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4 A DIMENSÃO CULTURAL DA NATUREZA E DAS SEMENTES

4.5 AS SEMENTES TRADICIONAIS COMO BENS DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Verificamos como diversas manifestações culturais (alimentares, medicinais,

ritualísiticas etc) dependem das sementes tradicionais para a sua manutenção. Por isso, ainda

que as sementes tradicionais não sejam referidas expressamente como patrimônio cultural

pelo art. 216 da CF/88, sem elas diversas manifestações culturais não podem ser realizadas e

preservadas, merecendo, portanto, a mesma proteção.

Não se afirma a necessidade de inclusão das sementes tradicionais de forma específica

e expressa nos incisos do art. 216 da CF/88. O fundamental é compreender que elas, assim

como os demais bens culturais previstos de forma exemplificativa naquele dispositivo, são

integrantes do nosso patrimônio cultural, merecendo a proteção decorrente dessa qualificação.

A positivação tem sido considerada instrumento importante de afirmação e defesa de

direitos por torná-los mais evidentes. Mas de outro lado, é inviável introduzir no art. 216 de

forma exaustiva todos os bens culturais existentes.

Isso por várias razões, tais como: (a) a cultura é dinâmica, e como consequência

alguns bens culturais atuais podem não possuir valor cultural num futuro breve, ao passo que

diversos outros podem passar a ter essa qualificação; (b) é impensável estabelecer uma

relação completa de todos os bens culturais de todos os grupos sociais brasileiros – se a

cartografia dos povos e comunidades tradicionais é um desafio descomunal, como então

relacionar todos os bens culturais utilizados por esses grupos sociais, e ainda por toda a

sociedade? (c) ainda que fosse possível materialmente estabelecer essa relação num dado

momento, ela é até mesmo indesejável, pois representaria um engessamento do rol de bens

culturais, já que tal relação não seria atualizada na mesma velocidade que as escolhas sociais

quanto aos bens culturais.

A doutrina apresenta três métodos para a definição dos bens culturais a serem

tutelados: a) enumeração, segundo o qual todos os bens culturais deveriam ser exaustivamente

listados, o que é simplesmente impossível; b) classificação, segundo o qual a tutela dos bens

culturais dependeria de uma decisão específica da autoridade competente, sem a qual tais bens

não teriam a proteção cultural; c) categorização ou da conceituação, segundo o qual seria

adotada uma descrição genérica dos bens, permitindo a sua categorização por seu valor de

interesse ou de referência, que é extraído da própria CF/88 (SOARES, 2009).

Ainda que o Decreto-lei n.º 25/37 permita a utilização do critério da classificação (os

bens são considerados como integrantes do patrimônio cultural após ato administrativo

reconhecendo essa qualidade), entende-se que o caminho apontado pela CF/88 seja o da

categorização ou conceituação. Isso porque o art. 216, caput, adota a teoria do valor de

referência como pressuposto para a seleção dos bens culturais, e o § 5º do mesmo dispositivo

demonstra que os bens a serem protegidos são aqueles categorizados como detentores de

reminiscências históricas dos antigos quilombos (SOARES, 2009).

Assim, o enquadramento das sementes tradicionais no conceito de bens culturais

decorre do que já foi estudado sobre elas, demonstrando que estão abrangidas no caput do art.

216 da CF/88, segundo o qual constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza

material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à

identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira

(BRASIL, 1988a).

As sementes tradicionais preenchem todos os requisitos do caput do art. 216 da CF/88,

pois são bens materiais portadores de referência à identidade, à ação e à memória de diversos

grupos sociais formadores da chamada sociedade brasileira, conforme analisado

anteriormente. Por isso os instrumentos de tutela do patrimônio cultural podem ser utilizados

para a proteção das sementes tradicionais. Esse é o tema do próximo capítulo.

5 A TUTELA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL

Vimos no capítulo anterior quais são os bens que se incluem no conceito de

patrimônio cultural, ressaltando que o rol previsto na CF/88 é meramente exemplificativo. Os

bens naturais, especialmente as sementes tradicionais, devem ser considerados bem culturais,

pois sem eles haveria uma perda inestimável de manifestações culturais, bem como porque

são bens portadores de referência à identidade, à ação e à memória de diversos grupos sociais

formadores da chamada sociedade brasileira, nos termos do caput do art. 216 da CF/88.

O fato de ser um bem ambiental não impossibilita que as sementes recebam proteção

em razão de outros critérios. Por isso diversos bens naturais não são protegidos apenas pela

tutela ambiental, mas também pela tutela específica cultural. Muitas vezes a tutela do meio

ambiente equivale à tutela dos bens culturais.

Assim, os bens culturais “gozam do aparato protetivo ambiental, por serem essenciais

ao desenvolvimento da vida humana em um patamar mínimo de dignidade (SOARES, 2009,

p. 87). Mas os bens culturais estão inseridos também em outro sistema protetivo. Por isso, os

instrumentos previstos na Lei de Política Nacional de Meio Ambiente (Lei Federal n.º

6.938/81) somam-se aos instrumentos específicos voltados aos bens culturais:

[...] no sistema jurídico brasileiro os bens culturais (materiais e imateriais) integram a conceituação de bem ambiental (macrobem). Por estarem abrangidos no conceito de bem ambiental, têm uma proteção “qualificada” e, além da proteção advinda de legislações específicas e de normas administrativas que regulamentam e limitam o uso do bem, podem dispor da tutela respaldada no sistema jurídico ambiental (SOARES, 2009, p. 88).

Porém, recorde-se que o objetivo deste estudo é analisar a dimensão cultural das

sementes tradicionais e as formas de proteção aplicáveis a elas em razão dessa qualificação

cultural. Por isso neste capítulo será analisada apenas a tutela cultural dessas sementes.

Nessa parte fina do estudo serão identificados mecanismos de proteção do patrimônio

cultural, desde instrumentos internacionais até a legislação infraconstitucional brasileira. Isso

porque o sistema normativo de proteção do patrimônio cultural no Brasil envolve

instrumentos internacionais (não apenas pelas suas disposições que devem ser seguidas pelo

Brasil, quando signatário, mas também porque as discussões travadas no âmbito internacional

são internalizadas pelos Países, influenciando a produção de normas ou a elaboração de

políticas públicas sobre o tem), a CF/88 e legislação nacional (leis, decretos, decretos-leis,

resoluções, portarias, deliberações).

Não será possível examinar neste breve estudo toda a legislação que versa sobre o

tema. O intuito é apenas referir as disposições mais importantes e que sejam suficientes à

compreensão de como funciona a proteção do patrimônio cultural brasileiro, e como essa

tutela pode ser aplicada às sementes tradicionais.

5.1 A TUTELA JURÍDICA DO PATRIMÔNIO CULTURAL NO SISTEMA JURÍDICO