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Os registros de crimes sexuais

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 49-52)

Capítulo I – Por uma cartografia do poderem fontes criminais

1.6. A violência e os registros criminais

1.6.1. Os registros de crimes sexuais

Os registros criminais são bastante complexos e para uma melhor compreensão, foi necessário expor alguns elementos básicos. Foram encontrados discursos normativos, bem como exercícios do poder sutis, mas ardilosos, pautados em valores sociais que pareciam consolidados na Comarca de Mallet. A melhor forma de apresentar, certamente é recorrendo a própria fonte.

Iniciamos esta sessão com o recorte de um registro de habeas-corpus referente a um crime sexual. Poucas informações são pertinentes para a análise nas páginas deste documento, todavia, uma delas esclarece algo recorrente nos registros de crimes sexuais.

Mas, como é sabido, os processos contra os crimes de sedução, estupro e todos aqueles previstos no Título VI do Código Penal dependem de representação da ofendida por intermédio de seus pais ou responsáveis. A ação criminal é de ordem privada, sendo pública, excepcionalmente quando a menor é miserável ou quando o crime é praticado com abuso do pátrio poder.112

111 MUCHEMBLED, Robert. História da violência: Do fim da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. p. 27-28.

O excerto traz algumas questões comuns que serão analisadas oportunamente, como a inserção da família como intermediador representante da vítima e a questão da pobreza como condição para ação criminal pública. Convém ressaltar que se obteve acesso apenas às ações criminais de ordem pública; os inquéritos que se tornaram processos tiveram início com a queixa e a representação do pai da ofendida; seguem com atestado de pobreza da ofendida e/ou de sua família. Isso significa que o cumprimento dessa condição, dentro do período de seis meses após o crime, mostra-se irremediável para a constituição de uma ação penal. Como regra, o artigo 105 do Código Penal Brasileiro prevê:

Decadência do direito de queixa ou de representação

Art. 105. Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação, se não o exerce dentro do prazo de seis meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 102, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia.113

Este artigo era frequentemente trazido como argumento de defesa do acusado. Quando a família observava que mulher estava visivelmente grávida, este prazo de seis meses para a queixa ou representação já poderia ter excedido. O que se pode supor é que essas jovens pareciam esconder por medo da família, de quem a engravidou ou mesmo por desconhecimento, isso tudo levando em consideração mulheres jovens de um cotidiano de pobreza bastante conservador, onde a família e o matrimônio eram pilares da honra e da honestidade.

O pai representar, para dar início ao inquérito e, posterior processo, tem também um reflexo dos costumes e condutas no interior da família. Cláudia Fonseca afirmou que a mulher virgem era de responsabilidade de outras pessoas que teriam autoridade sobre ela, no caso a família e, quando “desvirginada”, representaria falha dessa autoridade.114 Seria uma questão de

honra da família garantir que a filha se casaria ainda virgem. Desta forma, o pai requerer apuração de responsabilidade, muitas vezes pelo casamento, é forma de reduzir a responsabilidade da “falha na criação”, algo que parecia estar assimilado na moral da época.

O atestado de miserabilidade é condição para formação de uma ação penal de ordem pública determinada pelo artigo 225 do Código Penal Brasileiro.

Art. 225. Nos crimes definidos nos capítulos anteriores, somente se procede mediante queixa.

113 Código Penal Brasileiro, 1940.

114 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORI, Mary Del (Org.). História das mulheres no

§ 1º Procede-se, entretanto, mediante ação pública:

I - se a vítima ou seus pais não podem prover às despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família; II - se o crime é cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador.

§ 2º No caso do n. I do parágrafo anterior, a ação do Ministério Público depende de representação.115

As formulações dos crimes sexuais aparecem no Título VI – Dos crimes contra os costumes, Capítulo I – Dos crimes contra a liberdade sexual. Questões provocadoras aparecem aqui, sugerindo que a sexualidade é condicionada aos costumes. Que costumes? Como uma lei pode generalizar costumes? A aplicação da lei para configurar um crime sexual levaria em consideração quais costumes? Vale destacar ainda os artigos do Código Penal Brasileiro que norteiam a ideia de crime. Ampliando para o Capítulo II – Da sedução e da corrupção de menores, pois, nas fontes analisadas, que enquadram artigos desse capítulo, sempre estão relacionados a relações sexuais.

O artigo 213 refere-se estritamente ao estupro, mas existe uma particularidade: somente a mulher pode ser vítima.116 Isto permite se elaborar a seguinte questão: E se a vítima do estupro for do sexo masculino? Pelo único processo que encontrado dentro período, o réu é processado pelo artigo 214, atentado violento ao pudor. Mas onde a violência do atentado ao pudor se difere do estupro, em lei? Na base do artigo 214, está “[...] a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal: [...]”117. A diferença está na forma em que a violência é proferida, havendo algo que não seja cópula vaginal definida pelo termo conjunção carnal, é atentado violento ao pudor.

Essa questão é amplíssima, levando para outros regimes de verdade, de crimes, vinculados à perseguição aos homossexuais, ou qualquer um que tenha sido perseguido por sua sexualidade e suas práticas. Heranças de um antigo sistema judiciário? Talvez. Contudo é incontestável a permanência de costumes e noções de masculinidades, comportamentos considerados “normais” ou “anormais” pela própria sociedade. Por isso não surpreende que haja apenas um registro de práticas homossexuais, na Comarca de Mallet, relativo ao período estudado.

Entretanto, uma coisa em comum aos crimes de ordem sexual, Boris Fausto já havia observado em suas fontes: “A ofendida é o núcleo central das atenções, sendo em regra objeto

115 Código Penal Brasileiro, 1940.

116 Isto só foi alterado em 2009 pela Lei 12.015/09, em que altera o “Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça: [...]” para “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: [...]”. 117 Código Penal Brasileiro, 1940.

de uma estratégia poluidora de longo alcance, com a finalidade de comprovar ou pelo menos sugerir sua ‘desonestidade’.”118. Essas situações são recorrentes nos documentos, isto proporciona uma série de problematizações sobre as práticas jurídicas, as noções de crime e a violência na sociedade. Como a questão da honestidade ou desonestidade pode ser uma ferramenta que tem poder de produzir verdades, sendo elas já uma verdade moral produzida exteriormente ao aparelho judiciário? Ao longo do texto, demonstramos a complexidade de linhas e intersecções entre esses pontos que se estabeleceram na Comarca de Mallet.

Os artigos 215 e 216, Posse sexual mediante fraude e Atentado ao pudor mediante fraude respectivamente, parecem tratar de aspectos não explicitamente caracterizados no artigo 213. Se há ato sexual com uso de promessas, chantagem etc.; mas não é comprovada violência física ou moral, para a segunda, quase nunca se comprova, é aplicado o artigo 215. Se a mulher for induzida por fraude, como no 215, só que há “ato libidinoso diverso a conjunção carnal”, é aplicado o artigo 216.

Diante do exposto, optamos por incluir os artigos do Capítulo II - da sedução e da corrupção de menores, por dois argumentos. Primeiramente, é comum nas fontes trabalhadas no período e retrata uma organização moral da sociedade. Segundo, porque as discussões sobre o assunto nas fontes permitem observar certas tensões entre a definição por parte da lei do que seja crime e o desejo de reparação por parte da família. Na prática, ainda acontecia, muitas vezes, sendo encerrado no próprio inquérito, raramente sendo levado ao judiciário. Todavia, quando era levado, sempre era para apuração da responsabilidade do autor.

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 49-52)