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Os escrivães e a escrita do processo

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 83-86)

Capítulo III – As violências e os sujeitos no mapa do poder

3.1. Os escrivães e a escrita do processo

O escrivão é um dos sujeitos que mais atuam no processo criminal, embora seja o menos visível. A maior parte das narrativas no interior do processo é resultado, antes de tudo, de uma transposição ou adaptação linguística elaborada pelo escrivão. A este cabe escrever os depoimentos, os interrogatórios, os pedidos, os protocolos, as certidões, em outras palavras, quase tudo passa por ele ao ser incorporado ao processo.

As caligrafias quase indecifráveis em vários casos e os erros ortográficos muito comuns demonstram talvez desatenção, problemas de vista ou mesmo desconhecimento das palavras. Neste sentido, o escrivão parece estabelecer um padrão formal da transcrição das palavras ouvidas durante o processo. O que ficou escrito nas linhas dos autos representa não somente o procedimento jurídico, assim como o efeito do trabalho do escrivão na escolha de suas palavras. O escrivão tem a função descritiva mais potente na fase do inquérito policial. Por que no inquérito e não em outra parte do processo? Isso porque o inquérito é a parte com maior atrito entre a norma e a moral, devido à proximidade do crime, pouca articulação dos motivos e depoimentos, incidem onde a função do escrivão pode condicionar outras partes do processo penal.

Podemos afirmar é que todas as palavras de outros no processo, são palavras do escrivão sobre o que é relatado. As trocas das palavras usadas pelo depoente para termos mais formais é evidente, além da mudança para a terceira pessoa: [...] demonstrando com que o mesmo usara de má-fé e fraude com a declarante [...]”176; “Diz o depoente que o Sr. Delegado que todos, ali presente inclusive o depoente colocassem o ferido no jeep e levassem ao hospital [...]”177. Esse fragmento é para demonstrar esta mudança, o processo será trabalhado com detalhes em outros momentos do texto.

Essa mudança para terceira pessoa é percebida por Karl Monsma

Os inquéritos e processos criminais são uma das poucas fontes que preservam as palavras dos pobres, mesmo quando transcritas na terceira pessoa. Nos garranchos de processos antigos, encontramos analfabetos discutindo suas interpretações de eventos e imputando motivos aos outros.178

176 Auto de declaração da vítima. Inquérito Policial n. º 20/65. Comarca de Mallet. Mallet, 1965. fl. 6. 177 Declaração de testemunha. Processo criminal n. º 1/65. Comarca de Mallet. Mallet, 1965. fl. 12.

178 MONSMA, Karl. Histórias de violência: processos criminais e conflitos inter-étnicos. XXIV ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 26., 2000. Petrópolis: ANPOCS, 2000. p. 2. Este paper escrito por Karl Monsma teve como objetivo discutir os conflitos étnicos entre italianos no fim do século XIX, no oeste paulista. Procurou perceber o cotidiano desses imigrantes a partir das relações violentas entre eles e outros grupos como fazendeiros, brasileiros do espaço urbanos como classes médias e pobres, negros e outros imigrantes. A partir de uma metodologia sócio-histórica encontrou nos processos criminais e inquéritos policiais a possibilidade de

Entretanto, difícil afirmar cegamente que a palavra daqueles pobres que passaram pelos mecanismos do judiciário mantenha-se íntegra. A troca de palavras, a transposição da linguagem coloquial para a formal, pode deformar o discurso do depoente. Isto representa um limitador da análise nos processos criminais. Não há registros de queixas referentes à incompetência ou não exercício ético da função do escrivão. Não que não possa existir, mas um escrivão, assim como qualquer outro funcionário a exercer função permanente ou designado, especificamente, (ad-hoc), faz juramento em lei:

[...] me foi deferido o compromisso de bem e fielmente desempenhar o cargo de escrivão “ad-hoc”, o que sendo por mim aceito, prometi cumprir o que me fosse ordenado pela autoridade acima [refere-se ao Delegado de Polícia neste caso], desempenhando os deveres do cargo na forma da lei.179

Também aparece como:

[...] promessa legal, de bem e fielmente desempenhar as suas funções, o que prometeu na forma e sob o rigor da lei, tendo dito que tudo que fazia sem dolo ou malícia, à bem do direito daquele.180

Esse discurso de legalidade e compromisso com a verdade, tende a blindar as palavras do funcionário que as corrobora. Mesmo tendo sua base em lei, sua função, enquanto produtor da verdade, se torna relativa, uma vez que várias verdades são postas em disputa. Desta forma, dentro do aparelho jurídico, as palavras descritas pelo escrivão são sustentadas pela verossimilhança do que fora dito, embora talvez não seja.

Dentro dos processos analisados, não se encontrou nenhuma menção ao bom ou mau exercício da função do escrivão.181 Ao contrário, as palavras escritas pelo escrivão ganham um estatuto de verdade, pois o juramento de cumprir sua função parece servir de sustentação. Em suma, o escrivão é o que faz ecoar os discursos proferidos ao longo do processo. Sua relação com os outros sujeitos está em ouvir e escrever aquilo que em sua frente é dito. Não parece haver, ao menos com relação aos processos criminais, qualquer relação mais intensa que o coloque como personagem dos conflitos.

compreender as relações cotidianas desses sujeitos. Optamos por não avançar em sua discussão devido o distanciamento espaço-temporal do objeto desta pesquisa.

179 Termo de promessa legal. Processo criminal n. º 480/54. Comarca de Mallet. Mallet, 1954. fl. 6v. 180 Termo de promessa legal. Inquérito policial s/n. Delegacia de Polícia de Mallet, 1958. fl. 3.

181 A também a questão de que se houve queixa quanto ao escrivão, dificilmente estaria registrado no processo criminal, mas sim em documento administrativo. A menos que a negligencia de sua função isso infira em algum tipo de crime ou corrobore para a alteração proposital dos documentos. Neste caso entraria como crime.

Nos inquéritos, há uma transição maior de escrivães ad-hoc, sendo relativo ao distrito em que se inicia o procedimento. Conforme a tabela a seguir, demonstramos uma relação dos escrivães nomeados ad-hoc, delegacia em que foi convocado e o ano. A tabela 1 é apenas uma amostragem baseada nos documentos analisados e não representam a totalidade nem precisão das datas em que os escrivães atuaram na função.

Relação dos escrivães nomeados (Inquéritos)

Leonisio Vilharva Delegacia de Polícia de Mallet. 1958; 1959; 1960.

Zacarias Bahniuk Delegacia de Polícia de Mallet. 1962.

Cabo Elcias Ribeiro do Prado Delegacia de Polícia de Mallet. 1965; 1968.

Waldemar Sass Delegacia de Polícia de Mallet. 1953; 1954.

Waldomiro Chrum [sic] Delegacia de Polícia de Mallet. 1959. Martinho Thomaz Ribeiro Delegacia de Polícia de Mallet. 1951; 1954. Felicissimo I. Neves Delegacia de Polícia de Mallet. 1951.

Edson Bindi Delegacia de Polícia de Mallet. 1965.

Ladislau Brzezinski Delegacia de Polícia de Paulo

Frontin.

1952; 1961.

Mônica Brzezinski Delegacia de Polícia de Paulo

Frontin.

1970

Ricardo Czepula Delegacia de Polícia de Dorizon. 1968.

Maria Busko Delegacia de Polícia de Dorizon. 1959.

Laurentino Rodrigues de Aguiar

Delegacia de Polícia de Rio Claro do Sul.

1961;

Tabela 1. Relação dos escrivães nomeados (Inquéritos) Fonte: o autor.

Infelizmente, não há informações sobre essas pessoas, a tabela apenas demonstra que o exercício do cargo não era efetivado por poucos funcionários. As nomeações são sempre proferidas pelo delegado de polícia e não há como afirmar ou supor competências para o exercício dessa profissão a não ser pelo próprio juramento em lei. Todavia, diferente dos escrivães do crime do qual se falará adiante, esses nomeados ad-hoc são os primeiros a transferir para o papel as declarações. Não há também como afirmar se a nomeação destes sujeitos para o cargo era intermediada por amizades, favores, ou simplesmente pela demanda de escrivães.

Embora seja difícil encontrar os valores transparecendo em suas escritas, às vezes, parece que a escrita sai da terceira pessoa para uma subjetividade do narrador: “Waldomiro de

caso premeditado com intuito de aproveitar-se da oportunidade, que se oferecia, caminhando de braço dado com a declarante [...]”182. Neste pequeno fragmento, é possível observar o tom de acusação e suposição das intenções do acusado. Sendo parte da declaração da vítima que havia sido ouvida primeiro, sem ao menos ouvir o acusado e as testemunhas, o escrivão supõe sua premeditação, pois não está dentro da ordem de sua escrita. Desta forma sua narrativa distorce ou privilegia a versão da vítima, premeditando a culpa de Waldomiro. Faria isenção das palavras do escrivão se fosse “a declarante afirmou que Waldomiro se aproveitou da oportunidade”, mas com a afirmação da premeditação já não é aproveitar-se da oportunidade, é claramente uma afirmação do escrivão. Frases pequenas, às vezes quase imperceptíveis, que nesta primeira fase pode orientar a acusação e defesa nos procedimentos seguintes.

Encontraram-se dentro do recorte temporal três escrivães do crime, esses fixos pelo Poder Judiciário da comarca. O primeiro é Roberto Brzezinski que atuou no início da década de 1950, aparecendo apenas em um processo. Logo, em seguida, encontramos Londino Flenik, que exerceu a função na maioria dos documentos analisados. Já no final da década de 60, encontramos Arthur Ipiranga do Amaral. Diferente dos escrivães na fase de inquérito, os escrivães do crime demonstram uma escrita mais asséptica. A rigidez da escrita se torna evidente nos interrogatórios e assentadas. Na parte processual, esses procedimentos funcionam como jogos de perguntas e respostas em geral curtas e bem planejadas pela defesa ou acusação. Assim, a escrita pouco tem abertura para oscilações nas quais um escrivão possa transpor os seus valores pessoais.

No documento JULIO CESAR FRANCO (páginas 83-86)