dei filosofi, essere vera razionalmente una verità affermata dalla divina rivelazione... Se vogliamo ricercare la originalità del metodo anselmiano, questa originalità dobbiamo ricercarla sia nella sua varietà e complessità, dalla quale sono nate le varie interpretazioni circa la sua metodologia, sia, specialmente, nel particolare uso che egli fece della ‘sola ratio’ a proposito di Dio” E. Bertola. I Precedenti del Metodo di Anselmo di Canterbury nella Storia Dottrinale Cristiana, pp. 144.

De nossa parte, julgamos pertinente esta resposta, mas queremos dar um passo a mais, mostrando o porquê de tal procedimento de Anselmo. As razões da postura que julgamos poder definir como filosófica de Anselmo estão no seu contexto mais imediato de reflexão. Julgamos descabidas algumas interpretações – não é o caso de Bertola – que colocam o prior de Bec como detentor de uma notória excepcionalidade quase como se ele fosse uma espécie de ilha de sabedoria em meio a um mar de mediocridade intelectual375. De nossa parte, entendemos que a postura racional de Anselmo deve-se a um contexto filosófico em que a dialética se impõe cada vez mais. Foi o que procuramos ressaltar no

capítulo inicial de nosso estudo.

Não concordamos em absoluto com uma interpretação por demais redutora das discussões que giravam em torno a Anselmo: julgamos ter mostrado com clareza, no primeiro capítulo de nosso estudo, que não nos parece ser plenamente adequado falar de um conflito entre o fideísmo ingênuo dos teólogos e o racionalismo inconseqüente dos dialéticos. Havia bem mais do que isso. Havia, de fato, um rico debate em torno do lugar a ser ocupado pela disciplina das disciplinas, para usar a expressão utilizada por Agostinho para definir a dialética. Esta tomava força como elemento de discussão dos problemas mais importantes, quais sejam os problemas da fé. Em meio a um, não raras vezes, tumultuado debate em torno do papel da dialética, nem sempre houve por parte dos interlocutores uma

375 Martin Grabmann em seu, de resto, interessantíssimo estudo sobre a História do Método

Escolástico parece, em determinados momentos, acentuar um tal caráter excepcional de Anselmo.

Declara que Anselmo foi o verdadeiro pai da escolástica,... pensador de singularíssima

individualidade científica,... um gênio especulativo, de muito superior aos seus contemporâneos,...

dotado de extraordinária disposição ética e intelectual... de todo excepcional. Grabmann refere ainda e apóia a posição de De Wulf em sua Histoire de la philosophie médiévale, consoante a qual, Anselmo seria o Gregório VII da ciência: assim como Gregório VII procurou libertar a Igreja do Estado, Anselmo procurou libertar a ciência dos ligames constritores de uma dialética formalística

e de uma mecânica repetição dos padres. Cf. Martin Grabmann. Storia del Metodo Scolastico –

suficiente clareza quanto ao âmbito desta disciplina. Anselmo aí foi original, talvez devêssemos dizer, executou um papel de maior maturidade filosófica. E só pôde fazê-lo porque a discussão dialética estava na ordem dos debates. Seria absolutamente unusitado que um grupo de monges, homens de fé, portanto, solicitassem a seu prior que elaborasse uma reflexão onde apenas a dialética imperasse, onde a fé fosse colocada entre parênteses. O que motivou este grupo de monges? É oportuno recordar que o Monologion antes de ser escrito foi discutido entre o Prior e seus alunos. Não importa tanto saber se a motivação inicial para a consecução da obra coube aos monges ou ao Prior, isto é, se os alunos impuseram o método sola ratione por eles mesmos, ou a partir das conversações havidas com o mestre. Em verdade, alunos e mestres estavam inseridos num mesmo horizonte intelectual, em que o ardor dialético não era desprezível, ao menos para uma parcela considerável dos envolvidos naquele contexto de discussão.

Anselmo é, como muitos em seu tempo, um conhecedor e entusiasta da lógica, e sua peculiaridade está ligada ao seu contexto filosófico, onde a lógica está em evidência. O debate em torno da dialética, as discussões havidas foram o terreno fecundo, para que o pensamento de Anselmo obtivesse a maturidade que a questão estava a exigir. O que queremos dizer é que há algo novo no século XI. De que novidade se trata? Não é propriamente a utilização da dialética. Já vimos como ela, de formas diversas, mais ou menos reconhecida, se fez presente desde Agostinho. A novidade do século XI foi o impulso que a questão tomou, foi a paixão pela dialética - para usarmos a feliz expressão, utilizada por por André Cantin376 e já referida no primeiro capítulo de nosso estudo - que marcou os debates da época. Tal entusiasmo pela dialética é característico do século de

376Cf. André Cantin La Position prise pour Lanfranc sur le traitement des mystères de la foi par les

Anselmo. Sua reflexão amadureceu neste contexto de discussão. Anselmo fez parte e contribuiu para a o início da aventura européia da razão, como atesta um esclarecedor artigo de André Cantin377. E aí reconhecemos o progresso de Anselmo em relação a seus contemporâneos. Para melhor explicar nossa posição recorremos à mesma figura de Cantin: os pensadores do século XI, estavam envoltos na paixão pela dialética. Até mesmo os maiores críticos de sua utilização não se furtaram de recorrer a ela. Ora, a paixão é importante, talvez seja o impulso necessário para um verdadeiro amor, mas este só é atingido, quando, passado o entusiasmo da paixão, o amor permanece firme, pois que alicerçado para além do efêmero, se constrói no esforço do conhecimento profundo. É o caso da relação de Anselmo com a dialética, a fé e a autoridade. Mais que a paixão pela dialética, encontramos no autor do Monologion um amor refletido e maduro pela razão, permitindo-lhe acreditar na capacidade humana de alcançar, tanto quanto é possível, a compreensão da verdade. Uma tal confiança na capacidade de compreender a verdade permite-lhe empreender o esforço dialético, esforço este que assume a perspectiva da φιλια. Anselmo, desse modo, constrói sua filosofia, ainda que sua reflexão filosófica apareça intimamente ligada à sua fé.