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As testemunhas: olhos, bocas e ouvidos da sociedade

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 113-116)

Capítulo III – As violências e os sujeitos no mapa do poder

3.7. As testemunhas: olhos, bocas e ouvidos da sociedade

As testemunhas compõem uma fração significativa dos sujeitos presentes nos processos criminais que consideramos, aqui, oportuno discutir. Encontram-se esses sujeitos ao longo da história em diversas situações, não somente na prática jurídica. A testemunha é o sujeito que esteve presente e observou algo e, por isso, pode relatar. Todavia, a partir dos processos criminais da Comarca de Mallet, observamos também ser quem ouve. Não sugere que o que relata é verdade ou verossímil.

A conduta projetada nas testemunhas aliada com o cumprimento da lei estabelece uma relação bastante complexa. Sendo relativa ao cumprimento da lei e em respeitá-la em sua integridade no interior da sociedade, o juramento de falar a verdade em depoimento durante o processo aspira a essa complexa relação que projeta condutas. De forma panóptica, esses

255 Nelson Hungria Hoffbauer (1891-1969). Realizou o curso de Direito da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro. Iniciou a vida pública como Promotor Público em Pomba, Estado de Minas Gerais; foi Redator de Debates na Câmara dos Deputados de Minas Gerais e Delegado de Polícia no antigo Distrito Federal. Ingressou na Magistratura como Juiz da 8º Pretoria Criminal do antigo Distrito Federal, nomeado por decreto de 12 de novembro de 1924. Serviu posteriormente como Juiz de Órfãos e da Vara dos Feitos da Fazenda Pública. Ascendendo ao cargo de Desembargador, em 1944, exerceu as funções de Corregedor. Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto de 29 de maio de 1951, pelo Presidente Getúlio Vargas, para a vaga decorrente da aposentadoria do Ministro Annibal Freire da Fonseca, tomou posse em 4 de junho do mesmo ano. Disponível em:

http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=133. Acesso em: out. 2018.

256 Refere-se ao livro Comentários ao Código Penal: Decreto-lei n. º 2.848 de 7 dezembro de 1940. v. VIII – arts. 197 a 249. Processo criminal n.º 438/51. Comarca de Mallet, 1951. fl. 35.

sujeitos vigiam seu espaço social, desta forma, observam e reproduzem uma conduta que adeque a si e aos outros nessa ordem. Destarte, esses sujeitos que observam, ouvem e falam estão inseridos nas relações sociais e de poder. Analisamos aqui três situações que os envolvem: a testemunha viu e confirma a violência e a violação da lei; a vítima que é sua própria testemunha; e, por último, a testemunha que não estava presente, não viu, mas ouviu falar.

A testemunha que viu, e pode relatar o acontecimento, produzir uma verdade, é encaminhada para duas direções. Numa direção, ela acusa alguém de cometer um crime e/ou violência afirmando e contando detalhes do ocorrido. Uma testemunha de acusação exerce a mesma função, e quase sempre é a mesma que acusa ainda em fase de inquérito. A segunda direção é oposta da primeira: defende uma das partes também procurando detalhar o ocorrido. Em suma, parece a mesma coisa, acusa alguém e, consequentemente, defende outro, mas acontece em casos nos quais a testemunha confirma a violência, embora argumente ter sido em legítima defesa. Um paradoxo complexo o acusar e defender ao mesmo tempo que, para um promotor público ou um advogado, pode tomar intensidades diferentes.

A vítima, como única testemunha, é a mais comum nos casos de crimes sexuais. Como já visto anteriormente, por não haver provas materiais que comprovem o crime e a violência, o depoimento desta é desacreditado. Se a testemunha for menor de idade ou deficiente a depreciação do que relata torna-se maior. Para a vítima de crime sexual ter crédito como própria testemunha, uma vez que esse crime não ocorre em lugares públicos ou com muita visibilidade em 1950-1970, o corpo será sua prova e sua testemunha. Será preciso marcas da violência, registradas e atestadas em exames médicos. Todavia, servirá como testemunho tão somente da violência e não do autor da violência.

O último tipo de testemunha é a que afirma que não estava presente e não viu. Apesar de não testemunhar o crime ou a violência, muitas vezes, tem mais valor do que a vítima testemunha de si. Usando do “é notório e público” diz saber que tal sujeito era violento, de maus costumes, de ter conhecimento das violências que cometia. A exemplo “[...] o depoente não sabe sobre os fatos narrados na denúncia pessoalmente; mas, o depoente sabe que o denunciado praticou com o menor o crime descrito na denúncia por ser voz corrente na cidade [...]”257. Não é algo que se sustentaria como prova, mas, muitas vezes, assim é considerado por atenuar o comportamento do acusado. É a conduta do sujeito naquela sociedade que é posta à prova, se muitas pessoas afirmam ser o acusado – ou até mesmo vítimas – “mau comportadas”,

de certa forma, incitam os sujeitos nos procedimentos jurídicos a conduzirem seus discursos por meio desse adjetivo.

No poder judiciário, as testemunhas parecem assumir uma função de dispositivo. A delegacia responsável pelo inquérito e o judiciário irão convocar as testemunhas a deporem sobre o “fato”. O procedimento chamada Assentada258, “captura” os olhos, as bocas e os ouvidos do ocorrido para que forneça matérias discursivas a respeito e, assim, produzir uma verdade. O judiciário, ao incitar esses discursos das testemunhas, tensionam as relações de poder, uma vez que, segundo Monsma:

Um conflito violento chama a atenção. Depois do evento, os envolvidos, se sobrevivem, e os outros presentes contam versões do acontecido a amigos, familiares, vizinhos e colegas. Essas versões, muitas vezes discordantes, entram nos circuitos locais de boatos e nas conversas de bar e de rua, sofrendo modificações ao passar de boca a boca.259

Para superar parcialmente essas possíveis lacunas, o procedimento é efetuado de forma semelhante ao encontrado na tragédia de Sófocles, Édipo Rei260, levando em consideração as análises de Foucault. Na segunda conferência de A verdade e as formas jurídicas, o referido autor assinalou, na tragédia, a emergência de um sistema jurídico, o inquérito que assumia funções semelhantes ao sistema do Sýmbolon261grego. Em outras palavras, um jogo de metades. Como um vaso que havia sido quebrado, sem a certeza se era de fato um vaso, cada estilhaço se encaixará mais ou menos com outro, mas que, se juntando, estilhaços suficientes terá a forma – danificada, lacunosa, imperfeita – de um vaso.

A função das testemunhas é fornecer esses fragmentos, que, algumas vezes, pouco têm a ver com o crime. Fragmentos que dizem sobre os sujeitos, acusado ou vítima, sobre a conduta moral e social, costumes e vícios. Isto apresenta como uma forma de vigilância da vida do outro. Os sujeitos, quando assumem essa função de testemunhas, passam a ser um dispositivo que irá falar e produzir verdades. Um dispositivo duvidoso como suscitador de verdades, pois elementos como família, inimizade, amizade, desavença e complacência podem alterar qualquer depoimento que a testemunha venha dar.

258 Assentada – S.f. Sessão forense para depoimento de testemunhas; declaração exarada do depoimento de testemunha; testemunho escrito e assinado pela parte declarante. SANTOS, Dicionário Jurídico, 2001, p. 38. 259 MONSMA, Karl. Histórias de violência: processos criminais e conflitos interétnicos. XXIV ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 26., 2000. Petrópolis: ANPOCS, 2000. p. 2.

260 SÓFOCLES. Édipo Rei. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.

261 “A história de Édipo, tal como é representada na tragédia de Sófocles, obedece a este sýmbolon: não uma forma retórica, mas religiosa, política, quase mágica do exercício do poder.” FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas

Embora isso possa acontecer, observamos que as testemunhas exercem um papel bastante significativo nas relações de poder, pois representam o lado de fora do judiciário, e se pouco têm a falar sobre o crime, muito têm a falar sobre o criminoso e a vítima. Não desempenham a mesma intensidade nas relações de poder que o dispositivo pericial exerce, mas, de forma diferente, são consideradas ferramentas essenciais no processo da produção da verdade no judiciário.

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 113-116)