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Dos homicídios: estratégias e dispositivos

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 97-101)

Capítulo III – As violências e os sujeitos no mapa do poder

3.4. Autores de violência e a masculinidade

3.4.1. Dos homicídios: estratégias e dispositivos

Não é estranho que, nos processos criminais da Comarca de Mallet, constem os homens como autores da violência. Até mesmo no único processo analisado em que a ré é mulher, a violência havia sido caracterizada como retaliação. Explicações para isto estão presentes em várias áreas do conhecimento, as quais compartilham algumas ideias. Estando

[...]vinculadas à socialização dos homens, centrada em um hegemônico modelo de masculinidade instituidor de papéis e de posições sociais desiguais entre os gêneros, além de crenças que propiciam o envolvimento destes sujeitos com a violência, como: a soberania masculina, a valentia, a honra, a dominação, a invulnerabilidade e a força. Este modelo naturaliza a violência como um atributo dos homens e como um instrumento de afirmação do “ser homem”, e os induz à adoção de práticas de risco à vida e de condutas

211 FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORI, Mary Del (Org.). História das mulheres no

Brasil. São Paulo: Contexto, 2000. p. 517.

212 Idem.

autoritárias, ambas geradoras de relações humanas violentamente conflituosas.214

Nos processos, aqui analisados, a honra, a força e a ideia de masculinidade parecem estar explícitas nas relações de violência homicida. Idêntica lógica parece se aplicar aos crimes sexuais, embora sejam transpostos e repercutam de formas diferentes. Os intentos da violência homicida nem sempre agregam valores morais. Mas o seu uso, enquanto dispositivo para justificar o crime e produzir verdades, é recorrente. Para exemplificar melhor, há dois casos, um de homicídio e outro de tentativa, em que se pode atestar o uso dos valores como dispositivo deflagrador.

No ano de 1954, precisamente no dia 13 de janeiro, Ivo e o cunhado Pedro, foram atacados por Gregório, que havia sido padrasto de Ivo. No intuito de realizar as ameaças de morte aos enteados, Gregório tentou com uma faca assassiná-los, não conseguiu em virtude da intervenção de terceiros. Assim, Ivo e Pedro denunciaram Gregório e deram início a um inquérito policial.215Ivo, em suas declarações, argumentou, baseado nas ameaças e na má conduta de Gregório, que “[...] ao abandonar a progenitora do declarante [a] deixou quase sem recursos alguns [...] além de ter lucrado o terreno com o suor do declarante, de seus irmãos e sua progenitora [...]”216, esclarece também o abandono enquanto convivia com a mãe, que

nunca matriculara a ele ou ao irmão em uma escola. Pedro confirma as declarações de Ivo, complementando que Gregório procurava provocá-lo difamando sua esposa, irmã de Ivo. Ao final da declaração, Pedro afirma que Gregório estava embriagado, cujo comportamento e vício eram frequentes. Podemos notar uma estratégia, intencional ou não, de colocar Gregório como um sujeito de maus comportamentos, colocando em pauta o abandono material e intelectual, a falta de “conduta” e as desordens pelo uso do álcool.

A defesa de Gregório atacou com acuidade os argumentos de Ivo e de Pedro. Apontou que se havia crime era necessário à inversão dos papéis dos envolvidos, colocando, assim, Gregório como vítima. A defesa argumentou que o inquérito apresentou apenas rememorações que dizem somente aos envolvidos e não à queixa de tentativa de homicídio, colocando as declarações anteriores como não verdadeiras ou ao menos discutíveis. Procurando levantar a inocência, foi declarado “[...] como é público e notório, nesta cidade, que o acusado é hoje casado, civil e religiosamente, e a sua atual esposa, viúva então, já possuía vários filhos, os

214 ALVES, Regina A. et. al. Homens, vítimas e autores de violência: a corrosão do espaço público e a perda da condição humana. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v. 16, n. 43, p. 871-883, out./dez. 2012. p. 872.

215 Processo criminal n. º 480/54. Comarca de Mallet, 1954. Fl. 5. 216 Ibidem. fl. 7v.

quais obtiveram educação condigna e estão encaminhados na vida, pelo seu padrasto, que é o denunciado.”217.

Vê-se que o dispositivo acionado é o mesmo pelos dois lados, contudo, a lógica é inversa. De um lado, usa-se dos valores para demonstrar a ausência destes no acusado, a fim de produzir uma verdade de que Gregório era desordeiro e desonesto. Do outro, baseia-se nos valores sociais para demonstrar que Gregório tinha bons costumes, era honrado e buscou educar Ivo e seu irmão embora não fossem seus filhos. Há duas coisas em comum nos dois discursos: primeiro, o uso dos valores sociais, enquanto dispositivo agenciador de discursos e produtor de verdades sobre os sujeitos; o segundo, que devido a qualquer prova material fraca produzida pela perícia, nenhuma das partes conseguem afirmar com certeza quem é agressor e quem é vítima, desta forma, potencializando as relações de poder que tensionam pelo discurso moral.

Um outro processo, que deu início pelo ocorrido, no dia 14 de março de 1965, em um lugar denominado Estrada São Pedro em Mallet, quando Ana e José marcaram parte de sua existência na história. Na portaria instaurada, na Delegacia de Polícia de Mallet, é descrito que, após uma briga com agressão mutua, Ana armada com uma faca de cozinha, havia ferido seu cônjuge José, o que resultou em sua morte no dia seguinte.218

Ana era uma mulher com 51 anos de idade, com escolaridade incompleta tendo frequentado até o quarto ano do primário. Tinha seus vícios em álcool e tabaco, assim como o falecido marido. Ana tinha dois filhos, um que sofria possivelmente de alguma deficiência motora não descrita e outro que estudava. Ana afirmou estar alcoolizada antes e depois do crime.219

Ana deixou um cenário um tanto grotesco de sua violência, segundo testemunha: [...] ao retornarem ao local aonde achava-se o ferido José em companhia do Delegado, ao entrarem na casa foram até o quarto aonde estava José na cama com um ferimento na barriga com as tripas de fora [...].220 Esta testemunha era Hilario, um comerciante de 42 anos, que afirmou serem comuns as brigas entre o casal, quando estavam embriagados, afirmou ainda que era comum sempre estarem embriagados.

Mas toda violência praticada por Ana, segundo ela, não foi em vão. Em sua declaração diz ser casada com José há vinte e seis anos e que viviam bem até quinze anos antes do ocorrido. Ana relata que, quando José começou a consumir bebidas alcoólicas começaram os maus tratos

217 Processo criminal n. º 480/54, 1954, fl. 27.

218 Processo criminal n. º 1/65. Comarca de Mallet. Mallet 1965. fl. 2. 219 Ibidem. fl. 13.

contra ela e seus filhos. No dia em que ocorreram as agressões descritas nos autos, Ana diz ter bebido uns tragos de cachaça assim como José. Não conseguindo defender-se de José, Ana puxou uma faca da gaveta da mesa de sua casa para sua defesa. Assustada, Ana sai da casa e senta embaixo de uma árvore de caqui até ser levada à delegacia.

Por mais que tenha havido o crime de homicídio, tanto a defesa quanto a promotoria assumem o discurso do excesso de José, cuja morte foi consequência de suas ações, as quais cronicamente levaram Ana a reagir à sua violência. Nas palavras da promotoria, representando o Ministério Público, aponta o que a atualidade de seu tempo precisava observar em qualquer tipo de crime:

Mais do que propriamente o crime, interessa a sociedade a figura do criminoso. Seu caráter, sua educação, seu meio de vida, seu maior ou menor grau de inteligência, sua capacidade de discernir, são fatores particulares que assumem hoje uma importância fundamental no julgamento do crime e do criminoso.221

É evidente a preocupação do promotor em avaliar com cuidado a violência homicida neste caso, colocando, como fator de julgar o crime e o criminoso, os pormenores apresentados durante o processo. Nas palavras da promotoria sobre Ana:

Há quinze anos que vinha suportando os desmandos do marido alcoólatra. Brigavam muito. Todas as testemunhas são unânimes em dizer que o casal vivia em constantes rusgas. A Ré por sua vez declara que apanhava sempre do marido, e que seus filhos eram igualmente maltratados pela vítima. Apesar das constantes surras que levava, era obrigada a viver com o marido, pois sozinha, se tornaria mais difícil para si, o sustento dos seus filhos.222

Neste ponto, a promotoria pública assume o discurso de legítima defesa, que Ana apenas reagiu à violência sofrida constantemente. Contudo, ainda há a questão que vai contra ela, o fato de estar embriagada antes e depois do crime, como consta no Auto de vida pregressa da indiciada.223Todavia, o promotor público citou um fragmento de um Acordão do Tribunal de Justiça, que relativiza o julgamento de Ana.

Ninguém é obrigado a suportar as agressões de bêbados, ainda que desarmados. O álcool provoca reações inesperadas, surtos de violência, forças insuspeitas. Quando menos se espera o embriagado encontra na excitação alcóolica, energias capazes de surpreender os menos avisados.224

221 Processo criminal n. º 1/65. Comarca de Mallet. Mallet, 1965. fl. 41. 222 Ibidem. fl. 43.

223 Ibidem. fl. 13.

Acertou Ana em sua retórica, que não era obrigada a ser violentada nem seus filhos. Embriagada no momento em que agrediu José, o marido, foi quando a excitação alcóolica rompeu aquela barreira que a impedia de se defender, o medo da sustentação sua e dos filhos. Em um caso como esse, os dispositivos dos valores também são acionados. José excedia seus limites ao violentar constantemente a esposa e seus filhos. Suas ações eram socialmente repugnadas, mas, contraditoriamente, toleráveis por não haver intervenção mesmo sendo “notório e público”. É o velho ditado que sustentou e ainda sustenta a ocultação de violência doméstica “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”.

No entanto, a promotoria e a defesa acionam outro elemento, o álcool. A partir desse dispositivo que irá enunciar José como alcoólatra violento, que lhe deu visibilidade na sociedade como tal. De forma semelhante, utilizam isto para atestar que Ana agiu em legítima defesa, estando sob o efeito do álcool, sem o qual talvez acabasse suportando mais quinze anos de violência.

Por não haver acusação de nenhuma parte ao final do processo, tanto a defesa quanto o Ministério Público pedem absolvição por legítima defesa. Levando em consideração também que Ana era mãe de dois filhos, sendo que um necessitava de cuidados constantes, acentuaram que ela não representava perigo à sociedade. Desta forma, não houve necessidade de convocar júri popular para julgar o caso.

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 97-101)