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Além da deterioração do intercâmbio, outro fator determinante para frear o entusiasmo quanto à futura integração, desfazendo o raro clima de consenso da imprensa quanto a algum tema da política externa, foi o surgimento do conflito em torno das Ilhas Malvinas (ou Falklands, conforme o interlocutor).

A Argentina, sob o governo de Galtieri, decidira lançar-se à aventura de retomar as Ilhas Malvinas da Inglaterra, ocupadas por este país nas primeiras décadas do século XIX. Conforme alguns autores8, os militares avaliaram, erroneamente, que em razão de sua forte reaproximação com os Estados Unidos, causada por posições convergentes em relação ao conflito Leste-Oeste na América Central, esse hegemon do continente apoiaria as pretensões argentinas em detrimento dos interesses ingleses. Além disso, a escassa legitimidade de que gozava o regime militar naquele momento, em razão não só do fracasso econômico, mas das revelações que emergiam acerca da tortura, repressão e eliminação dos opositores, com destaque para as manifestações das Mães da Plaza de Mayo, levou os militares a tentarem criar (ou ressuscitar) um inimigo externo, a Inglaterra, para promover a coesão interna. Em dois de abril de 1982 ocorreu a invasão e iniciou-se a breve guerra, da qual a Argentina, que não obteve o apoio norte-americano, saiu derrotada, e os militares, humilhados, o que apressou drasticamente o processo de democratização.

A posição do governo brasileiro em relação ao conflito foi de reconhecer formalmente o direito da Argentina ao território, retomando posição da diplomacia brasileira assumida em

1833, mas de condenar o método da força usado pelo país vizinho na obtenção do seu pleito, preconizando uma saída diplomática, negociada. Esta posição, delicada e desconfortável tendo em vista as perdas de se indispor com qualquer um dos lados, foi denominada, pela imprensa e mesmo pelo Itamaraty, de “neutralidade amiga” em relação à Argentina e também de “omissão estudada”9. Conforme analisou Cervo e Rapoport, o Brasil optou pela neutralidade, “mas uma neutralidade imperfeita, que, na prática, favorecia a Argentina, ao conceder-lhe ajuda material, inclusive militar, material bélico e aviões EMB-111 (...) enquanto assumia a representação de seus interesses na Grã-Bretanha” (1998, p. 323).

Mas, mesmo adotando uma posição mais favorável à Argentina do que à sua adversária, as relações bilaterais e a própria idéia de integração do continente sofreram com o fato. Conforme Sérgio Danese “Em 1982, a ênfase latino-americana, que inaugurou a diplomacia presidencial de Figueiredo e a manteve em ritmo acelerado, começou a ceder espaço aos demais eixos (...). É possível também que o conflito das Malvinas tenha tido uma incidência adversa, embora passageira, sobre o movimento geral de concertação política que começava a tomar força no Continente e que se consolidou nos anos finais da década de 80”. (DANESE, 1999).

A imprensa ficou dividida. Alguns jornais demonstravam apoio à posição do M.R.E., mas outros a criticavam com veemência. Até a forma pela qual eram chamadas as ilhas diferia conforme as posições: aqueles que apoiavam a Inglaterra denominavam-nas Falklands; aqueles relativamente neutros usavam os dois nomes: Malvinas-Falklands; e os que apoiavam a reivindicação argentina usavam apenas o nome Malvinas (que também era usado pelo então porta-voz do Itamaraty Bernardo Pericás).

Alguns jornais, como o Jornal de Brasília, demonstravam apoio à “neutralidade amiga” do Brasil no conflito, ao afirmar que “ao governo brasileiro interessa que o país vizinho tenha respeitado os seus direitos históricos” (J. Brasília, 17/08/1982, p. 13). O Globo, menos enfático, comentava que, em visita aos Estados Unidos, o presidente Figueiredo buscou “deixar claro o engajamento brasileiro com a visão latino-americana do problema das Malvinas (O Globo, 17/05/1982, p. 5). Mas, mais adiante, ponderava que o Brasil não estava interessado em fazer uma defesa tão veemente (...) da causa argentina porque isso poderia comprometer as relações com os Estados Unidos e a Europa” (O Globo, 17/05/1982, p. 5).

Outros periódicos, como O Estado de S. Paulo e o Jornal do Brasil se mostravam mais críticos. Em geral, os jornais da corrente liberal-ocidentalista apoiaram a Inglaterra e os

9 Conforme J.B., 20/04/1982, artigo “A ‘omissão estudada’ da diplomacia brasileira”, de Luiz Orlando Carneiro.

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da corrente universal-independentista apoiaram a Argentina ou, pelo menos, a posição do Itamarati de “neutralidade amiga” em relação ao país vizinho.

Em provocativo artigo, sintomaticamente intitulado “O intolerável ‘neo-rosismo’ do Itamaraty” (J. Tarde, 17/05/1982, p. 10), Otávio Tirso de Andrade, no Jornal da Tarde, invoca a tradição da Chancelaria brasileira para tripudiar sobre a posição então assumida pelo MRE. Segundo o autor do artigo, o “falso” Itamaraty de Brasília (pois o verdadeiro seria o do Rio de Janeiro) estaria apegando-se a um fato de menor importância na história de nossa política externa em detrimento da melhor tradição da casa, a começar por Alexandre de Gusmão, passando pelo Barão do Rio Branco, por Rui Barbosa, Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas. Do primeiro, estaria sendo ignorado o princípio do uti possidetis, uma vez que os ingleses já ocupavam a ilha; do patrono da casa, ignorava-se a herança de ter contestado, à época do conflito entre Brasil e Argentina sobre uma parte de Santa Catarina, o fato de que “os argentinos têm a solércia de mudar o nome aos territórios que pretendem conquistar”, como fizeram ao denominar errônea e capciosamente Missões o território brasileiro; de Rui Barbosa, a tese da arbitragem nos conflitos internacionais defendida em Haia, em 1907; de Arinos, o discurso na ONU, em 1962, no qual defendia que é uma constante na política externa brasileira o não reconhecimento das anexações territoriais pela força; por fim, de San Tiago Dantas se negligenciava a independência da política externa e a defesa da tradição juridicista de defesa da subordinação às “normas civilizadas” em detrimento de soluções puramente políticas.

O autor contestava o argumento do governo brasileiro de “sempre” haver reconhecido o direito argentino às ilhas:

‘Sempre’ coisíssima nenhum! O tal ‘reconhecimento’ é uma simples ‘nota’ do então Ministro de Estrangeiros, Bento da Silva Lisboa, à Legação do Brasil em Londres para que apoiasse a pretensão de Buenos Aires às ilhas inglesas. Corria o ano de 1883, as Falklands eram praticamente desabitadas, o Brasil vivia o agitado período da regência. A ingênua atitude de nossos ainda bisonhos diplomatas era desculpável à época. A independência do Brasil ocorrera havia apenas onze anos (...). Temia-se a Restauração (...). O continente inteiro eriçava-se ante o expansionismo das antigas Metrópoles (idem).

E, em um arroubo de exagero, Tirso de Andrade dizia que, ao negligenciar a importância da tese do uti possidetis para a defesa nacional, “a intolerável postura dos atuais formuladores de nossa política externa [seria] conduta passível de caracterizar-se como de traição nacional”.

Nesse artigo aparece também uma crítica que se tornaria recorrente entre os opositores do MRE: a de que o Itamarati tomaria suas decisões com vistas a agradar à oposição: “A essa atitude demissionária pretende-se fantasiar de política externa e para ela convergem os aplausos de emedebistas, dos comunistas e de outros setores da esquerda que mandaram às favas as mães da Praça de Mayo com o mesmo cinismo com que o comunista Molotov se abraçou ao nazista Ribbentrop (...)” (idem).

No entanto, embora não deixasse de condenar a política externa da gestão Guerreiro em geral, o mesmo jornal, em editorial pouco anterior, manifestava opinião mais amigável em relação à postura da chancelaria brasileira no conflito, classificada de “sensata”, pois: “ressalvados alguns erros de dosagem na solidariedade continental, o Brasil agiu muito mais como país ocidental, que realmente é, do que como membro de um grupo no qual o atual governo tenta colocá-lo à força e com o qual ele nada tem em comum” (J. Tarde, 14/05/1982).

Percebe-se aí, como em inúmeras outras manifestações da corrente denominada por Tânia Manzur de liberal-ocidentalista, uma preocupação em dissociar o Brasil do Terceiro Mundo e agrupá-lo no rol da “civilização ocidental”, mais de acordo com a tradição da diplomacia brasileira, conforme ressaltavam os membros dessa corrente.

Ilustrativo dessa posição foi o artigo publicado pelo deputado e jornalista Herbert Levy, na Folha de S. Paulo:

Quero saber qual o brasileiro que não ouviu, sem um sentimento de indignação, o nosso embaixador na ONU, pela televisão, falando em

espanhol, a defender teses em relação às Malvinas que outra coisa não

seriam senão a consagração do uso da força e o repúdio a tudo quanto acreditamos e defendemos como integrantes do mundo ocidental que se opõe aos métodos do expansionismo soviético (grifo original) (FSP, 20/05/1982).

A Guerra das Malvinas suscitou, mais do que um esfriamento do entusiasmo com as relações bilaterais, um alerta sobre as intenções argentinas, reacendendo, momentaneamente, as hipóteses confrontacionistas. O jornalista Carlos Castello Branco, em sua coluna, apontava que episódios inesperados provocados por governos sem as “inspirações pacifistas impostas pela tradição do Itamarati (poderiam) provocar uma revisão da estratégia interna e externa do governo brasileiro” (JB, 02/06/1982, p. 2), sugerindo a mudança do conceito de um único inimigo (tanto interno quanto externo) - o comunismo – pela percepção de que outros conflitos, fora do enquadramento Leste-Oeste poderiam surgir no nosso continente e isso colocaria “em nova faixa de prioridade a questão do reequipamento das Forças Armadas

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brasileiras, as quais internamente reavaliam o seu próprio papel na conjuntura nacional” (JB, 02/06/1982, p. 2).

Nesse mesmo jornal, o jornalista Otávio Tirso de Andrade novamente se manifesta para alertar que o governo brasileiro deveria ficar mais atento à realidade sul-americana e cuidar dos problemas da defesa nacional, pois, segundo ele: “A América do Sul espanhola está armada até os dentes. Contra quem, afinal?” (JB, 28/06/1982).

Outro efeito da guerra das Malvinas, que não passou despercebido pela imprensa10, foi a desarticulação do sistema interamericano de defesa, pois deixou claro, para os latino- americanos, que a aliança militar prioritária para os Estados Unidos era a OTAN e não o TIAR (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca). E, por conseguinte, a OEA (Organização dos Estados Americanos) saía desprestigiada do evento. Também emerge, mas de forma pontual e não generalizada, uma preocupação com o futuro do Atlântico Sul bem aos moldes da Guerra Fria. O Jornal da Tarde cedeu espaço para o embaixador aposentado e então professor da Universidade de Brasília J.O. Meira Penna manifestar sua preocupação com o fato de que conflitos no Atlântico Sul só iriam favorecer a União Soviética, com crescente poderio naval, segundo ele, em um conflito com a OTAN. Para o professor, “a ambigüidade e incoerência do apoio em má hora concedido à tresloucada aventura do General Galtieri” só contribuía para agravar o problema, pois acabava respaldando a pretensão argentina não apenas às Malvinas, mas a um enorme conjunto de ilhas do Atlântico Sul e parte da Antártida (J. Tarde, 08/09/1983, p. 8).

Nesse episódio, o Itamaraty também foi criticado por tomar atitude pouco condizente com o respeito ao Direito Internacional, com os “interesses nacionais e (os) valores do espírito” em nome da proximidade geográfica e de uma “sudamericanidad” questionável (OESP, 11/05/1982).