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AS QUESTÕES NORMATIVAS A RESPEITO DAS PESSOAS COM

Em 2006, a Organização das Nações Unidas (ONU) organizou uma convenção para tratar dos direitos das pessoas com deficiência. Essa convenção foi incorporada à legislação brasileira em 2008, como uma emenda constitucional, sendo chamada de Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Isso aconteceu como forma de dar mais visibilidade social a esses sujeitos e, entre diversos fatores relevantes, ratificar a noção de que o defeito não está no indivíduo, mas nas barreiras sociais, arquitetônicas, comunicacionais, entre outras, que impedem milhares de mulheres e homens de terem o acesso de forma igualitária aos ambientes da ação humana e da cultura.

A princípio, essa emenda constitucional já considera a “pessoa com deficiência” aquela que apresenta qualquer impedimento que, diante de barreiras – de âmbito comunicacional, atitudinal, tecnológico, arquitetônico, entre outras –, reduz a atuação plena em sociedade em par de igualdade com a maioria dos sujeitos. Assim, ela veio assegurar, primeiramente, o protagonismo desses sujeitos, engendrando na sociedade a compreensão de que, acima de tudo, são pessoas. Além disso, busca provocar alteração na forma de se referir a esses sujeitos, deixando de reconhecê-los como “portadores” ou como “deficientes”. Em segundo lugar, destaca a isonomia entre todas as pessoas que constituem o país, sem distinção de grupo algum, o que confere a todos, constitucionalmente, os mesmos direitos de oportunidade.

Outros fatores são apresentados no texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2010) como avanços no desenvolvimento dessa sociedade igualitária. Dentre eles, destaca-se que

[Um] grande avanço foi a alteração do modelo médico para o modelo social, o qual esclarece que o fator limitador é o meio em que a pessoa está inserida e não a deficiência em si, remetendo-nos à Classificação Internacional de

Funcionalidades (CIF). Tal abordagem deixa claro que as deficiências não indicam, necessariamente, a presença de uma doença ou que o indivíduo deva ser considerado doente. Assim, a falta de acesso a bens e serviços deve ser solucionada de forma coletiva e com políticas públicas estruturantes para a equiparação de oportunidades (CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, 2010, p. 14)

Além do mais, a partir desse documento (CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, 2008), passa-se a entender como discriminação o ato de não oferecer igualdade de oportunidade às pessoas com deficiência, privando-as de ter acesso a bens culturais, lazer, esporte, educação, política, economia, entre outros. No artigo 30 (CONVENÇÃO SOBRE OS DIREITOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA, 2008, p.58-59), que trata da “Participação na vida cultural e em recreação, lazer e esporte”, é reconhecido o direto de as pessoas com deficiência terem acesso aos bens culturais oferecidos de maneira acessível. Isso vai de programas televisivos até a apresentações culturais e esportivas, a fim de promover o desenvolvimento do potencial “criativo, artístico e intelectual”. Tal posicionamento deixa claro que os ambientes como cinema, teatro, escola, clubes e locais de práticas esportivas devem oferecer um espaço que garanta a autonomia a essas pessoas da mesma forma que oferecem aos que não têm deficiência.

Para o Estado brasileiro, assumir essa Convenção como emenda significou também assumir um compromisso com quase um quarto da população brasileira, ou seja, cerca 45 milhões de pessoas que afirmaram, segundo o censo do IBGE de 2010, ter pelo menos umas das deficiências pesquisadas. No Estado do Rio Grande do Norte, são mais de 300 mil, entre os quais, cerca de 130 mil configuram-se num quadro de deficiência visual com perdas totais ou parciais da visão. Nesse sentido, a necessidade de inserir essa parcela da população de maneira mais incisiva nas Leis Federais era urgente, o que acabou acontecendo devido ao compromisso governamental instituído a partir de 2008.

Em 1991, por causa dos movimentos sociais de inclusão, foi instituída a Lei 8.213, ou Lei de Benefícios da Previdência Social, que dedicou os artigos de 89 a 93 a tratar das pessoas com deficiência ou reabilitadas. Ela prevê, entre muitos fatos, não só a reserva de vagas trabalhistas para esses sujeitos mas também a (re)educação e (re)adaptação profissional e social. Pela Lei, “a empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas

portadoras de deficiência, habilitadas [...]” (BRASIL, 1991). Ainda a respeito de inclusão no mercado de trabalho, o Decreto 3.289, de 1999, nos artigos que correspondem do 34 ao 45, prevê a reserva de 5% vagas em concursos, assegurando às PcDs a possibilidade de concorrer, como aponta o artigo 37, em par de igualdade aos demais candidatos a um “cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que é portador.” (BRASIL, 1999)

Esses e outros posicionamentos construídos historicamente impulsionaram, no ano de 2015, o início da execução da Lei 13.143, conhecida como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Isso foi feito com o intuito de tornar exequível, de forma mais incisiva, a convenção, apresentando métodos de análise de deficiências e barreiras, a fim de ser aplicadas, também, medidas acessíveis para a superação dessas barreiras. A Lei considera “pessoa com deficiência” aquela que tem algum impedimento de longo prazo de natureza física, mental, sensorial ou intelectual. Esse impedimento, em interação com determinadas barreiras, pode, como afirma o artigo segundo, “obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (BRASIL, 2015).

Em seu artigo terceiro, essa lei apresenta algumas definições que serão essenciais para a compreensão da deficiência no âmbito desta pesquisa. Dentre elas, destacamos a forma como é tratada a acessibilidade e a comunicação:

[...] acessibilidade: possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, de espaços, mobiliários, equipamentos urbanos, edificações, transportes, informação e comunicação, inclusive seus sistemas e tecnologias, bem como de outros serviços e instalações abertos ao público, de uso público ou privados de uso coletivo, tanto na zona urbana como na rural, por pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida;

[...]

comunicação: forma de interação dos cidadãos que abrange, entre outras opções, as línguas, inclusive a Língua Brasileira de Sinais (Libras), a visualização de textos, o Braille, o sistema de sinalização ou de comunicação tátil, os caracteres ampliados, os dispositivos multimídia, assim como a linguagem simples, escrita e oral, os sistemas auditivos e os meios de voz digitalizados e os modos, meios e formatos aumentativos e alternativos de comunicação, incluindo as tecnologias da informação e das comunicações (BRASIL, 2015).

A partir do ponto de vista apresentado nesse Estatuto, é necessário pensar na inclusão como uma maneira de oferecer oportunidade segura e autônoma para as pessoas com deficiência, inclusive, comunicarem-se em sociedade. Essa comunicação vai desde as interações entre sujeitos até as interações com o mundo

ao redor, ou seja, é necessário ofertar possibilidades de as pessoas com impedimentos diversos estarem diante de obras de artes, bens culturais, esporte, lazer, entre outros artefatos, de maneira a compreender o que está a sua frente. De outro modo, não há inclusão de maneira eficiente; no máximo, é dado o acesso e não a acessibilidade.

A necessidade de participação plena e efetiva na sociedade torna cada vez mais legítimos os protestos das pessoas com deficiência por espaço, visibilidade e voz social, e, por conseguinte, pela superação das formas de interdição à respectiva participação social. Um exemplo disso foi o movimento que surgiu no século XX, com destaque para a sua segunda metade, chamado Nada sobre nós sem nós, que vai de encontro às organizações, planejamentos, leis, recursos e tudo que pode surgir em prol das PcDs sem consultá-las e sem considerar a sua relevante participação. Assim, almejava-se que a constituição de políticas públicas orientadas para as pessoas com deficiência considerasse a participação dessas pessoas não apenas como beneficiárias, mas, sobretudo, como protagonistas. A consequência, sem dúvidas, foi o avanço e leis estabelecidas para garantir e ratificar os direitos das pessoas com deficiência, bem como os esforços de quebra de barreiras, de diversas ordens, que restringem a participação social.

O enunciado "acessibilidade", por conseguinte, expressa um posicionamento responsivo e, portanto, político à própria compreensão de "acesso" que orbitava em torno da democratização ou massificação de determinadas esferas de participação social, mas que não considerava as pessoas com deficiência como partícipes. Nesse contexto, oferecer acesso não significa tão somente oferecer acessibilidade, uma vez que é necessário não apenas permitir que os indivíduos sejam usuários de determinado produto cultural mas também que eles sejam protagonistas na produção. Em filmes, peças de teatro, exposições artísticas, entre outras ações, é necessário que a inclusão seja pensada desde o início; o que acontece, muitas vezes, é que ela é colocada no final, como acessório ou medida de urgência, caso surja espectador com deficiência.

Neste sentido, destacamos, especialmente, a acessibilidade comunicacional, que foca na necessidade de desencadeamento de processos tradutórios que considerem as singularidades comunicacionais das pessoas com deficiência como sujeitos respondentes que lutam pela participação nas diversas esferas sociais de interação enunciativa. Sem transpassar as barreiras comunicacionais, as pessoas

com deficiência acabam, por conseguinte, sentindo dificuldades em conseguir superar as barreiras atitudinais, sociais, arquitetônicas, entre outras.

Como recursos acessíveis, destacamos os que são estudados pela Tradução Audiovisual Acessível (TAVa), a fim de contribuir com a apreensão dos sentidos pelas pessoas com deficiência, quais sejam: Legenda para Surdos e Ensurdecidos (LSE), Audiodescrição (AD) e Interpretação em Libras. Em 2016, a Secretaria do Audiovisual, do Ministério da Cultura, lançou o Guia para produções audiovisuais acessíveis (NAVES; MAUCH; ALVES; ARAÚJO, 2016), um material que se destina a todos aqueles que almejam trabalhar com TAVa, mais especificamente LSE, AD e interpretação em Libras.

A partir das ideias apresentadas sobre os aspectos normativos que envolvem a deficiência, o próximo subcapítulo afunilará a discussão para as questões que dizem respeito à audiodescrição e à deficiência visual.