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2.3 O Monologion: o esforço da ascese do Deus uno ao Deus trino

2.3.4 O espírito humano como imagem da substância suprema (cc LXIV –

O discurso trinitário foi o ponto máximo da ascese proposta pelo Monologion. A partir de agora, é possível começar a descida. Mas o esforço do procedimento sola ratione está longe de ser abandonado. Os capítulos LXIV a LXVII são uma espécie de balanço do caminho percorrido, onde Anselmo procede a uma grande avaliação do que foi proporcionado pelo esforço sola ratione. Neste contexto de avaliação, o capítulo LXIV é muito importante. Começa com uma afirmação interessante:

“A mim parece que o mistério desta coisa tão sublime transcenda todo o alcance da inteligência humana e por isso julgo dever renunciar a qualquer esforço para explicar como possa acontecer. Com efeito, creio que, para quem investiga uma coisa incompreensível, deva ser suficiente alcançar, mediante a razão, o conhecimento da existência certíssima dela, ainda que não consiga penetrar com a inteligência como ela existe. Nem por isso, entretanto, deve-se acreditar menos firmemente naquelas coisas que são demonstradas com provas necessárias e sem nenhuma razão contrária, embora, não permitam serem explicadas, pela impossibilidade de compreende-las, devido à sua elevação natural”211

Ora, o que vemos aí é a confirmação de que o esforço foi válido, ainda que não descure os limites do procedimento dialético. Anselmo faz alusão, neste capítulo, à analogia com a altura. A mesma estará presente nos capítulos seguintes,212 evidenciando a

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“Videtur mihi huius tam sublimis rei secretum transcendere omnem intellectus aciem humani, et idcirco conatum explicandi qualiter hoc sit continendum puto. Sufficere nanque debere existimo rem incomprehensibilem indaganti, si ad hoc ratiocinando pervenerit ut eam certissime esse cognoscat, etiamsi penetrare nequeat intellectu quomodo ita sit; nec idcirco minus iis adhibendam fidei certidudinem, quae probationibus necessariis nulla alia repugnante ratione asseruntur, si suae naturalis altidunis incomprehensibilitate explicari non patiantur.” Mon. LXIV, 74, 30 – 75,6.

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ascese que constitui o esforço racional empreendido pelo autor no Monologion. O que preocupa Anselmo, no momento em que avalia o caminho percorrido, é a limitação da linguagem humana para expressar a realidade divina: se o sentido da palavra humana não corresponde plenamente à essência suprema, será que o esforço empreendido pode ser considerado válido? Não nos parece que Anselmo tenha dúvida quanto à validade do esforço. Ocorre que, mesmo neste momento em que vai encaminhando-se para o final da obra, ele não descura o método proposto e o intento de não deixar de apreciar possíveis objeções. Ora, a questão da validade do empreendimento racional não é uma questão menor. Trata-se mesmo da questão crucial de sua obra. Sua resposta não poderia ser mais coerente: ele acredita que o trabalho intelectual é pertinente, isto é, torna-se possível à razão humana pensar de modo justo a essência divina, ainda que não seja possível expressá-la de modo adequado, por isso, pode dizer que nada impede que tudo o que foi tratado seja verdadeiro, ainda que a natureza suprema permaneça inefável (ineffabilem persistere),213 uma vez que não pode ser plenamente designada pela razão humana, mas isto, conforme Anselmo, está longe de significar que a razão não possa dizer algo sobre o inefável, ainda que o que diga seja como um enigma (in aenigmate potest aestimari).214 Quando se vê alguém pelo espelho e não face a face, conseguimos ver a imagem dessa pessoa, mesmo que não diretamente. Para Anselmo, mesmo se não se pode falar tudo, não se deve calar, pois a linguagem humana tem algo a dizer. O enigma não vai desaparecer totalmente, mas o melhor modo de decifrá-lo tanto quanto possível é, conforme o monge de Bec, fazer uso da similitude com a criatura que lhe é mais próxima. Ora, esta só pode ser a mente humana, capaz de ter memória de si, de compreender-se e de amar-se, sendo,

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Cf. Mon. LXV, 76, 19 – 24.

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portanto, a verdadeira imagem da trindade inefável215. O Monologion mostra, pois, inspirado em Agostinho216 que a mente humana é imagem da substância suprema, podendo, por essa razão, melhor compreender sua semelhança com ela. Tal semelhança é entendida como a capacidade de tender à verdade. Assim sendo, a mente humana está progressivamente construindo a analogia com o ser supremo217. É oportuno esclarecer que, embora seja corrente no Monologion o uso de analogias, o termo em si não aparece nos escritos de Anselmo, que faz uso de expressões como imitatio e, especialmente, similitudines.

Resta ainda ver as conseqüências de tudo isto no modo de viver do homem. A partir do capítulo LXVIII até o LXXVIII tem lugar o que chamaríamos de as perspectivas ético- antropológicas do Monologion. Diz Anselmo, iniciando esta discussão, que a criatura racional tem o dever de aplicar-se no amor à essência suprema, já que foi feita justamente para isso. A conseqüência não pode ser outra: deverá empenhar todo o seu poder e o seu querer, a fim de rememorar, compreender e amar o sumo bem218. Ora, continua Anselmo, se o sumo bem assim quer, é claro que seu desejo não pode ser interrompido. Logo, a criatura racional foi feita para amar o sumo bem sempre, o que só é possível se a alma humana não morre. Portanto, se a alma humana se empenhar adequadamente, um dia

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“Ainsi, l’esprit humain, crée de rien, est image de l’esprit souverain par le Verbe duquel il a été fait et dans lequel il est énoncé, profere comme une image, forte de sa ressemblance”.Paul Gilbert. Dire l’Ineffable – lecture du Monologion de S. Anselme, p. 264.

216

Cf. De Trinitate XV,7,11.

217

Cf. Massimo Parodi. “’Imago as Similitudinem’. I termini di Imagine e Somiglianza nel Monologion di Anselmo d’Aosta” In: Revue des Études Augustiniennes, 38 – 2, (1992).

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viverá feliz, livre da morte e de todo o mal, pois a essência suprema que não apenas é justa, mas é a justiça mesma não pode deixar de recompensar a quem persevera no amor a ela.

Mas uma outra questão se faz presente: qual seria a recompensa de um tão grande bem? Anselmo não titubeia em apresentar a resposta: a recompensa não pode ser outra a não ser o próprio sumo bem mesmo. Assim sendo, a criatura racional, se for perseverante, um dia poderá contemplar a substância suprema face à face, diz Anselmo, citando implicitamente o apóstolo Paulo219. Se esta é a recompensa de quem persevera, qual será a conseqüência de quem despreza o sumo bem? Só pode ser a infelicidade eterna. Outro não pode ser seu destino. Uma hipotética redução ao nada, segundo Anselmo, não seria conforme à suma justiça, além de ser uma incongruência, evidentemente não possível àquela suprema natureza criadora que fez todas as almas de igual natureza e, portanto, todas imortais. O que Anselmo quer mostrar, ao falar da necessidade da punição, parece- nos ser que uma hipotética redução ao nada talvez até pudesse ser uma manifestação da misericórdia divina, mas não seria manifestação de sua justiça, tornando, obviamente, esta uma hipótese incongruente.

Anselmo, nesta parte do Monologion, continua procurando mostrar sola ratione a pertinência do discurso da tradição. Não é sua intenção estabelecer normas concretas de como atingir a beatitude eterna. Diz mesmo que é muito difícil para a criatura racional saber quem é ou não, merecedor da recompensa ou do castigo eternos. Mas não hesita em afirmar que todo o homem deve tender ao sumo bem e para isso deve amá-lo com todo o

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coração, com toda a alma e com toda a mente220. Em que consiste este tender? Consiste, consoante o monge de Bec, na observância das virtudes teologais. Por isso, declara que a alma humana que tende ao sumo bem, deve fazê-lo com a esperança de alcançá-lo221. Trata-se de uma legítima aspiração humana, pois a criatura racional, na medida em que se dispõe a ir ao encontro da essência suprema, não pode prescindir da genuína esperança de obter êxito. Além da esperança, é preciso a fé. Mas aqui Anselmo faz um esclarecimento importante: esta fé não pode ser um crer a, ou seja, um tender para, onde se tem apenas uma certa aproximação, mas não um penetrar propriamente dito na suma essência; algo mais se faz necessário e consiste precisamente num crer em, entendido como um tender em, onde a criatura racional penetra e permanece na essência suprema:

“Com efeito, não podem ser considerados como crentes nela nem quem crê naquilo que não diz respeito ao tender para ela nem quem não tende para ela, devido àquilo em que crê. E talvez se possa dizer indiferentemente crer em ela e crer a ela, assim como usar as duas expressões tender em ela e para ela, num mesmo sentido, porque quem chegou a ela, após tender para ela, não ficará fora dela, mas permanecerá nela. Fato este que se indica com expressividade e compreensão maiores se se disser tender em ela, antes que para ela. Pelo mesmo motivo, julgo mais conveniente dizer que se deve crer nela do que se deve crer a ela.”222.

220

Cf. Mon. LXXIV. Aqui mais uma vez a presença de uma citação implícita das Escrituras. No caso, Mt. 22,37.

221

Cf. Mon. LXXV.

222

“Nam non videtur credere in illam sive qui credit quod ad tendendum in illam non pertinet, sive qui per hoc quod credit non ad illam tendit. Et fortasse indifferenter dici potest credere in illam et ad illam, sicut pro eodem accipi potest credendo tendere in illam et ad illam, nisi quia quisquis tendendo ad illam pervenerit, non extra illam remanebit, sed intra illam permanebit; quod expressius et familiarius significatur, si dicitur tendendum esse in illam, quam si dicitur ad illam. Hac itaque ratione puto congruentius posse dici credendum esse in illam quam ad illam.” Mon. LXXVI, 83,23 – 84, 2.

Importa ainda que tal fé deva ser viva. Entra aí a terceira virtude teologal, a caridade, apresentada por Anselmo no capítulo LXXVIII, se bem que, desde o capítulo

LXVIII, já se faz presente, no contexto da necessidade que tem a criatura racional, de amar a essência suprema. Agora, este amor é apresentado através da idéia de uma dilectio223. Um tal diligir é o que marca uma fé viva, enquanto a fé que permanece vazia é uma fé morta, diz Anselmo, citando mais uma vez implicitamente a Escritura224. A fé morta é uma fé sem amor e, portanto, carente de seu sentido pleno, sendo mesmo comparada por Anselmo à falta de visão que impede o acesso à luz. É, pois, mais do que uma negação, uma total privação. A fé viva implica na presença de três características:225 a adesão à verdade, isto é, crer; tal adesão deve ser feita por amor à verdade mesma e, finalmente,

este amor deve implicar em agir na verdade, fazendo com que ela seja a diretriz. Quando os três elementos estão presentes, então, a fé é viva. Quando falta o segundo, o terceiro, ou ambos, então trata-se de uma fé morta.

223

“...inutiles erit fides et quase mortuum aliquid, nisi dilectione valeat et vivat” (Mon. LXXVIII, 16 – 17). Na edição que utilizamos para as traduções dos textos do Monologion, qual seja, a da coleção “Os Pensadores” da editora Abril Cultural, o tradutor Ângelo Ricci optou por apresentar uma tradução num sentido lato deste trecho, fazendo a equivalência do termo dilectione com o amor. Não nos parece que a opção seja equivocada, mas importa acentuar que tal amor deve ser aqui entendido num sentido muito específico, que implica um amor intenso, uma predileção. Na tradução francesa do Monologion levada a cabo por M. Corbin, o tradutor aponta para a dificuldade, também na língua francesa de encontrar o termo adequado. Anota, contudo, que o sentido seria o do verbo francês chérir, ou seja um tender a, estar ligado a.

224

Cf. Tg. 2, 17 – 26.

225

Cf. S. Tonini. La Scriptura nelle Opere Sistematiche di S.Anselmo. Concetto, posizione, significato. Analecta Anselmiana vl. II, p.95.