2.2 CONCEITO DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS
2.2.3 Utilização de territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução
Prosseguindo no exame do conceito de povos e comunidades tradicionais estabelecido
no inciso I art. 3º do Decreto n.º 6.040/2007, refere-se a ocupação e uso de territórios e
recursos naturais como condição para a sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica. O vínculo de tais povos e comunidades com o território é tão relevante que o
inciso II do art. 3º do referido Decreto conceitua “Territórios Tradicionais” da seguinte forma:
Art. 3º Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por: [...]
II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a [sic] reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações (BRASIL, 2007b).
São, portanto, os territórios onde os povos e comunidades tradicionais podem
encontrar alimentos (coleta, caça, pesca, cultivo), seus medicamentos, os bens naturais e os
locais necessários aos seus rituais. É o espaço territorial fundamental à sua subsistência, à
preservação dos seus peculiares modos de vida e da sua cultura. Sem os respectivos espaços
territoriais não é possível a manutenção das suas identidades, e como consequência resta
ofendido o princípio da dignidade da pessoa humana (BURIOL, 2014a).
Há muita dificuldade na implementação do direito ao território em favor dos povos e
comunidades tradicionais, tanto em razão da conduta do Estado, quanto em razão da conduta
daqueles que não querem a efetivação de direitos em favor desses grupos sociais. E nessa
busca pela efetivação de direitos territoriais em favor desses grupos sociais são observadas
diversas formas de desrespeito, desde ofensas físicas, privação de direitos legítimos, e
desprezo manifestado em relação a certos modos de vida (HONNETH, 2011).
Ainda nesse sentido:
Os agentes e representantes dos movimentos sociais que denunciam invasões territoriais, tensões e confrontos, chamam a atenção do poder público, exigem
o cumprimento das leis e acordos e se expõem diante da mídia e de seus antagonistas. Eles são colocados em situação de criminalizados, reprimidos em sua atuação político social em defesa de seus direitos, garantidos institucionalmente pela Constituição Federal.
Essa criminalização é diretamente evidenciada através de assassinatos cometidos barbaramente, sem penalidade ao mandante; ameaças de morte a lideranças e seus familiares, forçando a saída de seu local de morada; intimidação através de ameaças; formas de desmobilização dos grupos, desestruturação das organizações de representação e, principalmente, de assédio financeiro a pessoas internas aos grupos para intermediarem possíveis negociações. Presenciam-se práticas de repressão arcaicas face às mobilizações sociais. Tais práticas ilustram uma reconfiguração dos conflitos.
No caso das comunidades quilombolas, a criminalização imposta impede que permaneçam em seus territórios, e atualizam-se com as repressões, visões anacrônicas, como a própria noção de quilombo, associado a lugar isolado, de pretos fugidos, baderneiros. Nos casos de conflitos extremos são vigiados e caçados por pistoleiros e capangas que cumprem papel que apresentam semelhanças com o capitão do mato (AYRES, 2013, p. 98).
São necessárias políticas públicas de reconhecimento e efetivação do direito a tais
territórios, pois sem eles e seus recursos naturais necessários os povos e comunidades
tradicionais não podem manter suas tradições, sua identidade, sua cultura.
No intuito de alcançar uma melhor compreensão sobre a necessidade de recursos
naturais foram realizadas entrevistas com o Pai de Santo Alberto Jorge Silva. Sobre os
recursos naturais necessários à preservação da sua cultura, referiu uma infinidade de bens
naturais e de espaços, tanto para realização de rituais, quanto para realização de oferendas,
fabricação de medicamentos, coleta de folhas e raízes, e outros procedimentos. Explicou que
os Povos de Matriz Africana possuem grande diversidade de tradições, especialmente em
razão dos diferentes locais de origem no continente africano
22(SILVA, 2014).
Em outra oportunidade mencionou um ritual de iniciação denominado Sasanha, que
envolve diversos elementos naturais, especialmente folhas aromáticas, o qual tem exigido
22
“Os historiadores afirmam que a vinda forçada de populações africanas se deu em três grandes ciclos: o primeiro, denominado Ciclo da Guiné (Século XV) trazendo pessoas da região da Costa da Guiné, expressão usual para designar toda costa ocidental da África, até porque Portugal e seus aliados ainda não tinham instalado entrepostos e fortes de apoio ao tráfico até então limitado do ponto vista numérico; Ciclo de Angola (Século XVII) quando ocorreu o maior comércio negreiro, trazendo milhões de pessoas, na condição de escravos para o chamado Novo Mundo e, em especial para o Brasil; Nesse ciclo são representativos do povo banto, o Angola e o Congo, embora se tenha por certo que subgrupos estiveram igualmente submetidos ao comércio negreiros [sic], assim como outros da Contra Costa, provenientes, sobretudo da região de Moçambique. Ciclo da Costa da Mina, que se entendeu até 1815, quando o tráfico entrou na ilegalidade até 1851. Está centrado no Golfo de Benim, também denominado Costa dos Escravos, onde se localizam atualmente Togo, Benim (antigo Daomé) e Nigéria. E nesses períodos chegaram ao Brasil os Fongbe (os falantes da língua Fon) os aqui reconhecidos indistintamente por jêjes (mundobim, Savalu, mahin) do Benin e do Togo, Os iorubás da Nigéria, denominados genericamente de nagôs e outros grupos. As três tradições que constituirão os Povos Tradicionais de Matrizes Africanas, vieram, principalmente, nos dois últimos ciclos: Os povos de língua banta, vindos no segundo ciclo, os povos de língua ewé-fon, no terceiro ciclo ao lados dos de língua ioruba” (ARATRAMA, 2014).
meses de procura por todos os recursos naturais indispensáveis à sua realização, e muitas
vezes torna-se necessária a compra de folhas em outros Estados (SILVA, 2014).
A dependência dos recursos naturais para a preservação dos peculiares modos de vida
inerentes aos povos de matriz africana pode ser exemplificada pela perda de rituais em razão
de eventuais deslocamentos. Por exemplo, a vinda para o Brasil acarretou a perda de rituais
pela inexistência, aqui, de recursos naturais específicos:
Os Orixás yorubás não são mais venerados em sua totalidade, no Brasil. Apesar da fidelidade à memória ancestral, a travessia dos mares causou uma perda inevitável. Várias razões podem explicar isto. [...] Uma terceira razão é que a vegetação do Brasil não oferece recursos iguais aos da África, e certas folhas, indispensáveis a certos orixás, não são encontradas deste lado do oceano; em alguns casos, houve substituições apoiadas nas semelhanças, mas, em outros, não foi possível efetuar essa transposição e o culto se perdeu (COSSARD, 2006, p. 36).