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Os processos criminais e inquéritos

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 33-35)

Capítulo I – Por uma cartografia do poderem fontes criminais

1.2. Os processos criminais e inquéritos

Utilizar fontes documentais do Poder Judiciário para uma cartografia certamente produz uma série de questionamentos. O que é esse documento e como utilizá-lo na História? Segundo Paul Veyne60, a história é apreendida lateralmente por meio de indícios e documentos que possibilitam fugir de suposições. Desta forma, como se pode compreender as fontes criminais para a História? Veyne falava sobre uma epistemologia da história e, de certa forma, generalizou o fazer historiográfico com a questão das fontes. As fontes analisadas têm a sua singularidade, assim como qualquer outra, e este trabalho ater-se-á ao que elas podem fazer, falar e ver.

Os processos criminais são registros indiciários de violências, do cotidiano, da vida pública, outras vezes privada, além de muitos outros aspectos possíveis de observar. Em outras palavras, a tentativa asséptica do Poder Judiciário, procurando manter os procedimentos mais normativos, regulares e racionais possíveis, ainda mantém rastros, indícios e fragmentos da vida dos sujeitos que, como afirmou Foucault61, ali tiveram o seu encontro com o poder e assim foram gravados na história. Aspectos sobre os trabalhos, as práticas, o andar de carroça para ir ao centro urbano, tomar um “trago” nos bares, após o trabalho, os atestados de pobreza ou de doença, as vidas passadas dos sujeitos são registradas nas entrelinhas pelos escrivães. Os processos criminais são registros de emergências históricas, onde se estabeleceram relações de poderes.

O exercício do poder institucionalizado aciona seus dispositivos, agencia saberes, produzindo verdades em todo momento. As tensões que permeiam os processos vão além da violência que os produziu. O pano de fundo pode ser justificado pela violência, mas as relações ali presentes tomam proporções muito mais abstratas. Os processos e inquéritos trabalhados não existiriam sem a violência e os dispositivos não seriam acionados sem essa condição. Todavia, as tensões do poder que produziram sujeitos, verdades e discursos muitas vezes pouco tem a ver com a violência que iniciou o processo. Essas características demonstradas não esquadrinham somente as relações de poder, pois dão um sentido ao poder enquanto algo que

60 VEYNE, Paul. Como se escreve a história. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 18.

61 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Ditos & Escritos IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.

produz, transforma, suscita coisas, sujeitos, discurso dos mais variados possíveis. O poder não é negativo, ele não destrói antes que outra coisa assuma a posição.

É importante, da mesma forma, estar atento às noções de crime que variam em cada espacialidade e temporalidade e podem influenciar o andamento dos processos.62Portanto, atentamos para as minúcias presentes nos depoimentos e em outros recortes de fontes que permitem compreender também a variedade das noções de violência em diferentes lugares. A legislação competente para definir os crimes nem sempre comtempla as formações históricas heterogêneas, que singularizam certas práticas violentas em seu contexto, tornando-as cotidianas e normais, toleráveis ou puníveis.63 A violência, assim como o crime, é histórica, variando de acordo com o espaço e tempo de suas manifestações.

É a partir dos dispositivos acionados que se irá filtrar, corrigir e produzir como a violência será vista e falada. Nesse mesmo processo, com esses mesmos dispositivos, o diagrama ou a máquina de verdades faz o pano de fundo, selecionando os dispositivos como o exame, como norma da instituição judiciária, o alcoolismo pelo réu e seu defensor, o trabalho por quaisquer das partes que busquem formar a verdade sobre seu caráter em face do juiz ou júri.

Encontram-se inquéritos que jamais se tornaram processos criminais. Por outro lado, há processos criminais repletos de peculiaridades discursivas, práticas diversas, relações de vingança e de amor. A questão que não se pode esquecer, é que em todas essas, sejam relações estritas de violência ou não, encontram-se relações de poder, quando postas em visibilidade pelo judiciário. É ali que “O ponto mais intenso das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadilhas”64.

Na Comarca de Mallet é evidente, não apenas a produção de verdades e as técnicas e operações usadas para isso, bem como os dispositivos acionados. No momento da produção da verdade, encontramos algo próximo daquilo que Nietzsche havia pensado no século XIX, quanto à verdade e à mentira. Buscam-se as consequências boas, tanto da verdade quanto da

62 GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla B. O Historiador e suas

fontes. São Paulo: Contexto, 2017. p. 121-122.

63Para compreender essas relações, recorremos a Foucault em Vigiar e punir, ao tratar da gestão de ilegalidades; Deleuze comenta que “[...] Foucault consiste em substituir a oposição, por demais grosseira, lei-ilegalidade por uma correlação final ilegalismos-lei. A lei é sempre uma composição de ilegalismos, que ela diferencia ao formalizar.” DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense, 2013. p. 39. Aquilo que uma economia do poder considera prejudicial a seu exercício busca por meio de seus mecanismos produzir a lei que proíbe. 64 FOUCAULT, Michel. A vida dos homens infames. In: Ditos & Escritos IV: Estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 204.

mentira, mantendo o objetivo que é a conservação da vida.65 Assim, muito bem pensado, taticamente direcionado, evitam-se os prejuízos de uma ou de outra, não se confessará, mas também não inventará outro crime. No contexto dessas questões, notamos a necessidade de um levantamento historiográfico sobre as fontes trabalhadas, tentando apontar onde se pretende avançar.

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 33-35)