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As relações com os Estados Unidos, outrora um parceiro preferencial, haviam sofrido uma inflexão já desde os anos 50: da aproximação que se iniciara com a gestão do Barão do Rio Branco (1902 – 1912), com vistas a contrabalançar o poder europeu na recente república, passava-se a uma postura mais crítica em relação àquele país e à busca da ampliação das opções de parceria, atitude que seria denominada de Universalismo ou Globalismo. O que era apenas uma crítica no governo de Juscelino Kubitscheck (1955-60), que tentou obter uma cooperação efetiva daquele país ao desenvolvimento nacional com a OPA (Operação Pan- Americana), sob o argumento de que o alinhamento ideológico sem ajuda econômica em nada redundaria, passou a “esfriamento” em Jânio Quadros e João Goulart, com a PEI (Política Externa Independente), e transformou-se em “conflito administrado” na política externa de Costa e Silva, após o interregno de reaproximação promovido pelo governo de Castello Branco.

Conforme importante periodização proposta para a política externa brasileira, a ação diplomática do país teria oscilado, desde o início do século XX, com a ascensão ao MRE do seu futuro patrono, até os anos 90, entre os paradigmas do americanismo e do globalismo. O primeiro paradigma se embasaria na concepção de que a aproximação com Washington

1 Tais conflitos resultaram no rompimento, por parte de Geisel, do acordo militar entre os dois países, que vigorava desde 1952.

aumentaria os recursos de poder do país e, conseqüentemente, seu poder de barganha; o segundo, em alternativa ao anterior, optava pela diversificação das relações exteriores com vistas ao aumento do poder de negociação no mundo, inclusive em relação aos Estados Unidos. O americanismo, por sua vez, teria adquirido dois matizes, a saber, o americanismo pragmático e o ideológico. Este “seria construído a partir do privilegiamento de fatores de ordem normativo-filosófica e de uma suposta convergência entre brasileiros e norte- americanos que justificavam a aliança com os Estados Unidos” (PINHEIRO, 2000, p.308- 309)2. Aquele defenderia o aproveitamento das oportunidades abertas a partir da aliança sob um ponto de vista mais instrumental. E a periodização propriamente dita assim se apresenta:

Historicamente, a política externa brasileira pode ser dividida em quatro grandes momentos, correspondendo às fases de hegemonia de cada um desses paradigmas: do início do século até o final da década de 50 – mesmo levando-se em conta as vicissitudes do período de eqüidistância pragmática [...] –, e novamente entre 1964 e 1974, quando o americanismo foi o paradigma hegemônico; os anos da Política Externa Independente (1961- 1964) quando surge o globalismo que, interrompido por cerca de dez anos por uma nova onda americanista, ressurge no governo Geisel (1974), só cedendo lugar para as novas articulações dos anos 90 quando chega a seu limite (grifos originais). (ibidem p.308-309).

A respeito da retomada do globalismo, há uma pequena divergência entre alguns autores no que se refere à data, visto que uns situam essa atitude no governo Costa e Silva (1967-1970) e não no de Geisel. Mas isso em nada afeta a análise. Cervo, por exemplo, afirma que, durante o governo Costa e Silva houve uma “recuperação de tendências”, sendo que: “As relações especiais foram sacrificadas pelas conveniências brasileiras, que determinaram uma estratégia externa ‘self serving’, em contraposição à política tutelar desejada pelos Estados Unidos” (CERVO, 1992, p. 367). E após apontar alguns aspectos das divergências de posições, resume: “Quase tudo levava ao conflito, mas sua intensificação não convinha, mesmo ao Brasil, que acionou uma estratégia de flexibilidade para administrá-lo em benefício próprio: manteve intensa e permanente negociação bilateral e criou poder de barganha pela ampliação das relações com terceiros” (idem, p. 367).

Rubens Ricupero, por sua vez, assim sintetiza esse distanciamento entre os dois países:

Em sua vertente ideológica, a antiga convergência foi-se esfarelando, primeiro por efeito de concepções sobre a organização da economia mundial dificilmente conciliáveis e que se acabaram fixando na polarização Norte- Sul. O Brasil passou a figurar com destaque, desde o fim dos anos 60, dentre os contestadores da legitimidade da ordem de Bretton Woods (...). O

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pensamento e a prática brasileiros em relações internacionais nesses anos só podem interpretar-se como nítida recusa dos alinhamentos automáticos do bipolarismo. A tese sobre o congelamento do poder mundial, a não adesão ao TNP, a resistência de uma leitura através do prisma Leste-Oeste de situações como a da guerra civil angolana, do conflito do Oriente Médio, dos problemas da América Central constituem evidências desse não alinhamento (RICUPERO,1996, p. 52).

No que diz respeito ao governo de Ernesto Geisel (1974-1979), como se disse antes, as relações tornaram-se mais conflituosas do que no governo anterior. Lessa ressalta a redefinição das relações com os EUA como o primeiro e mais decisivo passo da política externa daquele governo, atitude esta que teve como componentes econômicos a desvinculação do Brasil em relação ao mercado dos Estados Unidos, com o crescimento relativo dos fluxos com outros países; a diminuição da complementaridade entre as duas economias, uma vez que o Brasil começa a aparecer como competidor daquele país em produtos industrializados; e a limitação da cooperação financeira e de investimentos com aquele país, visto que o mesmo vinculava tal cooperação à compra de equipamentos e não proporcionava a transferência de tecnologia, ficando, portanto “limitados a uma típica relação Norte-Sul”. Como componentes políticos, ressaltam-se a necessidade de autonomia brasileira, até mesmo para o público interno, que se indignou com a oposição norte-americana ao acordo nuclear com a Alemanha e à interferência na área de direitos humanos (LESSA, 1995, p. 27- 30).

Tendo em vista que, apesar dos conflitos, os Estados Unidos eram um parceiro inevitável, com o qual não interessava acirrar as divergências, sobretudo em um momento de vulnerabilidade econômica, a tarefa da nova chancelaria era de encontrar um novo trilho para os contatos bilaterais. A rigor, já no final do governo Geisel tais relações haviam caminhado de um auge crítico, em 1975, para uma estabilização das discordâncias (ibid. p. 26).

Nos debates travados na imprensa, pode-se perceber forte correspondência entre as tendências supracitadas da diplomacia brasileira – o americanismo e o globalismo – e as correntes de pensamento expressas nos periódicos, respectivamente, o liberal-ocidentalismo e o universal-independentismo. Até mesmo a subdivisão entre os matizes ideológico e pragmático se manifestava nos jornais da primeira corrente, sendo que se recorria a ambos, conforme a discussão que se apresentasse.