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A vulnerabilidade do Brasil em razão da crise da dívida, que chegou a patamares insustentáveis6, paradoxalmente, foi um fator que lhe deu maior visibilidade e poder de barganha no aspecto econômico. A virtual falência do México e da Argentina, nesse ano, fez com que os olhos dos países desenvolvidos, sobretudo dos Estados Unidos, e dos bancos internacionais se voltassem para o Brasil e temessem que sua iminente falência provocasse um efeito dominó pelo mundo afora. Este é um dos fatores que explicam a ajuda oferecida pelo presidente Reagan, na forma de um empréstimo de U$ 1,2 bilhão de dólares e de um simbólico respaldo à aludida seriedade da política econômica brasileira, quando de sua visita em dezembro. Isto resultou no compromisso do Banco Mundial em aumentar o volume de empréstimos ao Brasil sem aplicar o temido princípio da graduação no ano seguinte. Desse encontro, também, resultaram negociações que influenciaram na decisão brasileira de recorrer, em 1983, ao FMI (Fundo Monetário Internacional).

6 U$ 81 bilhões em 1981e 98,3 bilhões em 1983. cf. ONU, Statistic Yearbook, (1993, p. 170-171), apud Sennes (2003, p. 92).

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Manchete do Jornal do Brasil estampava: “Guerreiro alerta que é pior para EUA se Brasil parar” (JB, 02/10/1982, p. 12). A Gazeta Mercantil registrava que o governo americano concluiu que “não poderia continuar mantendo uma atitude de olímpica indiferença (...) esperando que as forças livres de mercado resolvessem todos os problemas” (GM, 07/04/1982) e que:

Washington percebe agora com clareza que a ampliação da crise internacional de pagamentos, multiplicando-se o número de países insolventes, minaria todo o sistema financeiro internacional, levando de roldão os bancos internacionais. Um Brasil insolvente, depois do que ocorreu com a Polônia, o México, a Argentina (...) poderia precipitar a catástrofe (idem).

Outros jornais concordavam: “Não pode haver interesse norte-americano em instabilidade no Brasil. Estamos com desempenho melhor do que muita gente. (...) Vamos nos tornando mais necessários a cada dia que passa” (CB, 27/11/1982); “(...) dois episódios significativos – o das Falklands e o do México – serviram de alerta: o Brasil voltou a desempenhar um papel fundamental no horizonte regional da diplomacia norte-americana” (JB, 26/11/1982).

A percepção de que a crise da dívida brasileira o tornava mais importante aos olhos dos EUA era um consenso, mas a forma de abordar o problema era distinta. O Jornal de Brasília (J. de Brasília, 01/12/1982, p. 6), sempre mais otimista na avaliação do papel do Brasil no cenário internacional, dava um tom mais nacionalista e enfatizava seu peso como “potência de médio porte, no limiar do clube dos países ricos” que emergia no cenário da crise “como fator dissuasório e moderador”. E atribuía a responsabilidade pela crise não apenas a fatores internos, mas, sobretudo, a “numerosos indutores externos, como a inflação internacional que nos foi exportada via juros, a discriminação no comércio e a sujeição das instituições multilaterais aos interesses nacionais dos países ricos”; portanto, enfatizava “a recusa da responsabilidade isolada por dificuldades que não criamos sozinhos”. E advertia: “Ou o sistema salva o Brasil ou o Brasil leva o sistema à derrocada”. Outro colunista, no mesmo jornal, reforçava essa idéia: “Os países credores ganharam na alta dos juros e na relação das trocas, espoliando os devedores. Qualquer facilitação do serviço da dívida mal passará de simples devolução do que os credores tomaram dos devedores sem aviso prévio” (J. Brasília, 20/04/1983). E enfatizava que a dívida só poderia ser paga com o aumento das exportações, o que era dificultado pelo protecionismo, mas que os credores temiam algo como uma concordata em bloco. Por isso, constatava: “A saída terá de ser, necessariamente, política”.

O Jornal do Brasil, o Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo realçavam principalmente a necessidade do entendimento, avaliavam a ida ao FMI como um sinal positivo de maturidade e aproveitavam a ocasião para reafirmar suas posições ocidentalistas e fustigar as posições nacionalistas. O primeiro (JB, 26/11/1982) reconhecia: “É posição tradicional do JORNAL DO BRASIL a de que as relações entre o Brasil e os Estados Unidos não podem ser senão as melhores possíveis” e afirmava que os dois países deveriam “tender a uma relação perfeita – (...) o que nada tem a ver com subordinação(grifo original)” e que o “entendimento tradicional foi um dos trunfos com que o Brasil contou no hemisfério”. Mas, analisava: “Ainda existe, é verdade, entre nós um tipo de nacionalismo torto de que os Estados Unidos têm sido o alvo principal”; e concluía que “esse nacionalismo míope seria uma persistência do atraso”.

O segundo (J.Tarde, 29/11/1982), ainda que criticasse a indiferença dos EUA em relação à América Latina, ressaltava os resultados positivos da visita como o “encaminhamento satisfatório” das negociações com o FMI, a intermediação de Washington junto a bancos privados americanos e ocidentais, o acordo bilateral, referendado pelo GATT, para a “prorrogação do crédito-prêmio do IPI aos exportadores brasileiros por mais dois anos”. Ao comentar um discurso de Saraiva Guerreiro no GATT, no qual afirmava que a recuperação da economia mundial dependia do crescimento dos países em desenvolvimento, reconhecia que “raras vezes temos concordado com o que diz e faz o sucessor do embaixador Silveira na chefia do Itamaraty. Esta é uma delas”. E polemizava:

A verdade, para supremo desgosto de certos setores da nossa intelectualidade subdesenvolvida, (...) que já botou a boca no mundo para advertir-nos dos perigos para a nossa independência e soberania da vinda do presidente norte- americano (o traidor da Argentina!) e de todos aqueles que, coerentes com seus objetivos ideológicos, não podem deixar de temer a ultrapassagem de uma orientação diplomática como a que vinha seguindo até ontem o Itamaraty, com seu restrito aplauso, é que, por paradoxal que possa parecer, devemos (ao) choque do México– (...) ao lado do Brasil um dos mais importantes da América Latina – o reconhecimento súbito e inexplicavelmente retardado por parte de Washington da sua dependência em relação às principais potências latino-americanas e, particularmente em relação ao Brasil (grifos originais) (J.Tarde, 29/11/1982).

Por fim, em tom dramático, arrematava com as implicações políticas do fato: “Da evolução da nossa situação econômica e financeira depende, portanto, a salvação da América Latina para o Ocidente. E a América Latina é a única região desse mitológico Terceiro Mundo, tão presente na retórica demagógica do Itamaraty, ainda recuperável para a causa do mundo livre”.

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Em termos de implicações políticas, como se disse anteriormente, a ajuda econômica provocou entre os setores mais nacionalistas e universalistas a suspeita de que o preço seria um novo alinhamento, suspeita essa irritadamente desmentida pelo chanceler Saraiva Guerreiro, como registrou a Folha de S. Paulo (04/12/1982, p. 8). Diante da seguinte pergunta de um repórter: “A boa vontade do governo americano significa mudança da política externa brasileira?”, o chanceler respondeu: “Claro que não. Não sei de onde saiu essa idéia boba”. Também o porta-voz Bernardo Pericás teve que desmentir tal suspeita quando lhe perguntaram se a ajuda econômica significaria apoio aos Estados Unidos na América Central e uma redução das posições terceiro-mundistas (OESP, 05/12/1982, p. 18).

Apoiando as declarações do ministro Guerreiro, a coluna de Carlos Conde (J. de Brasília, 30/12/1982) registrava: “Guerreiro fez questão de repetir, já agora quase de forma exaustiva, que essa boa reaproximação com Washington e as notórias dificuldades financeiras que o Brasil atravessa não constituem motivo para alterar a atual política externa brasileira”. E completava o raciocínio referindo-se aos críticos do Itamaraty: “Guerreiro ironiza um pouco aqueles que por aqui julgam chegada a hora da volta ao ‘alinhamento automático’ que tanto os agrada (em razão da ida ao FMI). O ministro disse que sempre achou aquela ilusão ridícula”.

Mesmo anteriormente, quando anunciada a visita de Figueiredo, esse jornalista afirmava que o governo Reagan faria “uma nova tentativa para ‘obter o endosso – e, se possível a colaboração tácita do Brasil – a seus esforços para conter a expansão marxista no hemisfério, via Cuba e Nicarágua’” (J.Brasília, 29/11/1982). E analisava: “Seria incoerência grande manifestar-se não-intervencionista na teoria e intervencionista na prática. A política brasileira, de aproximação com a América Latina, desaconselha um alinhamento desse tipo com o Governo Reagan”.

No mesmo sentido, referindo-se ao empréstimo de U$ 1,2 bilhões e à ida ao FMI, o presidente do PMDB, Ulysses Guimarães, como era comum no discurso da oposição, alertava naquele periódico: “Meteram as finanças do Brasil na UTI do Fundo Monetário Internacional. Desesperadamente tentam salva-las com transfusão de sangue e oxigênio (...) O empréstimo é político. Logo tem um preço político (J.Brasília, 05/12/1982)”. E completava dizendo que o modelo econômico havia falido completamente e que os empréstimos cresciam “como um câncer por juros onzenários gerados pela manipulação monetarista dos países industrializados, que assim exportam para os povos miseráveis sua inflação, seu desemprego e sua balança de pagamentos desequilibrada (idem)”.

Ainda que não se tenha concretizado, o apoio brasileiro às posições norte-americanas no conflito Leste-Oeste não esteve ausente das intenções desse país, não se tratando, portanto,

de uma idéia “tão boba” assim, como atestam alguns autores, referindo-se às concessões feitas na questão da dívida e à liquidação dos contenciosos bilaterais sobre os direitos humanos e sobre o Acordo Nuclear alemão: “Reagan pensou em cooptar o Brasil à sua política (...) Durante seu governo, inúmeras concessões feitas ao Brasil tinham sua explicação no mesmo intento” (CERVO, 1992, p. 397-398). Os resultados esperados por Reagan no que se refere à opção brasileira na Guerra Fria, entretanto, não foram alcançados, mas outro objetivo mais geral obteve razoável sucesso, a saber, evitar uma quebra em cadeia que afetasse todo o capitalismo, como temia o governo americano. Com efeito, no ano seguinte ao empréstimo, o secretário do Tesouro Donald Regan afirmou que o receio dos Estados Unidos era que a crise provocasse a redução das importações americanas por esses países e o aumento exagerado do protecionismo comercial, o que seria “não apenas fatal para o espírito capitalista que predomina na economia do Mundo Ocidental, como também acabaria por criar um círculo vicioso que só contribuiria para o agravamento das tensões internacionais” (JB, 03/01/1983).