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O duplo aspecto da liberdade dos organismos vivos: compromisso com a matéria e atualização de tendências imanentes à vida

HENRI BERGSON E OS CONTRASSENSOS E EXIGÊNCIAS DE CRIAÇÃO NAS OBRAS DA VIDA

1.2. O duplo aspecto da liberdade dos organismos vivos: compromisso com a matéria e atualização de tendências imanentes à vida

Se até aqui nos preocupamos em bem delimitar no que consiste o que Bergson reconhece como um “esforço” da vida, e que convencionamos tratar como uma “luta”, definido ao se levar em consideração a matéria na qualidade de obstáculo e instrumento, é o momento de descrever os traços essenciais que esse compromisso adquiriu ao longo das linhas da evolução – das quais, no topo de uma delas, encontraremos o homem e, com ele, a técnica, a inteligência, a moral e a sociedade, e, por fim, a religião. O elã da vida se define como uma “corrente lançada através da matéria que extrai desta aquilo que pode” (BERGSON, 1907a, p. 265). Ao fazê-lo, ela cria organismos que tendem a uma ação cada vez mais livre, organismos que, eles próprios, dotados para tanto de meios fornecidos pelo trabalho de organização da matéria, são capazes de criar. Esses organismos são as “soluções” que a vida encontrou ao longo do caminho, mensuráveis em termos do grau de variabilidade apresentado pela sua ação habitual sobre o meio. Dito de outro modo, em termos do desprendimento que essa criação implica para com as determinações que a matéria lhe impõe. O ser vivo se apresenta como um centro de ação correspondente à potência de escolha de que dispõe. Ele é sinônimo de invenção e de liberdade em graus variados, de acordo com seu lugar na escala dos seres. Ele representa determinada soma de contingência introduzida no mundo, certa quantidade de ação possível que vem contrastar com a necessidade do universo material. Conhecemos a célebre definição bergsoniana do universo material como uma espécie de consciência em que “tudo se compensa e se neutraliza, uma

consciência cujas partes eventuais, equilibrando-se por reações sempre iguais às ações, impedem-se reciprocamente de se destacar” (BERGSON, 1896, p. 264). O ser vivo é precisamente o que vem se destacar nessa monotonia, nessa inconsciência da matéria. Ele escolhe e hesita entre ações possíveis, ele varia e faz variar os movimentos que executa por sobre essa mesma matéria que se trata de dominar.

Colocamo-nos então de saída no conjunto das imagens extensas, e nesse universo material percebemos precisamente centros de indeterminação, característicos da vida. Para que ações irradiem desses centros, é preciso que os movimentos ou influências das outras imagens sejam de um lado recolhidas, de outro utilizadas. A matéria viva, sob a sua forma a mais simples e no estado homogêneo, realiza já essa função, ao mesmo tempo em que ela se alimenta e se repara. O progresso dessa matéria consiste em repartir esse duplo trabalho entre duas categorias de órgãos, dos quais os primeiros, chamados órgãos de nutrição, são destinados a manter os segundos: esses últimos são feitos para agir; eles têm por tipo simples uma cadeia de elementos nervosos (BERGSON, 1896, p. 66).

Vemos assim já em Matéria e memória concepções em torno do vivo, muito antes de Bergson voltar sua atenção para o transformismo biológico que anima a composição de A evolução criadora, que concentram em muitos aspectos o que há de essencial quando se trata de diferenciar as ações que se desenrolam no universo material daquelas que os vivos servem de veículo. A consciência no ser vivo é precisamente a diferença aritmética entre a atividade real e a atividade virtual. Ela aponta para uma zona de ações possíveis ou de atividade virtual que rodeia as ações efetivas, ela significa hesitação ou escolha (BERGSON, 1907a). Se escolha e indeterminação são atributos de um ser consciente, o que encontraremos em A evolução criadora é a descrição da gênese da consciência no interior do impulso vital (PRADO JR., 1989).

A história que essa gênese nos oferece apresenta como que uma dupla dimensão: uma delas denota precisamente o compromisso entre vida e matéria, essencial à efetivação da segunda, que diz respeito à atualização do que se encontrava em estado de compenetração recíproca no elã e que, de direito, independe da matéria para sua definição na qualidade de multiplicidade indistinta. Trata-se, de um lado, dos progressos do sistema sensório-motor e do agenciamento energético que ele pode realizar, de outro, do aparecimento do instinto e da inteligência como direções essenciais nas quais se realiza a evolução do mundo vivo. Se essas duas dimensões, aquela do compromisso com a matéria e aquela do que se prolonga a partir de uma impulsão inicial, atestam que o que há de essencial na vida é a criação de seres que podem agir de maneira indeterminada, ou seja, que a consciência, “diferença aritmética entre a atividade real e a atividade virtual” (BERGSON, 1907a, p. 145)

é “coextensiva à vida universal” (BERGSON, 1907a, p. 187), o que a história do mundo organizado mostra são os contornos de que se reveste essa exigência de criação que se encontra no fundo da vida no nosso planeta. “Nosso planeta” em um sentido preciso: a matéria com a qual o elã tem de lidar para atingir seus resultados.

Como veremos na sessão seguinte, a presença da matéria no universo, suas origens, são objeto central da cosmologia bergsoniana. Mas mesmo que não tenhamos ainda determinado essa urgência no movimento expositivo bergsoniano, podemos entrever que, abstração feita do cosmos, e considerando apenas o mundo vivo, a presença da matéria, se não tem ainda de ser explicada geneticamente, tem, ao menos, de ter sua natureza própria levada em consideração. Ora, não estamos dizendo, em outros termos, exatamente o que nos esforçamos a demonstrar na sessão anterior, que a vida contrasta com a matéria e que essa se apresenta a primeira a partir de uma situação de problema? O que se trata de demonstrar agora são os traços essenciais disso que podemos reconhecer como uma “liberdade biológica”, aquela que a vida se esforça em proporcionar, em garantir aos organismos que cria com a matéria que instrumentaliza. E essa matéria não é, como veremos logo abaixo, qualquer matéria.

Se nossas análises são exatas é a consciência, ou melhor, a supraconsciência, que se encontra na origem da vida. Consciência ou supraconsciência é o foguete cujos destroços apagados tornam a cair com a matéria; consciência ainda é o que subsiste do próprio foguete, atravessando os destroços e iluminando-os em organismos. Mas essa consciência, que é uma exigência de criação, apenas se manifesta a si mesma ali onde a criação é possível. Ele adormece quando a vida é condenada ao automatismo; ela desperta a partir do momento em que renasce a possibilidade de uma escolha. É porque, nos organismos desprovidos de sistema nervoso, ela varia em função do poder de locomoção e de deformação de que o organismo dispõe. E, nos animais com sistema nervoso, ela é proporcional à complicação da encruzilhada em que se cruzam as vias ditas sensoriais e motoras, ou seja, do cérebro62

(BERGSON, 1907a, p. 262).

Nada de surpreendente nessa aparente “materialização” das obras da vida, de sua dependência para com um corpo que se segue ao reconhecimento de uma

62 Não se trata de um paralelismo estritamente necessário entre o cérebro e um sistema nervoso desenvolvido e a

atividade consciente. O que é evidente é a relação entre consciência e mobilidade. Nos organismos superiores a consciência é realmente solidária de dispositivos cerebrais. Quanto mais desenvolvido o sistema nervoso, mais numerosos os movimentos entre os quais é possível a escolha, e mais luminosa é a consciência que os acompanha. Mas mobilidade, escolha e atividade consciente não possuem por condição necessária a presença de um sistema nervoso. A função do sistema nervoso é receber excitações, montar aparelhos motores e apresentar o maior número possível desses a uma excitação dada. Quanto mais ele se desenvolve, maior é a latitude deixada a nossa ação (BERGSON, 1896, 1919a). O sistema nervoso não cria a função, apenas eleva a graus maiores de intensidade e precisão a atividade consciente. Com relação ao movimento, em determinado sentido a consciência é sua causa, pois seu papel é dirigir a locomoção. Mas em outro sentido ela é seu efeito, pois é a atividade motora que a mantém e, quando essa desaparece, a consciência atrofia ou adormece (BERGSON, 1907a).

“supraconsciência” na origem da vida, de uma virtualidade de ordem psicológica que se atualiza em linhas distintas. Nada de estranho se temos em mente a complexa rede de relações, de dependência e de insurgência de uma parte para com outra, ente vida e matéria. No mais, essa “dependência” fornece uma matéria à vida que, sem dúvida, afasta Bergson de um suposto vitalismo que veria pura e simplesmente na vida uma força de caráter obscuro, cuja única relação com o universo da matéria seria aquele de um incontornável contraste. Consciência e supraconsciência se apresentam não como uma contraparte irreconhecível ao universo da matéria. Bergson foi bem claro, ela “ilumina a matéria em organismos”. Ela fornece o essencial em termos de liberdade, mas não pode criar “absolutamente”, sem um meio que – instrumentalizado – servirá de veículo à liberdade biológica.

Desse modo Bergson como que deixa em suspenso o caráter puramente negativo, aquele da “resistência” que a matéria implica para apresentá-la, na descrição dos organismos saídos da evolução, como “obstáculo invertido”, “instrumento de liberdade”. Que formas adquire então essa atividade da vida que consiste em espiritualizar sua matéria63? Uma primeira divergência se dá entre plantas e animais. Os vegetais adormecem na imobilidade, desenvolvendo a função clorofílica. Os animais trazem a marca da mobilidade no espaço e abrem caminho ao progresso do sistema sensório-motor, composto pelo “sistema nervoso cérebro-espinhal com, no mais, os aparelhos sensoriais nos quais ele se prolonga e os músculos motores que ele governa” (Bergson, 1907a, p. 125). O essencial que se observa na busca da variação do movimento indeterminado característico da consciência é um esforço

63 Desse ponto de vista a relação entre o elã irredutível à matéria com a qual ele tem de se arranjar para inserir a

maior soma de indeterminação possível é análoga àquela da memória e do corpo na vida do espírito. O corpo é a “ponta móvel” inserida pela memória, pelo espírito, “no plano movente da experiência”. E, prossegue Bergson (1896, p. 170), são os aparelhos sensório-motores que “fornecem às lembranças impotentes, ou seja, inconscientes, o meio de se incorporarem, de se materializarem, enfim, de se tornarem presentes”. É pela percepção, que se encontra nas coisas e não no espírito, extensiva, portanto, que “Consciência e matéria, alma e corpo entram assim em contato” (BERGSON, 1896, p. 246). A memória existe independentemente do corpo, mas, sem o corpo inserido no presente material ela não possuiria os meios de se atualizar, pois é “da ação presente que a lembrança toma o calor que lhe fornece a vida” (BERGSON, 1896, p. 170). Ora, não é algo do mesmo gênero que ocorre quando Bergson nos informa que, em parte, é a matéria que decide em torno da divisão do que se encontrava no elã em estado de interpenetração e indistinção? A vida, como a lembrança, não adquire extensão, não se materializa quando cria os organismos vivos com a matéria? Cabe ao filósofo, afirma Bergson (1919e, p. 37), estudar a vida da alma em todas as suas manifestações por um procedimento preciso: primeiro descendo ao interior de si mesmo, depois remontando à superfície, para então seguir “o movimento gradual pelo qual a consciência se distende, se estende, se prepara para evoluir no espaço”. Ao fim desse processo, ele obteria uma “vaga intuição daquilo que pode ser a inserção do espírito na matéria”. Podemos imaginar que essa inserção de que se trata na vida do espírito individual não será esquecida quando Bergson observar, ao longo da evolução da vida, um processo de espiritualização da matéria (que se desenvolve em uma intensidade sem igual, é verdade), caso queiramos afirmar que a Vida é, ela própria, espírito e memória. Trata-se de um procedimento que, nesse caso, não simplesmente informa a ação, mas que cria realidades. De qualquer modo a maneira habitual pela qual Bergson coloca a questão das relações da alma com o corpo se faz presente na análise da relação entre vida e matéria. E tivemos já a ocasião de observar que quando a vida cria com a matéria ela lhe espiritualiza; trata-se, em uma escala outra, da inserção do espírito na matéria.

para a construção de aparelhos capazes de “acumular energia e para soltá-la depois em canais flexíveis, deformáveis, na extremidade dos quais se realizarão trabalhos infinitamente variados” (BERGSON, 1907a, p. 254). “Da mais humilde Monera até os Insetos mais bem dotados, até os Vertebrados os mais inteligentes”, afirma Bergson (1907a, p. 127), é um progresso de aparelhos dessa natureza que observamos na evolução da vida.

Descendentes de um ancestral comum, em determinado momento plantas e animais se separaram. De um lado teve origem a função clorofílica, de outro um sistema nervoso que, por rudimentar que tivesse sido em seu início, abriu caminho a desenvolvimentos sem limite. Separados de sua fonte comum, de um lado os vegetais adormeceram na imobilidade, ao passo que o animal iniciou seus passos na conquista de um sistema nervoso. A vida animal, que manifesta a direção essencial do esforço da vida pelo movimento indeterminado do qual se acompanha, engajou-se em quatro grandes direções, das quais “duas conduziram a impasses”, ao passo que “sobre as duas outras o esforço foi geralmente desproporcional ao resultado” (BERGSON, 1907a, p. 130). A animalidade teria se iniciado por organismos simples. Estes seriam o tronco comum dos equinodermos, moluscos, artrópodes e vertebrados. Equinodermos e moluscos possuíam uma carapaça para proteção de extrema rigidez, mesmo os artrópodes a possuíam (e ainda possuem em alguns casos), assim como os peixes os mais antigos possuíam uma ossatura de dureza incomparável com suas manifestações atuais. Artrópodes e vertebrados, por sua vez, abandonaram o semissono a que permaneceram condenados equinodermos e moluscos livrando-se gradativamente desses invólucros protetores. O animal torna-se assim mais móvel nas duas linhas que evoluem separadamente, vertebrados e artrópodes. Na própria busca da mobilidade interior a essas linhas as direções são divergentes, mas sobre elas podemos reconhecer igualmente um progresso do sistema nervoso sensório-motor.

Sobretudo nas vias sobre as quais evoluíram artrópodes e vertebrados a flexibilidade e a variedade dos movimentos foram obtidas. Características que se ligam a progressos do sistema sensório-motor. Quanto mais este é desenvolvido menor é o caráter necessário das ações, “mais numerosos e distantes se tornam os pontos do espaço que ele coloca em relação com mecanismos motores sempre mais complexos: assim aumenta a latitude que ele deixa à nossa ação, e nisso consiste justamente sua perfeição crescente” (BERGSON, 1896, p. 27). Trata-se de uma liberdade dependente de mecanismos que a vida montara com a matéria para vencer seu automatismo, ligada a uma complexificação que é uma divisão fisiológica do trabalho. É possível observar nas linhas superiores da evolução “o

trabalho fisiológico se dividir. Células nervosas aparecem, se diversificam, tendem a se agrupar em sistema. Ao mesmo tempo, o animal reage por movimentos mais variados à excitação exterior” (BERGSON, 1896, p. 24). O que esse progresso anuncia é um compromisso do elã com a matéria, quando a vida se contenta em introduzir certa economia no jogo de forças materiais (RIQUIER, 2009). Ela começa procedendo por insinuação; “lá onde ela deve tomar a direção de um movimento, ela começa por adotá-lo” (BERGSON, 1907a, p. 71).

A matéria é necessidade, a consciência é liberdade; mas mesmo que elas se oponham uma à outra, a vida encontra meios de reconciliá-las. É que a vida é precisamente a liberdade se inserindo na necessidade e dobrando-a em seu benefício. Ela seria impossível, caso o determinismo ao qual a matéria obedece não pudesse se relaxar de seu rigor. Mas suponha que em certos momentos, em determinados pontos, a matéria oferece certa elasticidade, lá se instalará a consciência. Ela aí se instalará fazendo-se pequena; depois, uma vez no lugar, ela se dilatará, arredondará sua parte e acabará por tudo obter, pois ela dispõe de tempo e a quantidade de indeterminação a mais ligeira, adicionando-se indefinidamente a si própria, fornecerá tanta liberdade quanto se deseja (BERGSON, 1919a, p. 13).

É nesses termos – acordo, compromisso, arranjo entre “formas de existência radicalmente distintas” (BERGSON, 1919a, p. 13) – que devemos compreender o esforço em acumular energia potencial (cuja origem é invariavelmente a energia solar armazenada pelo vegetal e transmitida direta ou indiretamente ao animal pela alimentação) para ser desencadeada em movimentos mais ou menos indeterminados através das ramificações do sistema sensório-motor. Esses mecanismos montados pela vida são, com efeito, essenciais. Se o que se encontra na origem da vida é uma supraconsciência ou exigência de criação, ela apenas se manifesta onde a criação é possível, como vimos. Onde reside essa “possibilidade” senão na matéria que ela adquire e espiritualiza? Onde localizar o essencial das obras da vida do ponto de vista da solução que a vida encontra para seu intento de libertação da matéria das malhas de seu próprio automatismo?

Na estrutura neurofisiológica das espécies e no progresso que se desenha da massa protoplasmática irritável até o vertebrado que ocupa o espaço de modo variável, ou seja, no desencadeamento de movimentos livres e imprevisíveis. No potencial energético que a vida pode mobilizar com seus instrumentos de liberdade, ou seja, na energia acumulada que caberá à estrutura neurofisiológica utilizar de modo progressivamente indeterminado. É nesses termos precisos, que nos conduzem a uma direção muito distinta daquela de um vitalismo vago que resolveria a especificidade da vida em forças misteriosas e inacessíveis à observação direta, que Bergson encontra o “compromisso” essencial da vida com a matéria

que ela encontra pelo caminho. Como afirma Deleuze (1966, p. 76), a vida se diferencia “segundo o gênero de extensão que ela contrai”, e não a partir de uma matéria qualquer. O método pelo qual um corpo vivo executa seus movimentos é por toda a parte o mesmo, afirma Bergson (1919a), trata-se da utilização de certas substâncias “explosivas” que aguardam apenas uma centelha para detonar.

Eu quero dizer os alimentos, mais particularmente substâncias ternárias – hidratos de carbono e gorduras. Uma soma considerável de energia potencial é neles acumulada, prestes a se converter em movimento. Essa energia foi lentamente, gradualmente tomada do sol pelas plantas; e o animal que se alimenta de uma planta, ou de um animal que se alimentou de uma planta, etc., faz simplesmente passar em seu corpo um explosivo que a vida fabricou armazenando energia solar. Quando ele executa um movimento, é que ele libera a energia assim aprisionada; apenas é preciso, para isso, dar um disparo, tocar de leve o gatilho de uma pistola sem fricção, aguardar a centelha: o explosivo detona, e na direção escolhida o movimento se realiza. Se os primeiros seres vivos oscilaram entre a vida vegetal e a vida animal, é que a vida, em seus primórdios, se encarregou ao mesmo tempo de fabricar o explosivo e de utilizá-lo para movimentos. À medida que animais e vegetais de diferenciaram, a vida se cindiu em dois reinos, separando assim uma da outra as duas funções primitivamente reunidas. Aqui ela se preocupava mais em fabricar o explosivo, lá de fazê-lo detonar. Mas, quer lhe consideremos no início ou no termo de sua evolução, sempre a vida em seu conjunto é um duplo trabalho de acumulação gradual e de gasto brusco: trata-se para ela de conseguir que a matéria, por uma operação lenta e difícil, armazene uma energia de potência que se tornará de repente energia de movimento. Ora, como procederia de outro modo uma causa livre, incapaz de romper a necessidade à qual a matéria é submetida, capaz, contudo, de dobrá-la, e que desejaria, com a minúscula influência que dispõe sobre a matéria, obter dela, em uma direção cada vez mais bem escolhida, movimentos cada vez mais poderosos? (BERGSON, 1919a, p. 15).

O que o “elã organizador” explica ao atravessar a matéria, afirma Jankélévitch (1959, p. 166), são as estruturas prodigiosamente complicadas dos vivos, figuras do compromisso com a matéria do qual a vida não pode se passar, toda a sofisticação energética e fisiológica que acabamos de descrever na qualidade de possibilidade biológico-estrutural ao exercício da liberdade. Mas “por detrás dessas formas impressionantes há o elã vital que podia ainda muito mais, e que não esgota em suas obras as fontes inesgotavelmente variadas de seu gênio”. Por detrás do que se vê há o que se adivinha, dirá Bergson (1907a, p. 134): potências imanentes à vida e inicialmente confundidas que tiveram de se dissociar para crescer. Para definir essas potências, Bergson considera respectivamente na evolução dos artrópodes e dos vertebrados as espécies que marcam seus pontos culminantes64. De modo que somos levados

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