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Justificação, transparência e controle das decisões legislativas –

2 CRÍTICA À CORRENTE QUE IDENTIFICA CIÊNCIA DO DIREITO E

3.3 Justificação, transparência e controle das decisões legislativas –

Tal como antecipamos no capítulo 2, ao tratar do aparente conflito entre a racionalidade comunicativa (R1) e as racionalidades pragmática (R3) e teleológica (R4), o legislador responsável e comprometido com o mandato político que lhe permite tomar decisões em nome do povo (soberania popular pela via representativa), tem o dever, à luz do princípio democrático, de justificar suas escolhas. A justificação apresentada deve conter os verdadeiros motivos que o levaram a optar por uma alternativa, em detrimento de outras apresentadas pelos seus pares ou pelos membros da sociedade civil, evitando-se assim a legislação simbólica e seus nefastos efeitos, sendo o maior deles a quebra de confiança entre mandantes e mandatários. Ademais, esse legislador precisa estar comprometido com o sucesso da regulação, e deste modo, considerar os resultados da avaliação legislativa empreendida prospectivamente. Tudo isso porque a lei contém uma dimensão coercitiva de intervenção na esfera da liberdade individual, produzindo reflexos nas relações sociais, e portanto não pode ser empregada de maneira

leviana.

MENDES (1999) inclui em seu artigo intitulado Teoria da Legislação e

Controle de Constitucionalidade: algumas notas, a seguinte epígrafe, cuja autoria ele

atribui ao jurista alemão Hermann JAHRREISS:

Legislar é fazer experiências com o destino humano.

Essa afirmação aponta para um Estado-legislador que é um fim em si mesmo, e seres humanos que, por sua vez, são meios. Ora, os seres humanos são cobaias do legislador?

Numa democracia, a resposta é “não”. Porém, por mais óbvio que assim seja, o que impede o legislador brasileiro de nosso dias de agir com imprudência ao legislar, tendo em vista a ausência da cultura de um efetivo controle de suas decisões quanto aos quesitos de efetividade e eficácia, vez que o controle jurisdicional de constitucionalidade privilegia as racionalidades jurídico-formal, e, em alguma medida, a racionalidade ética?

Afinal, o poder de legislar/regulamentar não é um “cheque em branco” que o cidadão confere, nas urnas, à autoridade. O mandato não isenta o mandatário de prestar contas ao mandante. Não existe discricionariedade absoluta para a decisão política, do contrário haveria de se falar em arbitrariedade. Por isso é que caracterizamos a escolha do legislador não apenas como política, mas como jurídico-política, enfatizando assim a existência de normas jurídicas a orientar e limitar sua atuação.

Nos demais poderes, a necessidade de uma justificação das decisões que seja condizente com os motivos que de fato levaram a autoridade a proceder a determinada escolha é mais evidente. O caput do art. 37 da CRFB/1988 contempla implicitamente o princípio da motivação no âmbito da administração pública, e decorre dos princípios, esses sim explícitos, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência. A demonstração do motivo que subjaz os atos administrativos é o que permite inferir o respeito aos demais princípios constitucionais elencados, além de outros aos quais a administração pública se submete, e. g., razoabilidade, proporcionalidade, supremacia do interesse público, contraditório e ampla defesa. Em verdade, para o exercício, pelo administrado, dessas duas últimas garantias constitucionais, é imprescindível conhecer as razões que levaram a administração a praticar determinado ato. Assim sendo, o princípio da

motivação na esfera do Executivo está expresso em normas infraconstitucionais, como é o caso da Lei federal n. 9.784/1999, que regulamenta o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, a qual, no art. 2o prescreve:

Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

[…]

VII - indicação dos pressupostos de fato e de direito que determinarem a

decisão;

[…] (Grifamos.)

Da mesma forma, as decisões judiciais devem ser motivadas, dessa vez por mandamento constitucional explícito, contido no inciso IX do art. 93, que assim determina:

Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e

fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei

limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

(Grifamos.)

O princípio da motivação das decisões judiciais perfaz um quesito de técnica processual porque somente assim é possível seu controle à luz dos princípios do Estado democrático de direito35, seja pela instância ad quem, seja pelos jurisdicionados em geral – envolvidos no processo ou não. Nesse sentido, CINTRA et al. (1998, p. 68):

Outro importante princípio, voltado como o da publicidade ao controle popular sobre o exercício da função jurisdicional, é o da necessária motivação das decisões judiciárias.

Na linha de pensamento tradicional a motivação das decisões judiciais era vista como garantia das partes, com vistas à possibilidade de sua impugnação para efeito de reforma. Era só por isso que as leis processuais comumente asseguravam a necessidade de motivação (CPP, art. 381; CPC art. 165 c/c art. 458; CLT art. 832).

Mais modernamente, foi sendo salientada a função política da motivação das decisões judiciais, cujos destinatários não são apenas as partes e o juiz competente para julgar eventual recurso, mas quisquis de populo, com a finalidade de aferir-se em concreto a imparcialidade do juiz e justiça das decisões.

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Igualmente, os princípios do contraditório e ampla defesa, da publicidade e transparência, da imparcialidade do magistrado, da igualdade de tratamento das partes e dos seus procuradores, do livre convencimento do juiz, da responsabilidade estatal, do interesse público, etc.

Por isso, diversas Constituições – como a belga, a italiana, a grega e diversas latino-americanas – haviam erguido o princípio da motivação à estatura constitucional, sendo agora seguidas pela brasileira de 1988, a qual veio adotar em norma expressa (art. 93, inc. IX) o princípio que antes se entendia defluir do § 4o do art. 153 da Constituição de 1969.

(Grifos no original.)

O Código de Processo Civil assim estabelece:

Art. 165. As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais decisões serão fundamentadas, ainda que de modo conciso.

Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:

I - o relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo;

II - os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem.

De acordo com os dispositivos legais extraídos do Código de Processo Civil – que, conforme antecipado por CINTRA et at., se repetem no Código de Processo Penal e na Consolidação das Leis do Trabalho, fica claro que no Brasil os fundamentos da decisão judicial integram necessariamente o provimento final – a sentença, a decisão monocrática ou o acórdão –, a fim de permitir não apenas seu controle pelas partes e instâncias superiores, mas sobretudo, conforme entendimento moderno que considera o Estado democrático de direito, o controle popular a partir do reconhecimento da função política das decisões emanadas do Poder Judiciário. Esse controle só é possível no cotejo do provimento com sua fundamentação.

Há que se transportar esse raciocínio para a esfera legislativa, na qual a ideia de controle para além da esfera judicial é parcamente desenvolvida – especialmente pelo fato de não haver instância “superior” no que concerne às decisões do legislador. Afinal, todos os poderes no Estado democrático de direito devem ser exercidos em consonância com o que prescreve o ordenamento jurídico. Há amplo entendimento a respeito do controle jurisdicional das decisões legislativas, mas na prática o controle popular é prejudicado tendo em vista que a justificação apresentada nem sempre reflete ou engloba todos os fatores que embasam determinada lei ou determinado regulamento. Trazer a tona não apenas a justificação apresentada pelo proponente de um projeto, ou sua tramitação, mas documentos que contam sua história desde sua formulação como anteprojeto, bem como as contribuições de todos os interessados (agentes políticos, agentes públicos e membros da sociedade civil), relatórios de avaliação legislativa ex ante, pareceres

fornecidos por técnicos servidores das casas legislativas ou do Executivo ou ainda por entidade contratada, atas de audiências públicas ou outros eventos presenciais ou virtuais destinados à sua discussão, enfim, tudo aquilo que contenha argumentos no sentido de formar uma decisão final – uma lei ou um regulamento –, é o que permitirá de um lado orientar sua execução tendo em vista a maximização da efetividade e da eficácia, e de outro evidenciar falhas metodológicas em sua construção, incluindo efeitos indesejados apontados previamente por parte interessada, mas ignorados (ou não36) pelo legislador, viabilizando sua reforma sempre que necessário.

A transparência e a submissão ao controle popular são os elementos que garantem a legitimidade de uma decisão que emana do Estado, pois possibilitam a averiguação do atendimento dos demais princípios que decorrem do princípio democrático. Só deste modo é possível inibir a legislação simbólica e, ao mesmo tempo, permitir um contraditório real entre legislador e cidadãos, empresas ou organizações, ou entre esses últimos, no caso de grupos de pressão.

3.4 A participação na construção do conteúdo da lei – materialização do