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Os registros de homicídios

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 52-56)

Capítulo I – Por uma cartografia do poderem fontes criminais

1.6. A violência e os registros criminais

1.6.2. Os registros de homicídios

Não parece existir um meio-termo entre a violência homicida e o crime de homicídio, pois diferente dos crimes sexuais, a morte é o denominador comum da noção. Mesmo nos casos em que houve apenas tentativa, a morte só não foi resultado por interferência alheia à vontade do agressor. Nesses casos, a intenção se torna o próprio ato, uma vez que os dispositivos jurídicos promoverão visibilidades do sujeito violento e não do crime violento.

Mas isso não é regra. Tendo em vista que a percepção e a noção da violência é heterogênea e local, nem sempre os dispositivos jurídicos atuam de forma eficaz. O dispositivo moral, que de forma estratégica se manifesta nos processos, toma o exercício de fazer valer essas noções, dando amostras do que é “temível” ou “repugnante”, mas também daquilo que é

118 FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. p. 186.

“tolerável” ou “aceitável” para determinada sociedade. O que não quer dizer que um anula o outro. No que diz respeito à Comarca, essas confluências do jurídico e do moral se mostram bastante evidentes.

Para exemplificar essa forma de relações de poder, o melhor caminho é por meio dos documentos. Em um processo de 1960, podemos ler que

No dia quatro do corrente mês e ano, nesta cidade de Mallet, por volta das vinte e uma horas, à rua Dr. Vicente Machado, defronte aos estabelecimentos comerciais de Miguel e João M., o denunciado, armado de sua espingarda de caça, sem motivo plausível, detonou sua arma contra a pessoa de João C., produziu-lhe ferimentos e ocasionou-lhe a morte [...].119

O denunciado em questão é Boleslau, um vereador do município de Mallet que atirou e matou um homem, João C., que, supostamente, teria causado desordem em um bar. O Ministério Público abriu a denúncia colocando Boleslau no incurso do art. 121, §2º inciso II (homicídio por motivo fútil) do Código Penal Brasileiro, por ter matado a tiros João C. O procedimento seguiu normativamente, acionando seus dispositivos jurídicos, policiais e médicos.

Em fase de inquérito, foi expedido pelo Delegado de Polícia a prisão preventiva de Boleslau, considerando-o ainda como suspeito era necessário garantir que a periculosidade do sujeito, bem como possível fuga fosse contida.120 Procedimento normativo e comum para esse tipo de crime. Na sequência do documento, é apresentado o laudo do exame do cadáver de João C., constatando ali a causa da morte, sendo hemorragia interna em consequência do disparo.121Os resultados do exame não indicam explicitamente intencionalidade da violência

ou premeditação do ato, ali apresentam-se os relatos do corpo. Todavia, em alguns casos, podemos supor uma intenção de matar, como no caso, segundo o exame, o tiro acertou no abdômen, ocasionando lesão em órgãos vitais. Há também outras questões a se considerar sobre a intenção de matar, pois, como consta na denúncia, já eram vinte e uma horas, o que pode sugerir uma visibilidade reduzida do ambiente. Mas não cabe questionar tais problemas.

Boleslau em suas declarações apela, sutilmente, para sua posição enquanto vereador: “[...] sabendo ser proibida a caça e pesca naquela inda, mais em se considerando a qualidade de Vereador do Município [...]”122. Em seguida, na sua declaração, assume legítima defesa,

119 Processo criminal n. º 2/60. Comarca de Mallet. 1960. fl. 2. 120 Ibidem. fl. 6.

121 Ibidem. fl. 9. 122 Ibidem. fl. 14.

constatando que João C. estava ameaçando pessoa e a ele na rua com um “facão”. Termina sua declaração defendendo que a intenção foi por consequência dos ataques violentos de João C.

Em relatório, após ouvidas as testemunhas que confirmaram que João C. estava com “facão”, mas que de nada sabiam de desavenças com Boleslau naquele momento, determinou que:

Colhe-se, do depoimento de algumas testemunhas ouvidas, que não houve alteração entre vítima e indiciado, antes do fato, salientando-se, mais, que o mesmo indiciado premeditou a ação, indo se armar em sua residência para a prática do delito, quando a autoridade competente já tomava providencias a respeito da ação da mesma vítima, que naquela oportunidade, depredava o bar de Gregório, sem, entretanto, ameaçar a quem quer que fosse.123

Esse fragmento colocou um elemento bastante distintivo das relações de poder ali. Não era só por ter matado João C., mas por ter atravessado o poder da autoridade competente que Boleslau estava sendo processado. Boleslau pode ter premeditado, ter agido por uma forma de honra, “protegendo” seus representados, porém, atravessando as autoridades, sua ação se tornou ilegítima e injustificável para a prática da Justiça.

A trama toda chegou aos argumentos de legítima defesa os quais foram aceitos. Foram resultados de relações, que transitaram entre o exercício do poder local com costumes, regras sociais. Em um recorte de jornal, sobre o caso, atesta uma parte do mencionado, demonstrando a cisão do ilegal jurídico para o tolerável socialmente:

Em Malé verificou-se o caso – Legítima defesa

No dia 14 da corrente o indivíduo João Cordeiro, morador da localidade Piuare (Mallet), bêbado e desordeiro costumaz, em um dos bares daquela cidade, totalmente alcoolizado sacou de um facão passando a desacatar a todos que se encontravam no recinto. Conhecendo os antecedentes do desordeiro, os presentes retiraram-se do local, indo prevenir os elementos do contingente policial do município. Ao chegarem ao local, soldados da PME encontraram o desordeiro estirado ao solo com ferimentos provocados por disparos de chumbo à altura do peito. Removido ao hospital local, João Cordeiro não suportou os ferimentos falecendo minutos depois. Dois dias após o fato apresentou-se a polícia o vereador Boleslau declarando ter sido o autor do assassinato. As revelações do vereador, pessoa muitíssimo estimada em

Mallet, abalaram profundamente toda a população.124

123 Processo criminal n. º 2/60. Comarca de Mallet. 1960. fl. 27.

124 Morto pelo vereador um desordeiro. Diário da Tarde. Curitiba, PR, quarta-feira 18 de maio de 1960. p. 1-8. Ano 62, n. 20.348. p. 5. (Grifos nosso).

Essa notícia reflete as relações que ocorrem no processo pelo qual Boleslau taticamente pode ter se utilizado de sua estima para produzir uma verdade sobre o acontecido. O recorte de jornal não está integrado ao processo criminal, demonstrando a insatisfação social de algum grupo com a ação da justiça. Sendo também, um reflexo moral da situação ocorrido naquele momento.

Dos crimes sexuais, onde a vítima precisa provar sua inocência, isto fora do ponto de vista legal, em um constante conflito entre a lei que pouco lhe serve e os costumes que a colocam em dúvida, os homicídios tomam sua diferença. O réu é rigidamente condicionado à lei: matou é homicida. O que pode diminuir a intensidade dessa acusação são as justificativas do crime. Legítima defesa, muitas vezes da honra, são as linhas de fugas mais comuns para escapar das mãos do poder que atesta a vida como valor sagrado.

O ponto que converge à cartografia do poder, para mapear a máquina de verdades, está na riqueza de detalhes que os processos de homicídios oferecem. Não é só o caso do vereador, mas muitos outros que se encontram com o poder e, como caixas de ressonância, produzem relações próprias e heterogêneas, demonstrando parte do contexto em que estão inseridas. O homicídio tem capacidade não só de extinguir a vida de outrem, como também de lesionar o tecido social que, quando cicatrizado, apresenta toda uma mutação do próprio espaço. Aquele bar onde ocorre um homicídio, a estrada em que alguém foi morto, tornam-se outros espaços, marcados ali a ferro e fogo.

Capítulo II – Os espaços e a pobreza: apontamentos sobre o contexto da Comarca de

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 52-56)