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Os pobres e certos usos do aparelho judiciário

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 94-97)

Capítulo III – As violências e os sujeitos no mapa do poder

3.3. Os pobres e certos usos do aparelho judiciário

Considerando os sujeitos pobres que aparecem nos processos criminais, tanto réus, acusados ou vítimas, demonstraram uma relação com o judiciário. Com mais incidências em

crimes sexuais, menos em homicídios, a constatação da pobreza ou miserabilidade, termo como aparece na documentação, toma um caráter estratégico ao ser cooptado pelo aparelho judiciário. Em relação aos crimes sexuais, aqueles que aparentemente não houve a violência física, que se tratava das relações entre namoros “proibidos” e promessas não cumpridas, apresentaram alguns elementos que podem orientar a análise. Como já observado nos capítulos anteriores, a honra da família bem como da vítima são pontos que sustentavam a queixa até o final do processo. Dos 14 registros de crimes sexuais, 10 constam atestados emitidos pela delegacia de polícia ou pelo juizado distrital, comprovando a condição do requerente. Para exemplo: “ATESTO por me ser pedido, que o Agripino, brasileiro, casado, lavrador, residente no lugar Béla Vista, neste Distrito, é pessoa reconhecidamente pobre e não possui bens de espécie alguma. Isento de selos.”209. Este atestado foi emitido pela Delegacia de Polícia de Paulo Frontin, quanto aos emitidos por outras delegacias ou juizados representam a mesma finalidade, alterando apenas a forma da escrita em alguns casos, especificando com mais detalhes o motivo da isenção de custos dos processos e/ou custos com defesa.

Podemos dizer que esse atestado, é uma forma de uso dos dispositivos do aparelho jurídico pelos sujeitos pobres. Desta forma, isentavam-se dos possíveis gastos decorrentes do processo, justificando a intervenção da Justiça Pública. Algo que pode justificar também o aumento das denúncias deste tipo de crime no período estudado.

Isso gera uma questão, e os 4 processos que não atestaram a pobreza? Esses sujeitos não eram pobres? Daqueles que não houve o atestado se deu por dois motivos, o primeiro por não ter sido aberto o processo criminal tendo finalizado em inquérito, e o segundo por se tratar de crime violento (estupro) onde foi direto para a Justiça Pública. Não que aqueles sujeitos não eram pobres, somente não houve a necessidade do atestado. Todavia, não há registros deste tipo de crime no período estudado que apresentassem vítimas advindas de famílias de condições econômicas mais abastadas.

É possível afirmar que a pobreza sempre foi uma parcela da sociedade que é mais vulnerável às violências. Na Comarca de Mallet, mesmo se tratando de municípios rurais, isso não é diferente. Entretanto, podemos observar nos crimes sexuais uma relação bastante complexa que abarca essa pobreza vítima desses crimes.

Não encontrar nenhuma vítima de famílias mais “abastadas” também pode ser um reflexo da moral da sociedade, bastante conservadora nas questões de honra e família. Não

expor a família em casos de namoros proibidos, terminados em gravidez para a reparação financeira parece ser algo a supor.

Nos casos em que a vítima é de família pobre, era muito comum a ajuda desta com as atividades que geravam renda ou diminuíam gastos para a família. O trabalho na roça, de doméstica na cidade, ou mesmo na própria casa, seriam interrompidos ou ao menos prejudicado pela gravidez. Assim, era colocado pela família, os prós e contras, em denunciar alguém para reparar financeiramente pelo ato e a consequência.

Àqueles casos de namoros proibidos, foi possível observar que, para a família, o casamento não é moralmente a melhor opção, considerando que certo sujeito possa ter ludibriado sua filha para obter relações sexual, embora consensual. Mas, não casar resulta em prejuízo, recaindo a responsabilidade financeira sobre a criação da criança para a família. Para isso, o objetivo da família era responsabilizar criminalmente o sujeito para a obtenção da reparação, ao menos financeira do ato. A consequência disto é a exposição da vítima e da família para a sociedade, que, muitas vezes, se volta contra ela.

Outra questão que está evidente nessa relação da mulher e família são os valores que organizaram essa estrutura familiar, segundo Fonseca: “A norma oficial ditava que a mulher devia ser resguardada em casa, se ocupando dos afazeres domésticos, enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua.”210

Esses estereótipos foram ressonâncias dos valores da elite colonial que serviu como ferramenta de distinção de classes, estipulando o ser pobre e o ser burguês. A historiadora nega que isso tenha sido imperativo, pois mulheres pobres sempre trabalhavam fora de suas casas. Ela pensou em um contexto urbano com muitos conflitos e preconceitos, quanto à ação dessas mulheres.

Na Comarca, vemos uma intersecção desses dois pontos apresentados. O estereótipo da mulher dona de casa e do homem assegurador do sustento, não era norma oficial, mas sim conduta moral que prevalecia nos costumes da pobreza. Não era imperativo, pois as mulheres trabalhavam fora, mas isso se dava principalmente à condição econômica e de sustento familiar entre a população rural. Era o trabalho na lavoura ou mesmo de domésticas para empregadores da cidade. Entretanto, a organização familiar parecia corroborar com esses valores que eram presentes naquela sociedade. Os valores morais e as condutas daquele espaço, transformaram e legitimaram como verdade que a mulher deveria ser do lar e o homem da rua. É possível que,

210 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORI, Mary Del (Org.). História das mulheres no

na Comarca, mulheres também assumiram empregos que fugiam desta ordem, como professoras ou mesmo cargos públicos, entretanto, é difícil afirmar somente pelos documentos judiciais. A relação que se estabeleceria com essas mulheres trabalhadoras e o processo legal, provavelmente seria como o apresentado por Fonseca:

[...] em muitos casos a mulher trazia o sustento principal da casa, o trabalho feminino continuava a ser apresentado pelos advogados e até pelas mulheres como um mero suplemento à renda masculina. Sem ser encarado como profissão, seu trabalho em muitos casos nem nome merecia. Era ocultado, minimizado em conceitos gerais como “serviço doméstico” e “trabalho honesto”.211

Fonseca afirmou de modo mais geral que “Os trabalhadores preferiam mulheres e crianças justamente porque essa mão de obra custava em média 30% menos”.212 Sem precisar ir às grandes cidades, na região de Mallet se aplicava dinâmica parecida. Não havendo muitas indústrias, o trabalho exercido pelas mulheres era de domésticas em residências. Mulheres jovens, comumente menores de idade, como no caso analisado, no segundo capítulo, onde Elia fora estuprada ao ir trabalhar na residência de Feliciano, a fim de complementar a renda familiar.213

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 94-97)