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As tradições democráticas e a formação da vontade política

2 CRÍTICA À CORRENTE QUE IDENTIFICA CIÊNCIA DO DIREITO E

3.1 As tradições democráticas e a formação da vontade política

Na modernidade, a democracia é o regime de governo que prevalece no ocidente, onde os sistemas jurídicos (romano-germânico e common law) compartilham uma origem comum. As duas tradições democráticas consagradas são a liberal, desenvolvida a partir das ideias de John Locke, e a republicana, que remonta a Jean-Jacques Rousseau.

Dentre estas duas, a democracia liberal preponderou nos últimos séculos. Também se desenvolveu, impulsionada por novos pensadores e novas concepções de Estado.

A tradição republicana, que propõe a adoção de uma democracia direta e pressupõe cidadãos dotados de virtude cívica, e talvez por isso não tenha tido muito destaque na prática.

Em linhas gerais, a tradição democrática liberal se define por:

a) encarar a política como meio, isto é, tendo uma função mediadora entre os interesses privados e os objetivos coletivos. Segundo HABERMAS (1995, p. 108) o processo político de formação da vontade e da opinião na esfera pública e no parlamento é determinado pela competição entre as coletividades, que agem estrategicamente tentando manter ou adquirir posições de poder;

b) enxergar a soberania popular direta a partir do voto, sendo que prevalece a vontade da maioria; bem como, indiretamente, na decisão dos representantes;

aos votos de todos os cidadãos; e ainda, para alguns teóricos liberais procedimentalistas, como Robert Dahl, há igualdade política no igual direito atribuído a todos os cidadãos de apresentar alternativas para as deliberações em questão;

d) demandar, no que se refere aos procedimentos institucionalizados (via ordenamento jurídico) de tomada de decisão, um ambiente de liberdade de expressão e escolha, bem como de circulação de informações;

e) atribuir à participação popular, sobretudo no período entre as eleições, a função primordial de vigilância dos governantes, no sentido de constrangê-los a pautar suas ações conforme a vontade popular;

f) enfatizar a proteção, pelo Estado, dos direitos negativos dos cidadãos em relação ao Estado e aos demais, o que lhes permite realizar seus interesses privados nos limites da lei.

Por sua vez, as características principais da tradição republicana são: a) enxergar na política a finalidade da ação humana, e por isso voltá-la para o bem comum;

b) definir a soberania popular a partir do consenso que atingem os cidadãos por meio do diálogo na esfera pública, pautado numa democracia direta, onde a participação de cada um é imprescindível. Ao governante, incumbe acatar e executar a vontade geral;

c) pautar a igualdade política no igual direito dos indivíduos de apresentar argumentos e deliberar sobre a coisa pública;

d) pressupor que, ao deliberar sobre questões públicas, os indivíduos estejam imbuídos de uma virtude cívica que os leva a buscar o melhor para todos (vontade geral), restando de lado os interesses privados (ética como referência);

e) atribuir ao aparato estatal o dever de garantir os meios e as condições para que os cidadãos, livres e iguais, se reúnam e formem sua opinião e sua vontade. Aqui ganham relevo as liberdades positivas, isto é, os direitos políticos para atuação na esfera pública, em especial os direitos de participação, voltados à autorregulação dos indivíduos.

Em Três modelos normativos de democracia, Jürgen HABERMAS (1995) discute os paradigmas liberal e republicano para, a partir dessas “visões consagradas de política democrática”, e da tentativa de reestabelecer vínculos entre socialismo e democracia, apresentar um novo paradigma, que retira a posição central do Estado e a coloca na esfera pública descentrada (“mundo da vida”), a

democracia deliberativa. Esse novo modelo se define por:

a) trazer da tradição republicana a finalidade da política como sendo o bem comum, à diferença de que, agora, essa busca não se baseia na idealização excessiva do ser humano, mas em procedimentos pré-estabelecidos, e se insere em um contexto de representatividade;

b) atribuir a “redes periféricas não institucionalizadas de deliberação”, as quais têm lugar no “mundo da vida” papel fundamental na formação da soberania popular. Nesse sentido, os cidadãos devem deliberar (ação comunicativa dialógica e racional), no âmbito dessas redes periféricas informais, sobre as questões políticas, atingindo um consenso na esfera pública. Essas decisões consensuais influenciam informalmente a ações dos seus representantes políticos. Nessas redes também se desenvolve a accountability das ações governamentais pela população;

c) entender que a igualdade política dos cidadãos consiste tanto na capacidade inerente a cada indivíduo de argumentar racionalmente na busca do consenso em escala informal, quanto no direito constitucional do voto universal e de igual valor;

d) imputar ao Estado o dever de oferecer aos cidadãos espaços para deliberação, bem como informações sobre as questões públicas. No âmbito do Estado, as decisões justas devem considerar os parâmetros e procedimentos constitucionalmente estabelecidos;

e) HABERMAS admite a presença de elementos teleológicos e coercitivos no jogo político, bem como a presença de interesses privados e de algum grau de hierarquização. Todavia, segundo ele, a ação política legítima demanda consenso na esfera pública, por indivíduos iguais, em ambiente livre, racional e crítico (ação comunicativa).

O Estado democrático de Direito atual engloba elementos desses três modelos, com predomínio, no que se refere à tomada de decisão política, da tradição liberal (democracia representativa), sendo que muitas constituições de Estados ocidentais passaram a incluir direitos sustentados no âmbito da social- democracia. Há mecanismos de democracia direta (plebiscito, referendo e iniciativa popular), e há, ainda que com feições um tanto quanto diferentes das sustentadas por HABERMAS, redes periféricas informais de deliberação (associações civis ou mesmo a reunião de fato dos participantes, além dos movimentos sociais).

seccionadas a partir de interesses comuns a seus membros (o que é diferente do interesse comum de todo o povo, e, portanto, em alguma medida, é interesse privado), dentro delas o apelo à decisão consensual, oriunda de diálogo, é muito mais forte do que externamente – até porque os indivíduos se agregam nessas redes frequentemente em torno de um objetivo comum, o que possivelmente não retira o caráter teleológico de sua atuação até aí, e certamente não o retira a partir daí. Afinal de contas, a tentativa de influenciar, ainda que informalmente, uma decisão política, pressupõe necessariamente uma atuação estratégica, mesmo que os objetivos defendidos sejam louváveis do ponto de vista ético.

Os liberais são bastante céticos quanto à possibilidade de uma ação comunicativa livre de coerção, que procedimentalmente seja capaz de levar ao consenso.

No entanto, as “redes periféricas de deliberação” que apontamos têm sido cada vez mais bem sucedidas em influenciar as decisões do aparato político estatal informalmente, na medida em que atuam sobre agentes formadores de opinião (meios de comunicação, escolas e universidades, além do meio cultural).