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2 CRÍTICA À CORRENTE QUE IDENTIFICA CIÊNCIA DO DIREITO E

3.2 O devido processo legislativo

No bojo da estrutura de um pensamento e de um regime político democrático, adotamos a concepção de Élio FAZZALARI, sintetizada por GONÇALVES (2012, p. 589), segundo a qual processo é um procedimento realizado

em contraditório.

Segundo Dierle NUNES (2006, p. 213), antes de formular este conceito FAZZALARI havia aprendido com BENVENUTTI que:

os atos-elementos do procedimento são pressupostos de validade e eficácia do ato final, sendo necessários para sua perfeição.

Daí a importância de se respeitar as normas jurídicas que estabelecem um iter processual – essas normas permitem o controle da atuação dos agentes estatais na tomada de decisão pública. Porém, não apenas isso, BENVENUTTI (idem) havia ensinado ainda que:

se é verdade que o regulamento jurídico das formas é sempre estruturado a constituir uma garantia de correto exercício do poder, o processo representa, entre as formas de explicação das funções, aquela que mais que qualquer outra cumpre aquela exigência de garantia.

A partir daí, FAZZALARI (apud NUNES, op. cit., p. 213-214) concluiu:

existe processo, então, quando no iter de formação de um ato existe contraditório, isto é, é consentido aos interessados de participar à fase de reconhecimento dos pressupostos sobre (sic) condições de recíproca paridade, de desenvolver atividades da qual o autor do provimento deve levar em consideração, os quais (sic) resultados ele pode desatender, mas não impedir.

E completa NUNES (op. cit., p. 214):

De modo que todas as vezes que a participação das partes for somente episódica, não se configurará processo, mas mero procedimento.

O provimento é o objetivo do processo, é a decisão que dele deve resultar. NUNES explica que, quando FAZZALARI menciona a necessidade de se observar, no curso do processo, o princípio do contraditório, o italiano entende que não apenas os diretamente interessados devem estar incluídos, mas também todos aqueles em cuja esfera jurídica o ato final (provimento) produzirá efeitos.

Muito embora a teoria de FAZZALARI tenha sido aceita e amplamente utilizada pelos estudiosos e práticos do direito processual em âmbito jurisdicional, NUNES (p. 212-213) deixa claro que ela se aplica a outros contextos. De fato, segundo ele, o pensamento do italiano foi moldado a partir da percepção de que “em diversos países havia uma difusão de módulos processuais em várias atividades, tanto jurisdicionais quanto não jurisdicionais”, pelo simples motivo de que “os esquemas processuais podem se constituir em mecanismo preventivo contra quaisquer eventuais abusos.”

Da mesma maneira, Aroldo Plínio GONÇALVES (op. cit., p. 589) entende que:

No âmago dessas renovações, trabalhou-se uma nova concepção de procedimento, como atividade preparatória do ato de Estado de caráter

imperativo, o provimento, disciplinada por uma estrutura normativa, em que

as normas se encontram em uma especial forma de conexão. (Grifamos.)

Sendo assim, fica claro que o princípio “devido processo legal” não se aplica somente à atuação do magistrado e ao provimento judicial, nem tampouco inclui apenas o contencioso em âmbito administrativo, mas se ajusta a qualquer decisão imperativa que emane do Estado34, na qual seja necessário controlar a

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NUNES (op. cit., p. 212) esclarece que, na teoria de Fazzalari, o conceito de processo não se aplica apenas a atos emanados do Estado, mas a qualquer situação em que o controle se faça necessário. Ao mencionar a “difusão de módulos processuais”, FAZZALARI havia percebido inclusive

atuação do autor do ato final – um agente público –, haja vista que esse provimento há de impactar na esfera jurídica de outrem, vinculando-o.

Nessa esteira, o pensamento de DINAMARCO:

O que caracteriza fundamentalmente o processo é a celebração

contraditória do procedimento, assegurada a participação dos interessados

mediante exercício das faculdades e poderes integrantes da relação jurídica processual. A observância do procedimento em si próprio e dos níveis de constitucionalmente satisfatórios de participação efetiva e equilibrada, segundo a generosa cláusula due process of law, é que legitima o ato final do processo, vinculativo dos participantes. Aceita essa premissa, seria lícito ver processo não só quando se tem na extremidade do procedimento o

provimento (ou seja, ato imperativo: estatal ou não), mas ainda no caso do negócio jurídico: em ambas as hipóteses, o ato vinculativo das partes é

precedido de procedimento que inclui sua participação.” (DINAMARCO, 2009, p. 77-78. Grifos do autor.)

Ainda ressalta GONÇALVES (op. cit., p. 590):

A democracia chegou ao processo por meio do contraditório.

O conceito do contraditório, que se limitava ao direito da parte de ser ouvida e ao direito de se defender, cresceu e aprofundou-se, nas últimas décadas do século XX.

O princípio do contraditório erigiu-se em uma garantia fundamental, hoje acolhida no plano constitucional, dos destinatários da decisão de participar do processo, em simétrica igualdade, na etapa preparatória do ato imperativo do Estado – a sentença –, para tentar influir em sua formação.

[...]

O contraditório é oportunidade de participação paritária, é garantia de

simétrica igualdade de participação dos destinatários do provimento na fase

procedimental de sua preparação.

A possibilidade assegurada de participação em simétrica igualdade não se concilia com a concepção de vínculos de sujeição [...]

(Grifamos.)

A despeito de possibilidade de utilização do processo, tal como concebido por FAZZALARI, em outros contextos, é nítida a ênfase dada pelos estudiosos do direito à sua aplicação judicial, até mesmo em decorrência do desenvolvimento histórico da ciência jurídica, que elucidamos no primeiro capítulo. Nas palavras acima, GONÇALVES coloca a sentença como sendo “o” ato imperativo o Estado, deixando de se remeter a outros provimentos, dentre os quais, a lei.

O Legislativo também é um dos três poderes do Estado democrático, e seu provimento mais importante é a lei. Da mesma forma, o Executivo e o Judiciário possuem competência regulamentar, densificando as normas legais no que se refere ao exercício dos direitos e obrigações nelas previstas.

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sua utilização em âmbito privado, por exemplo, nos sindicatos, associações esportivas, partidos políticos e ordens profissionais.

O princípio do devido processo legal é expressamente reconhecido no texto constitucional, no inciso LIV do art. 5o, que assim determina:

Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

A corrente liberal enxerga, não sem razão, a lei como uma limitação à liberdade individual, o que justifica o devido processo legislativo por nós defendido, com a participação dos interessados/destinatários/afetados. Não obstante, no inciso seguinte, as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa são reconhecidas expressamente apenas nas esferas dos poderes Executivo e Judiciário:

Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.

Decerto, o não desenvolvimento desse raciocínio, que levaria à adoção do princípio e das garantias por nós mencionados, no âmbito da função legislativa do Estado está relacionado tanto ao distanciamento do estudo da elaboração normativa quanto à dificuldade de enxergar ali um “litígio” nos mesmos moldes do contencioso naquelas duas esferas, pois se a formação da lei consiste numa situação potencial de conflito, as partes interessadas não estão claramente definidas. Ainda retornando a GONÇALVES (p. 594):

A democracia, que entrou no processo pela via do contraditório, deve também penetrar no campo da produção e do compartilhamento do conhecimento, que se traduzem como verdadeiras vias de acesso aos bens da cultura.

É pelo conhecimento fundamentado, ainda que imperfeito, que se torna possível afastar o argumento autoritário, que não se explica senão pela força que o sustenta.

(Grifamos.)

É imprescindível transportar essa lógica para o bojo do processo legislativo, num Estado que se pretenda democrático, permitindo que os cidadãos, as empresas, as associações civis, os movimentos sociais, etc., tomem parte da formação da lei, a ser elaborada pelo órgão competente em observância ao devido processo legislativo, realizado em contraditório. O provimento no processo legislativo é a lei, que impacta na esfera de liberdade individual dos membros da sociedade civil, e pode lhes impor inclusive prejuízos sequer justificados, justificáveis, desejados ou previstos pelo legislador. Com mais clareza:

A ideia que está em sua base é a da evolução da prática da democracia e da liberdade, em que os interesses divergentes ou em oposição encontram espaço garantido para sua manifestação, na busca da decisão participada.

(GONÇALVES, op. cit. p. 591.)

É direito do interessado expor seu ponto de vista, a fim de evitar o constrangimento legal (no sentido de operado via lei) indevido em face do ordenamento jurídico como um todo – garantia de ampla defesa. É seu direito também pleitear um provimento favorável aos seus interesses, bem como é dever do legislador submeter seus argumentos ao contraditório de outras partes eventualmente afetadas. Como num processo judicial, a decisão final cabe ao agente público legitimado, o legislador; porém todo esse debate, que deve ser público e transparente, há que estar refletido na justificação do conteúdo da lei.

Considerando a formação da lei como um momento típico de manifestação de conflito, não podemos concluir sem recorrer mais uma vez a GONÇALVES (p. 589):

Em uma concepção democrática da organização e da vivência sociais, o

conflito é reconhecido como expressão da própria liberdade e da diversidade humanas, e, como tal, não deve ser reprimido ou sufocado, mas é necessário que aflore, para que possa ser resolvido sem o emprego da força e da violência.

O reconhecimento da existência do conflito abriu para o Direito a possibilidade de tentar resolvê-lo, ou por meio de uma solução negociada, para a qual hoje se cultiva uma cultura da conciliação, ou por meio de uma solução judicial, com a efetiva participação dos interessados no provimento. (Grifamos.)

GONÇALVES é jurista dedicado especialmente ao estudo do direito processual civil. Mas sua lição tem aplicabilidade no bojo da elaboração legislativa na medida em que ali também é possível construir soluções negociadas, e que, na impossibilidade de consenso, o legislador detém o mandato político para decidir, o que não o exime da responsabilidade de analisar corretamente os fatos, os interesses em jogo e os argumentos suscitados pelos participantes daquele processo, para um provimento mais racional, considerando todos os cinco aspectos levantados por ATIENZA e por nós explicitados no capítulo anterior.

Como sintetiza SILVA (2008, p. 58):

A observância a um processo, ao caminho traçado pelo ordenamento jurídico mediante a certeza da geração de uma decisão participada, no exercício das funções de Estado, é garantia não só de legalidade, como da

legitimidade dos atos dele emanados.

Especificamente em relação ao processo legislativo, é preciso destacar que

ele se filia aos discursos de justificação normativa, de produção do Direito

[...]

Sob a perspectiva da legística, o devido processo legislativo passa por uma fusão entre as normas constitucionais e regimentais que regulamentam a tramitação dos projetos de lei (incluindo aqui outras espécies normativas, como emendas constitucionais, e reforçando a necessidade de transparência no exercício da função legislativa pelos demais poderes), e os métodos suscitados no capítulo anterior (diagrama de dinâmica legislativa de ATIENZA ou de DELLEY ou PDCA), que incorporam a participação dos afetados tendo em vista a eficácia. Atualmente, as normas jurídicas que regem a matéria dão pouca ênfase à participação dos interessados ou à avaliação legislativa. A Lei Complementar federal n. 95, de 1998, que regulamenta o art. 59 da CRFB, trouxe inovações no aspecto do arranjo formal dos textos legislativos. O decreto federal n. 4.176, de 2002 introduziu, no âmbito do Poder Executivo federal elementos importantes de avaliação legislativa, porém a observância desses diplomas pelos legistas e legisladores brasileiros ainda é pequena, basta avaliar a qualidade da legislação editada, bem como das exposições de motivos que a acompanham – que muitas vezes nada expõem, e parecem muito mais um palanque eleitoral do que um documento sério.

3.3 Justificação, transparência e controle das decisões legislativas –