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HENRI BERGSON E OS CONTRASSENSOS E EXIGÊNCIAS DE CRIAÇÃO NAS OBRAS DA VIDA

1.1. Tensão e indissociabilidade entre vida e matéria

Ao descrever a evolução do mundo vivo e sua significação cosmológica, Bergson apresenta os elementos essenciais daquilo que podemos conceber como uma verdadeira “luta”60 entre vida e matéria, cujo desenrolar ou efeito visível são as diferentes linhas nas quais se dividiu o elã vital e a miríade de espécies que vem nelas ocupar seu lugar. Mas se o objeto da ciência da vida é a série das espécies constituídas pelo fluxo vital, para a filosofia ela é apenas um signo ou sintoma, afirma Bento Prado Jr. (1989, p. 194). O que a filosofia de Bergson realiza é a passagem desses signos ao seu significado; “ela torna legível, na história exterior das espécies, a aventura interior do impulso vital”. E nessa aventura a relação entre vida e matéria, o esforço em suprimir possíveis contradições que se insinuem no contato dessas duas realidades, não é dos aspectos dos menos essenciais no transformismo que Bergson está em vias de descrever e fundamentar.

Se em seu contato com a matéria a vida é comparável a uma impulsão ou a um elã, considerada em si mesma é uma imensidão de virtualidades, uma mútua sobreposição de milhares e milhares de tendências que só serão, no entanto, “milhares e milhares”, uma vez exteriorizadas umas com relação às outras, isto é, espacializadas (BERGSON, 1907a, p. 259).

A vida é nesses termos, antes de seu contato com a matéria, de ordem psicológica. Se no fundo de nós mesmos encontramos uma interpenetração recíproca e continuidade dos estados de consciência, “assim também é a vida em geral”, afirma Bergson (1907a, p. 259). Essa é a natureza da vida em seu início e origem, antes da dissociação de suas

60 A utilização desse termo implica algumas ressalvas. Não se trata de uma relação entre partes exteriores umas

às outras e sem comunicação interna que se oporiam, digamos, “espacialmente”. Na qualidade de “misto” a vida não é um combinação de termos exteriores. E se podemos falar em termos de uma dualidade, afirma Worms (2004a, p. 163), ela é “íntima”, “imanente”. Há de um lado o elã criador e indivisível (revelado retrospectivamente pelo fenômeno evolutivo e que autoriza uma analogia com a duração) e, de outro, suas “coerções necessárias” encontradas ao contato com a matéria e a partir das quais o elã deposita as espécies. Essa imanência dos termos ficará ainda mais clara quando observarmos a unidade primitiva na qual vida e matéria tem origem.

tendências que é operada, em parte, pela matéria. Mas a matéria não é a única causa de diferenciação que encontramos no seio do movimento evolutivo. Seria de certo modo um contrassenso reconhecer apenas no campo dos obstáculos o caráter essencial da variabilidade pela qual a vida se apresenta. Ela carrega em si mesma sua causa de variação, é sua natureza própria, na qualidade de tendência, que lhe constitui enquanto tal. O “elã original da vida” é ele próprio “a causa profunda das variações” (BERGSON, 1907a, p. 88). A hipótese de um elã vital dá conta, portanto, ao mesmo tempo, da unidade do mundo vivo e do processo de variação que lhe é interior, e cuja responsabilidade, digamos, é dividida com a matéria que se opõe ao desenvolvimento desse mesmo elã. Se a vida é a “continuação de um único e mesmo elã”, ele teve de se dividir entre linhas de evolução divergentes. É seu próprio “desenvolvimento que o levou a dissociar tendências que não poderiam crescer além de certo ponto sem se tornarem incompatíveis entre si” (BERGSON, 1907a, p. 52).

Adiantando-nos um pouco sobre o que será tratado mais adiante, devemos reconhecer com Deleuze (1966, p. 66) que a vida, confundindo-se “com o próprio movimento da diferenciação em séries ramificadas”, é a duração que se diferencia: “a Duração chama-se vida quando aparece nesse movimento”. A diferenciação não é somente o corolário de uma causa externa, a duração não se diferencia apenas segundo o obstáculo que encontra na matéria, ela é em si mesma “uma força interna explosiva”. A analogia que Bergson estabelece com o desenvolvimento do caráter é instrutiva a esse respeito. Começamos com ela a observar, aliás, quão cara é a Bergson a consideração da unidade temporal da consciência psicológica na caracterização dos fenômenos da natureza, temática que trataremos adiante em separado.

(...) as causas verdadeiras e profundas da divisão eram aquelas que a vida carregava nela. Pois a vida é tendência, e a essência de uma tendência é desenvolver-se em forma de feixe, criando, pelo simples fato de seu crescimento, direções divergentes entre as quais se dividirá seu elã. É o que observamos em nós mesmos na evolução dessa tendência que chamamos nosso caráter. Cada um de nós, lançando um olhar retrospectivo sobre sua história, constatará que sua personalidade de infância, ainda indivisível, reunia nela pessoas diversas no estado nascente: essa indecisão cheia de promessas é na realidade um dos maiores charmes da infância. Mas as personalidades que se entrepenetram se tornam incompatíveis ao crescerem, e, como cada um de nós vive apenas uma única vida, somos forçados a fazer uma escolha. Escolhemos na realidade incessantemente, e sem cessar igualmente abandonamos muitas coisas. A rota que percorremos no tempo é coberta de destroços de tudo o que começamos a ser, de tudo o que poderíamos ter nos tornado. Mas a natureza, que dispõe de um número incalculável de vidas, não se encontra restrita a tais sacrifícios. Ela conserva as diversas tendências que bifurcaram ao crescer. Ela cria, com elas, séries divergentes de espécies que evoluem separadamente (BERGSON, 1907a, p. 101).

O elã vital é finito, ele “foi dado de uma vez por todas” (Bergson, 1907a, p. 254), de modo que ele não pode prosseguir em muitas direções ao mesmo tempo com a mesma completude e conservando a indistinção que lhe caracteriza primitivamente. Diante de sua finitude (que não deve dissimular a indistinção psicológica que o caracteriza) e dos obstáculos que encontra, ele tem de se dividir e, ao fazê-lo, cria as direções divergentes da vida: planta (torpor vegetativo) e animal (mobilidade) e, ao longo da linha que se abre ao desenvolvimento da animalidade, instinto e inteligência.

Meu intento exige ressaltar a distinção entre dois tipos de causas de variação, interna e “profunda”, de um lado, e externa, mas não acidental, de outro. Em que pese seu caráter esquemático – abstração feita de seu parentesco cosmológico na qualidade de tendências originadas em um mesmo ato – a “distinção” da vida para com a matéria permite enfatizar a discordância que se apresenta no momento de seu contato. Como se todo o mundo organizado fosse o testemunho de uma contradição insuperável e, paradoxalmente, ao mesmo tempo necessária, e mesmo característica do trabalho de organização da matéria na consolidação dos organismos vivos. Na qualidade de causa de variação, a matéria não é o que há de essencial – embora, reitero, ela não é um obstáculo acidental, mas estrutural. Ela é resistência, obstáculo; ela é marcada pelo signo, nesse sentido, do negativo. No que toca ao trabalho de organização, afirma Jankélévitch (1959, p. 168), a realidade “positiva e verdadeiramente primeira, é o próprio esforço da vida para enobrecer e espiritualizar essa matéria que lhe resiste”.

Desse modo podemos dizer com Bergson que há um “esforço” que se encontra no fundo da vida. Se uma “grande corrente de energia criadora lança-se sobre a matéria para obter dela o que pode” (BERGSON, 1932a, p. 221), a vida pode ser definida como uma “tendência a agir sobre a matéria bruta” (BERGSON, 1907a, p. 97). Esse esforço responde a um problema específico no que diz respeito ao mundo da vida. Trata-se de reconhecer que o “papel da vida é inserir indeterminação na matéria”. Indeterminadas e imprevisíveis são as formas que a vida cria ao longo de seu desenvolvimento, de modo que “cada vez mais livre é a atividade à qual essas formas devem servir de veículo” (BERGSON, 1907a, p. 127).

A empresa era paradoxal – se podemos realmente falar aqui, senão por metáfora, de empresa e de esforço. Tratava-se de criar com a matéria, que é a própria necessidade, um instrumento de liberdade, de fabricar uma mecânica que triunfasse sobre o mecanicismo, e de empregar o determinismo da natureza para passar através das malhas da rede que ele havia estendido (BERGSON, 1907a, p. 264).

A evolução da vida em nosso planeta, que oferece o espetáculo de linhas divergentes e complementares que são o prolongamento de uma impulsão inicial comum que se dividiu em plantas e animais, em instinto e inteligência, manifesta essencialmente um esforço de organização da matéria. Há, portanto, um vínculo da vida com a matéria. A vida é consciência – liberdade e indeterminação na ação, invenção e continuidade temporal de desenvolvimento – inserindo-se na matéria que atravessa (BERGSON, 1919a). Mas essa inserção não é apenas a marca de uma espiritualização da matéria, para nos utilizarmos do vocabulário de Jankélévitch. Ao fazê-lo, ao criar seres capazes de agir com alguma liberdade por sobre o terreno da necessidade, a vida como que se condena à extensão que adquire. Ela se encontra “cravada em um organismo que a submete às leis gerais da matéria inerte. Mas tudo se passa como se fizesse todo o possível para se libertar dessas leis” (BERGSON, 1907a, p. 246). Os organismos vivos não são a própria corrente vital, mas sim esta corrente carregada de matéria, “partes congeladas de sua substância que ela arrasta ao longo do caminho” (BERGSON, 1907a, p. 240). Com efeito, como afirma Jankélévitch, há realmente algo de “trágico” em tudo isso (ainda que não haja lugar para fatalismo, dado a própria atividade anunciada pelo que, de certo ponto de vista apenas, se apresenta como da alçada do negativo). A vida “tem necessidade da matéria que a mata: há nela um despedaçamento nascente que se resolve no movimento contínuo do devir, e que explica ao mesmo tempo a utilidade e a maleficência do princípio espacial”. É o “resgate com o qual se paga nesse mundo”, conclui Jankélévitch (1959, p. 176), “toda superioridade”. Mas, se o transformismo biológico que Bergson nos descreve não se apresenta, desse ponto de vista, como uma pura epopeia da natureza criadora ou apologia de suas perfeições no sentido da Teodiceia de Leibniz (1710), não se trata, igualmente, de observar na necessidade representada pelo universo material o aborto incontornável da liberdade que a vida carrega em seu desenvolvimento61.

A matéria, digamos, coloca um problema, define um esforço, uma tensão interior à atividade criadora que se desenrola ao longo da evolução. Ao ponto de Bergson de certo modo reconhecer na própria matéria algo mais que uma simples resistência. De um lado, com efeito, ela “distingue, separa, resolve em individualidades e finalmente personalidades tendências outrora confundidas no elã”, mas, de outro lado, ela provoca e mesmo “torna

61Se podemos de alguma maneira dizer que a “morte” terá seu lugar na natureza bergsoniana – no sentido de

uma contrariedade de fato ameaçadora à vida – teremos de aguardar As duas fontes da moral e da religião, quando a espécie que é o êxito do movimento evolutivo, o homem, terá sua viabilidade ameaçada por uma falta de “ligação com a vida” (BERGSON, 1932a). Será a ocasião em que a materialidade adquirida pelo trabalho de organização – naquilo que ela possui de negativo e contrário à vida – ganhará contornos insuspeitados, e a circularidade característica de toda e qualquer espécie se prolongará em atitudes como a guerra entre agrupamentos sociais e em um atavismo generalizado que acomete a estrutura da espécie humana.

possível o esforço”, afirma Bergson (1919a, p. 22), esforço que, desse ponto de vista, não seria possível sem a matéria: “ela é ao mesmo tempo o obstáculo, o instrumento e o estimulante”; ela exige do esforço uma intensificação. De modo que é na relação ou no contato da vida com a matéria que podemos reconhecer na vida – no que ela possui de essencial – uma exigência de criação.

O elã da vida de que falamos consiste, em suma, em uma exigência de criação. Ele não pode criar absolutamente, pois ele encontra diante de si a matéria, ou seja, o movimento inverso ao seu. Mas ele se apropria dessa matéria, que é a própria necessidade, e ele tende à nela introduzir a maior soma possível de indeterminação e liberdade (BERGSON, 1907a, p. 252).

O elã eleva a matéria a um estatuto que, abandonada a si mesma, ela seria incapaz de aceder. Uma vez mais, o vocabulário de Jankélévitch é preciso: a vida espiritualiza a matéria. A vida traz ao mundo alguma coisa “que contrasta com a matéria bruta” (BERGSON, 1919a, p. 12). Deixado a si mesmo o mundo obedece a leis fatais, prossegue Bergson: “Em condições determinadas, a matéria se comporta de modo determinado, nada do que ela faz é imprevisível”, ela é inércia, geometria, necessidade. É apenas com a vida que “aparece o movimento imprevisível e livre. O ser vivo escolhe ou tende a escolher. Seu papel é criar. Em um mundo onde todo o resto é determinado, uma zona de indeterminação o envolve” (BERGSON, 1919a, p. 13).

As questões que visamos responder ao longo de nossa exposição são as seguintes. Atingiu a vida o seu objetivo? Criou seres cuja iniciativa e indeterminação, cuja liberdade, contrasta a tal ponto com o determinismo do universo material que podemos afirmar seu total desprendimento para com ele, ou, ao menos, uma instrumentalização que lhe retira o caráter de obstáculo e resistência? Foi exitosa em algum momento da evolução, no termo de alguma de suas linhas? Minha proposição não é responder a essas questões apenas nos termos de A evolução criadora, mas por meio de uma leitura retrospectiva desta que passa por As duas fontes da moral e da religião, ocasião na qual uma solução inusitada ao problema geral da vida será trazida por individualidades privilegiadas, os místicos. Apontamento de uma solução excepcional que não se dará sem a descrição prévia do que há de nocivo na própria estrutura da espécie que, se não será ela própria o êxito absoluto da evolução da vida, será ao menos o meio pelo qual se apresentará uma solução satisfatória à relação entre vida e materialidade por meio da ação que ela sofre da parte dos místicos. De qualquer modo, a questão que guiará a exposição é aquela da natureza do êxito da vida em sua luta contra a matéria. Interessa-nos a “imobilização”, o giro sobre o lugar implicado no vínculo necessário

que a vida estabelece com ela e o momento ou ocasião em que a vida, enfim, triunfa por meio do ressarcimento de algo do “movimento” original ou essencial que fora se perdendo gradativamente ao longo da rota que a vida cravou na matéria.

O conjunto das espécies vivas não é, afirma Bergson, como já tive ocasião de frisar, a própria corrente vital. Partidário de algo que é de sua essência, a qual a vida busca prolongar, ele é carregado da materialidade implicada no trabalho de organização: “cada espécie se comporta como se o movimento geral da vida se detivesse nela em vez de atravessá-la. Só pensa em si mesma, só vive para si mesma” (BERGSON, 1907a, p. 255). E podemos já conjecturar a respeito da expressão que essa distensão do movimento vital adquirirá na humanidade específica, sua inviabilidade “natural”, tão natural quanto os atributos que farão dela um sucesso relativo: agrupamentos fechados sobre si mesmos, guerra, ausência de confiança na execução das ações cotidianas, etc. Mas falemos pelo momento ainda em termos da vida em geral. O ato constitutivo de uma espécie qualquer é definido como uma parada no movimento ao qual se lançou o elã vital (BERGSON, 1907a, 1932a).

Se a história da vida deve de fato ser encarada como um esforço da alçada da consciência para “levantar a matéria”, bem como o testemunho de “um esmagamento mais ou menos completo da consciência pela matéria que tornava a cair sobre ela” (BERGSON, 1907a, p. 264), teríamos com o conjunto do mundo organizado um “meio sucesso” da vida (DELEUZE, 1960, p. 187) com relação a sua empresa. A consciência foi tomada nas malhas que pretendia atravessar: se em toda história da vida deparamos com um único e grande esforço, esse esforço estaca o mais das vezes, absorvido pela forma que assumiu (BERGSON, 1907a). Toda solução que a vida encontra é um fracasso relativo com relação ao movimento que a inventa; “a vida, como movimento, aliena-se na forma material que ela suscita”, de maneira que “Toda espécie é, portanto, uma parada de movimento; dir-se-ia que o vivente volteia sobre si mesmo e se fecha” (DELEUZE, 1966, p. 84). A vida é identificada a um movimento que quer prolongar-se, mas que perde algo de sua direção nas malhas do automatismo do universo material no qual se vê obrigada a inserir indeterminação.

A vida em geral é a própria mobilidade; as manifestações particulares da vida só aceitam essa mobilidade a contragosto e estão constantemente atrasadas com relação a ela. Aquela vai sempre adiante; estas gostariam de patinhar. A evolução em geral se daria, tanto quanto possível, em linha reta; cada evolução especial é um processo circular. Como turbilhões de poeira levantados pelo vento que passa, os vivos giram sobre si mesmos, suspensos pelo grande sopro da vida (BERGSON, 1907a, p. 129).

A vida acaba por se tornar indissociável da matéria que atravessa. Esta não se reduz a um meio exterior, trata-se daquilo em função do que o vivente fabrica para si um corpo, uma forma (DELEUZE, 1966). Essa indissociabilidade não impede Bergson de afirmar categoricamente seu aspecto contraditório. Embora necessária, como já sublinhamos, a materialidade é perniciosa à vida, ao menos à sua “direção essencial”, ao que a define e caracteriza: indeterminação na ação, liberdade. De maneira que a evolução da vida nos deixa entrever, afirma Bergson (1907a, p. 129), que o ser vivo é “um lugar de passagem e que o essencial da vida reside no movimento que a transmite”. Bergson parece com isso preservar, para além – e mesmo ao lado – da indissociabilidade, uma diferença essencial entre a vida na qualidade de movimento que se transmite e a forma que ela adquire ao longo da extensão que atravessa. E essa distinção “interior” ao vivo, em certo sentido, será de suma importância: o êxito da vida se ligará precisamente a uma retomada desse movimento, ainda que seja preciso, para tanto, ir além da vida no seu sentido biológico.

O trabalho de organização possui algo de explosivo; “é-lhe preciso, no ponto de partida, a menor quantidade de espaço possível, um mínimo de matéria, como se as forças organizadoras apenas entrassem no espaço a contragosto”. Mas, a contragosto ou não, elas adquirem algo da extensão que atravessam. Se a vida é um “ato simples que se dividiu automaticamente em uma infinidade de elementos que observaremos coordenados a uma mesma ideia” (BERGSON, 1907a, p. 93), se ela manifesta um esforço para criar seres capazes de agir livremente, de criar, e desse modo prolongar o movimento que engendrou o conjunto do mundo organizado, o resultado dessa divisão ou dispersão – as formas vivas – paradoxalmente expressa negativamente esse movimento indiviso. O organismo em sua materialidade é da esfera do negativo com relação à positividade da afirmação de uma potência de criação que é movimento, ato, modo pelo qual podemos definir o gesto constituinte do elã. O corpo, afirma Jankélévitch (1959, p. 168), apenas “existe para ser vencido”. A vida deverá então contorná-lo para seguir adiante, “sublimá-lo”.

Diante desses imperativos, contrassensos, ambiguidades irremediáveis da vida tomada no trabalho de organização de suas formas, como atingir, ressarcir seu movimento naquilo que ele tem de primitivo e original? Será com o homem? Ou será necessário um salto

sui generis, que ignora toda materialidade e, com ela, todos os imperativos ligados à estrutura das espécies vivas sobre nosso planeta? Se esse movimento é identificado a um esforço “que é ainda mais precioso que a obra que leva a cabo” (BERGSON, 1919a, p. 22), pois permanece sempre inadequado à obra que tende a produzir (BERGSON, 1907a), e se esse esforço visa

prolongar-se de certo modo “sem” a materialidade como sua intermediária necessária, qual o estatuto de um suposto “êxito” nesses termos? Será necessário saber por que meios o homem tornar-se-á a razão de ser da vida, se enquanto uma espécie tal como outra qualquer, ou se como espécie que abole toda especificação. Como veremos, esse triunfo se dará por um retorno ou recurso a algo que está para além da vida, que se encontra, na verdade, em sua origem. Mas, se até aqui busquei caracterizar que a evolução do mundo vivo oferece o testemunho de um “esforço” e de um “problema” é preciso, antes de partir para o que podemos chamar de “êxito”, abordar a natureza geral das soluções relativas que a vida encontrou ao longo do seu caminho bem como demonstrar a importância do “movente” na caracterização do universo bergsoniano, nele compreendida a vida e a própria materialidade.

1.2. O duplo aspecto da liberdade dos organismos vivos: compromisso com

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